A minha saga com redes sociais (ou por que é importante compreendê-las)

Eu sempre tive certo receio em me aprofundar nos conceitos de análise de redes sociais pelo simples motivo que achava que era tecnológico demais para alguém que valoriza tanto as humanidades. No último ano, entretanto, principalmente a partir do momento que comecei a trabalhar no IBPAD, tenho buscado rever esse preconceito para estar mais aberto às possibilidades e metodologias de pesquisa do universo digital. Nas últimas semanas, alguns acontecimentos pontuais me colocaram frente a frente com o tema, para que eu superasse de vez meu preconceito e aproveitasse devidamente as riquezas desse método de pesquisa.

Tudo começou quando li pela primeira vez o artigo “Diga-me com quem falas e dir-te-ei quem és: a conversação mediada pelo computador e as redes sociais na internet”, da Raquel Recuero, para uma aula da graduação. Não é o meu primeiro contato com seu trabalho – já fiz até um post sobre um de seus mais famosos artigos sobre sites de redes sociais e capital social. Muitas das ideias que ela apresenta no primeiro, de 2009, são atualizadas e “melhoradas” no segundo texto, de 2012. No entanto, foi interessante conhecer essa publicação mais antiga para compreender um pouco do contexto sobre os estudos de sites de redes sociais no Brasil, que têm hoje a autora como a principal referência acadêmica sobre o assunto. Ou seja, se você vai fazer algum trabalho na graduação sobre mídias sociais, quase obrigatoriamente passará por algum texto da professora.

Depois do lançamento do livro “Redes Sociais na internet”, em 2009, a obra tornou-se a principal fonte de referência e conhecimento sobre o assunto no Brasil. Poucos anos depois, em 2011, o aclamado “Métodos de pesquisa para a internet”, em co-autoria com Adriana Amaral e Suely Fragoso, também virou referência – e aqui é preciso elogiar a excelência de pesquisa e estudos da Unisinos, universidade com um dos mais preparados polos de estudos sobre novas mídias no Brasil. A consolidação do seu nome na academia, graças ao seu excelente trabalho, ocasionou numa importância e relevante discussão sobre os aspectos (também ligado a questões de nomenclatura) das conhecidas “redes sociais”. Desde então, há uma preocupação – pelo menos da academia, cenário ainda embrionário no mercado – de passar por essas discussões sobre redes sociais na internet.

E eu entendo isso. A própria popularização e consolidação da nomenclatura “redes sociais” para atribuir plataformas como Facebook, Instagram, Twitter e até o finado Orkut, exige uma criteriosidade acadêmica para colocar as coisas (conceitos, definições, etc.) em seus devidos lugares. Gosto muito – e já citei isso aqui no blog várias vezes – do trabalho de Beatriz Polivanov no livro (e sua anterior tese de doutorado) “Dinâmicas identitárias em sites de redes sociais”, no qual ela faz um apanhado bibliográfico para contextualizar dois grupos (ou duas correntes) que ela enxerga como tendo relevância nos atuais estudos sobre internet e cibercultura no Brasil.

Há uma tensão entre os estudiosos que pensam esse fenômeno [dos sites de redes sociais] sob dois olhares bastante distintos, quais sejam: aquele que defende a ideia de que estaria ocorrendo nesses lugares uma problemática superexposição dos sujeitos, de suas intimidades, relacionadas à lógica das sociedades de espetáculo (DEBORD, 2003) da hipervisibilidade e vigilância constante; e uma segunda perspectiva, à qual me afilio, que se interessa pela discussão sobre como se dão os processos de construção identitária nesses sites e de interação entre os atores sociais, que formam laços sociais entre si, focando primordialmente os modos através dos quais se dá essa construção e a relação do eu com o outro. (POLIVANOV, 2012, pg. 30/31)

Segundo ela, o primeiro grupo seria composto por autores como Paula Sibília (show do eu), Eugênio Trivinho (melancolia do único), Cíntia Dal (apareSer), Lauren Colvara (ilusão da sociabilidade) e Fernanda Bruno (autovigilância). O segundo grupo também se preocupa com questões mais amplas, como identidade e sociabilidade, porém sob outras perspectivas: “discutindo as diversas estratégias e modos através dos quais os interagentes constroem seus perfis nos SRSs, como o gerenciamento da impressão (impression management) e performance da amizade (friendship performance)” (POLIVANOV, 2012, pg. 31), dentre outros aspectos. Neste grupo, encontram-se danah boyd e Nicole Ellison, Daniel Miller, Judith Donath, Artur Matuck e Arthur Meucci, Alan Mocellim, Sonia Livingstone, apenas para citar alguns.

O que acontece: nessa segunda “corrente”, a qual tenho mais simpatia, as duas temáticas-pilares são interação e identidade (perceba como performance se encaixa no meio, por isso não a destaquei). Como, na faculdade, fui um aluno que desenvolveu muito interesse pelas questões de identidade (e, óbvio, por consequência, representação e performance), sempre fiquei um pouco incomodado com a relevância dada à estrutura dos sites de redes sociais (e suas interações) a partir principalmente do trabalho de Raquel Recuero. Isso porque, como citei anteriormente, seu trabalho se tornou a principal referência no Brasil. E aqui eu enfatizo que não quero DE FORMA ALGUMA menosprezar seu conhecimento enquanto pesquisadora. É simplesmente uma questão – literalmente, talvez – de gosto.

Porque uma coisa que os professores não te explicam na faculdade é que a verdade que eles pregam na aula não é absoluta, mas bem delimitada e extremamente contextualizada – principalmente (e deixo uma brecha em aberto porque não tenho experiência pra falar de exatas) nas humanidades. Ou seja, a partir do momento que você escolhe uma disciplina, você está aceitando tomar como referência conceitos, teorias e autores que dialogam entre si sobre determinada temática – não quer dizer que você tenha que aceitar, pode (e até deve) contestar algumas coisas, mas é daquele referencial que você deve partir seguindo adiante. É um pouco do que a própria Beatriz Polivanov faz em seu livro, a partir do levantamento que citei.

A minha questão é: uma vez que Recuero tornou-se o principal nome associado à pesquisa de/em sites de redes sociais no Brasil, consolidou-se um foco muito grande nas questões interacionais dos ambientes de sociabilidade digital. Não que isso esteja errado ou não seja assim também lá fora – a própria definição inicial, de 2007, e mundialmente conhecida de danah boyd e Nicole Ellison alertam para os aspectos estruturais das redes: “aqueles sistemas que permitem: i) a construção de uma persona através de um perfil ou página pessoal; ii) a interação através de comentários e iii) a exposição pública da rede social de cada ator” (RECUERO, 2009). Na atualização da definição, em 2011, ainda havia bastante foco nos aspectos estruturais: criação de um perfil público ou semi-público, lista de amigos (rede de contatos), produção de conteúdo e stream based updates.

Recuero destaca que os dois grandes elementos que constituem as redes sociais seriam: 1) os atores, ou seja, as pessoas envolvidas na rede em questão e 2) as conexões, constituídas pelos laços sociais “que, por sua vez, são formados através da interação social entre os atores”. A autora ressalta que as conexões em uma rede são, de certo modo, “o principal foco do estudo das redes sociais, pois é sua variação que altera as estruturas desses grupos” (2009, p. 30) e que a maneira de analisar e entender essas conexões é prestando atenção aos rastros que são deixa- dos nos SRSs, isto é, às mensagens, por exemplo, que são deixadas pelos atores sociais nesses lugares (e que na maioria das vezes não são apagadas), sendo que essas mensagens devem ser entendidas neste ponto como qualquer tipo de material que é compartilhado e comunicado numa interação social, e não apenas no sentido das mensagens textuais que são deixadas nos sites, como os scraps (recados) no Orkut. (POLIVANOV, 2014, pg. 36)

Tanto no artigo em questão quanto nesse resumo feito por Polivanov é possível perceber o valor que a autora dá às questões interacionais dos sites de redes sociais. E eu finalmente pude compreender o motivo graças a uma nota de rodapé do artigo: sua formação inicial é em Letras. Ou seja, é absolutamente compreensível a sua preocupação em lidar, compreender, analisar e estudar os aspectos relacionados à conversação (interações) nos sites de redes sociais. No próprio artigo em questão ela traz metodologias relacionadas à disciplina da Análise da Conversação cujo “foco era na compreensão da estrutura da comunicação estabelecida entre os atores sociais durante o processo de construção de um discurso” (RECUERO, 2009, pg. 119). Percebe como as coisas se encaixam?

O meu problema com a ARS, portanto, talvez fosse bem mais uma espécie de “recalque” inocente do que uma crítica embasada de fato. Apenas porque, como alguém mais interessado nas questões de identidade, performance e representação, via na popularização dessa metodologia de pesquisa certo esquecimento desses aspectos. O que, na prática, é um mito. A própria Raquel Recuero escreveu o capítulo “Métodos mistos: combinando etnografia e análise de redes sociais em estudos de mídia social” para o livro Etnografia e consumo midiático, onde propõe possibilidades de mesclas dessas abordagens. Enfim, o meu preconceito não passava disso: um preconceito. E eu dei a cara à tapa quando, num segundo momento, tive acesso ao curso online de Análise de Redes Sociais do IBPAD.

Será lançado em meados de maio, mas tive acesso como usuário beta para testar algumas funcionalidades. É o segundo curso online do instituto, que já tem disponível o Etnografia em Mídias Sociais e está produzindo outros dois de métricas e monitoramento. No mercado brasileiro, o IBPAD tem sido uma das principais vozes – talvez a principal – a promover a importância da análise de redes. Isso porque tem em sua essência uma relação bastante íntima com o conhecimento científico, sendo parceiros de Universidades e centros de pesquisa, “pois acreditamos que a academia é fundamental para endossar e colaborar com o desenvolvimento das metodologias de trabalho e ensino do Instituto”. Com guias, tutoriais, capítulos de livro e diversas outras produções, o curso vêm como a cereja do bolo.

E ele veio no melhor momento possível. Eu, que já havia sido ativado pela recente leitura do artigo sobre conversação online, estava mais do que aberto a debater sobre o assunto. A primeira coisa que o conteúdo me ofereceu, portanto, foi a quebra do meu preconceito e da percepção de que o tema era demasiadamente tecnológico e pouco humano para o meu gosto. Isso porque quase todo o primeiro módulo é dedicado a uma contextualização teórica e histórica da teoria de redes, muito anterior à análise de redes sociais para internet que conhecemos hoje. Para se ter uma ideia, o debate sobre redes engloba diferentes disciplinas como Física, Biologia, Psicologia, Administração, Geografia, Sociologia e Antropologia.

“Todos estes exemplos vêm de ciências e disciplinas diferentes, com referenciais teóricos e objetivos bem variados. O que eles têm em comum? Todos eles vêm a rede como artifício cognitivo e científico que permite entender proximidades, similaridades, diferenças, conjuntos e processos de um modo muito particular. A rede transforma a complexidade em algo manejável cognitivamente e permite representá-la em visualizações quase intuitivas.”

Tarcízio Silva

Embora o curso entre em diversos exemplos dessa diversidades dos estudos de redes (justamente para mostrar a sua relevância enquanto conhecimento científico), não vou me estender muito sobre esse aspecto – até porque não tenho repertório para tal. Chamo à atenção, apenas, que é o foco do nome da disciplina e também o foco da minha quebra de preconceito, para as redes sociais. Este fenômeno é muito anterior ao que conhecemos hoje como redes sociais (ou mídias sociais), datando desde o início do século 20, com estudos do sociólogo Georg Simmel – apenas um dos vários pensadores, dentre economistas, psicólogos, dentre outros. E é compreensível que seja uma preocupação de pensadores do século 20, momento histórico onde as relações humanas mais se entrelaçaram intensamente.

O primeiro estudioso a de fato publicar algum projeto de pesquisa sobre redes foi Jacob Moreno, com o experimento Dining Table. Mas o trabalho mais famoso e que mais me chamou atenção foi o do conhecido Stanley Milgram, na década de 60, sobre a ideia de mundo pequeno. Foi nesse projeto que surgiu a famosa Teoria dos seis graus de separação, argumentando que “no mundo, são necessários no máximo seis laços de amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas”. É evidente que podemos complexificar essa teoria e tensionar, por exemplo, que o estudo foi feito nos Estados Unidos, um dos países com maior fluxo de conexões (físicas ou tecnológicas) do mundo. De qualquer forma, o que me interessa aqui não é a acuracidade da metodologia, mas a simples de ideia que estamos há de´cadas nos tornando cada vez mais conectados.

O Facebook, o maior site de rede social do mundo atualmente, também já fez uma pesquisa parecida. Em 2015, atribuíram 5 graus de separação para todos os usuários da plataforma e 4 para apenas pessoas dos Estados Unidos. No ano passado, esse número diminuiu: agora são apenas cerca de 3.57 passos entre todas as pessoas do mundo no site. Eu não sei para você, mas, para mim, parece-me um número bastante significativo. Embora o argumento da hiperconexão (não apenas entre atores, mas também para o mundo online) seja praticamente unânime e predominante, tudo isso me fez pensar o quanto – de fato – estamos conectados. E o quanto essas conexões, embora boa parte sejam “sustentadas” pela plataforma, são frutos de rastros sociais digitais – ou seja, em algum momento, houve intervenção humana.

Se o cenário de Jacob Moreno e Stanley Milgram já eram suficientes para tentar compreender as redes sociais daquela época, o atual contexto da internet – principalmente com as mídias sociais – fornece um campo de pesquisa extenso e riquíssimo para se analisar, cognitivamente, como as pessoas se articulam online. Com a liberação do chamado “pólo de emissão” (argumento de André Lemos), viramos todos, com a web 2.0, mídia. Somos nós quem fazemos a internet ser o que ela é hoje. As plataformas são importantes, podem coagir certa maneira de atuação ou serem apropriadas conforme releitura dos usuários, mas são estes que justamente produzem e consomem o que vivemos nos dias de hoje. Faz mais do que sentido, portanto, sermos capazes de compreender, analisar e estudar esses fenômenos sintáxicos.

Antes de finalizar, deixo um adendo: essa revolução da web 2.0 não – de forma alguma! – diminuiu a centralidade, relevância e influência de certos centros de informação anteriores a ela. O que percebemos hoje é que, na internet, temos hubs interacionais e informacionais, ou seja, atores com grande poder de propagação em um grupo – mas cuja soberanidade não é mais fixa ou única, disputando atenção com outros grandes e outros menores atores. Para essa discussão, vale a pena dar uma olhada no artigo que já resenhei aqui no blog de Raquel Recuero e no artigo “A força dos ‘laços fracos’ de Mark Granovetter no ambiente do ciberespaço”, de Dora Kaufman. Granovetter foi outro grande estudioso que contribuiu e hoje influencia bastante do debate sobre análise de redes sociais na internet.

Enfim, já é muito evidente para mim o valor de, principalmente na sociedade em que vivemos hoje, compreender alguns conceitos básicos sobre redes. Sendo alguém que trabalha com internet, ainda mais; sendo alguém que tem interesse por pesquisa acadêmica, mais um pouco; sendo alguém que aspira fazer pesquisa acadêmica na internet com foco em mídias sociais, então… Deixo o documento abaixo, Network Literacy: Essential Concepts and Core Ideas, produzido pelo NetSciEd – Network Science Education e traduzido em português pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados para concluir o meu argumento. Se estiver com preguiça, pode pular para a página 3 – já será o suficiente para compreender o valor das redes atualmente.

Referências bibliográficas

POLIVANOV, Beatriz. Dinâmicas identitárias em sites de redes sociais: Estudo com participantes de cenas de música eletrônica no Facebook. Rio de Janeiro, 2014.

RECUERO, Raquel. Diga-me com quem falas e dir-te-ei quem és: a conversação mediada pelo computador e as redes sociais na internet. Revista Famecos. Porto Alegre, 2009.

2 comentários

  1. […] abril de 2017, escrevi aqui no blog o texto “A minha saga com redes sociais (ou por que é importante compreendê-las)”, no qual narrava a minha relação com a disciplina de análise de redes sociais, desde o […]

  2. […] abril de 2017, publiquei aqui no blog o texto “A minha saga com redes sociais (ou por que é importante compreendê-las)“, no qual contava um pouco da minha relação com redes sociais enquanto abordagem […]

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