Categoria: Livros

Introdução à análise de redes sociais online: quais são os principais conceitos?

[Este post faz parte de uma série de resumos comentados do e-book “Introdução à análise de redes sociais online” (2017), de Raquel Recuero]

No post anterior, vimos os precedentes da análise de redes muito antes de chegarmos às redes sociais na internet (ou aos sites de redes sociais). Em resumo, no primeiro capítulo do e-book, Raquel Recuero apresenta as duas teorias metodológicas fundadoras do pensamento de redes: a Sociometria de Jacob Moreno e a Teoria dos Grafos da matemática. São desses pilares que surge a análise de redes sociais, cuja origem pode ser remontada ainda à primeira metade do século XX. Sua popularização nas últimas décadas é justificada pelo aumento de dados produzidos e disponibilizados na plataformização da vida social e também pelo avanço das técnicas (ferramentais) de análise à disposição de pesquisadores.

Outro fundamento teórico importante o qual a autora resume na primeira parte é referente à ideia de (sites de) redes sociais, a partir principalmente do conceito e discussões propostas pela americana danah boyd. A ideia de “públicos em rede” (ou networked publics) traz características específicas dos sites de redes sociais que permitiram também essa proliferação da análise de redes, sendo elas: a persistência (os registros) das interações/conexões, a replicabilidade, a escalabilidade e a buscabilidade. Tudo isso reitera as dinâmicas de audiências invisíveis, colapso dos contexts e borramento das fronteiras entre o público e o privado encontrado nesses públicos em rede que estão na internet.

A ideia de “redes sociais” é uma metáfora estrutural para que se observem grupos de indivíduos, compreendendo os atores e suas relações. Ou seja, observam-se os atores e suas interações, que por sua vez, vão constituir relações e laços sociais que originam o “tecido” dos grupos. Essas interações proporcionam aos atores posições no grupo social que podem ser mais ou menos vantajosas e lhes dar acesso a valores diferentes. […]

O grafo é, desse modo, uma representação de dois conjuntos de variáveis (nós e conexões). Concebendo uma rede social como uma dessas representações, os nós seriam os atores sociais (compreendendo esses atores como organizações sociais, grupos ou mesmo indivíduos no conjunto analisado) e suas conexões (aqui entendidas como os elementos que serão considerados parte da estrutura social, como interações formais ou informais, conversações etc.).

RECUERO, 2017, p. 23.

O segundo capítulo do e-book segue com foco na teoria por trás das discussões, apresentando diversos conceitos importantes (ou, até mesmo, básicos) para a análise de redes sociais na internet. Ela começa de uma concepção mais geral em torno das redes sociais em sua composição representativa, até chegar nos elementos que as constituem: nós (ou vértices) e arestas (ou laços) – cujas conexões entre eles podem representar diferentes tipos de relações sociais. É a partir daí que elenca conceitos como laços fracos, capital social, homofilia, etc. – cada um desses está diretamente ligado à representação das redes “como sociogramas (grafos sociais), que são analisados a partir das medidas de suas propriedades estruturais”.

É importante ter em vista que a representação dos dados não é somente um artifício visual-estético, mas tem fundamentação nas matrizes matemáticas da teoria dos grafos, que estipulam “as relações entre os atores do grupo” e “servem de base para a estrutura geral da rede”. Nesse mesmo sentido, a representação de uma rede é também uma abordagem teórico-metodológica, em que os nós (ou nodos) podem representar coisas diferentes e até distintas. A autora apresenta como exemplo o caso das redes bimodais, em que nós de uma mesma rede podem representar tanto indivíduos quanto categorias ou grupos.

Exemplo de rede bimodal em que os nós representam 1) imagens e 2) labels associadas a essas imagens

– As conexões: laços sociais [e o conceito de laços fracos]

Tão importantes quanto os nós são as chamadas arestas ou laços (ou, ainda, arcos), que indicam a conexão entre os atores – nas redes sociais, pode representar interação, conversação, relação de amizade/pertencimento, etc. Essa agência necessária, ou seja, o “esforço” ou a “ação” que envolve esse indicador é o que levou Mark Granovetter (1973) a propor uma classificação de laços fortes, fracos ou ausentes: ainda no caso de redes sociais, o primeiro estaria associado a relações de maior proximidade e/ou intimidade, “enquanto os laços fracos representariam associações mais fluidas e pontuais”; por fim, aqueles ausentes “seriam insignificantes em termos de importância estrutural ou completamente ausentes”.

Granovetter (1973, p. 1361) define a “força” do laço como “uma combinação (provavelmente linear) da quantidade de tempo, da intensidade emocional, da intimidade (confiança mútua) e da reciprocidade que caracterizam o laço”. Desse modo, presume-se que a quantidade de interações entre dois atores pode representar, assim, a força da conexão, uma vez que conexões fortes requerem maior investimento do que conexões fracas. A partir dessa discussão, podemos observar que os tipos de laço social representam conexões que são qualitativamente diferentes, e é um desafio importante compreender como a estrutura construída através dos dados e da análise de redes pode, efetivamente, representar esse conceito complexo.

RECUERO, 2017, p. 26.

A autora aponta como, na análise de redes (sociais), “as conexões são representadas de modo numérico e direcional, indicando um valor que é relacionado ao ‘peso’ da conexão” – é, portanto, essa métrica que auxilia na identificação dos tipos de laços sociais existentes entre determinados atores. Lembra também que as conexões (ou seja, as arestas) podem ser direcionadas, como no caso de interações (online ou off-line); ou não direcionadas, como no caso de laços de amizade (do Facebook), por exemplo. Esse (não) direcionamento é fundamental para calcular o peso das conexões.

REDE DIRECIONADA (GRAFO DIRECIONADO)

As conexões possuem direção (geralmente representados por uma seta), ocorre quando as conexões estabelecidas não são iguais (ou não têm o mesmo peso) [p. 36]

REDE NÃO DIRECIONADA (GRAFO NÃO DIRECIONADO)

As conexões não possuem direção ou a direção não importa (geralmente representada por uma linha), mostram uma matriz na qual os dados dessas conexões são exatamente iguais entre os dois atores. [p. 36]

Outro conceito também muito importante que está relacionado aos laços (fortes) é o de clusters ou agrupamento, que é “um conjunto de nós mais densamente conectados (ou mais inteconectados) do que os demais na rede”, ou seja, em que as conexões são mais recíprocas. Essa característica fica evidente na estrutura da rede, em que os nós estão mais próximos “ou porque interagem mais (e suas arestas têm um peso maior) ou porque possuem mais conexões entre si do que com os demais nós da rede”. É justamente essa presença de laços mais fortes que indicam, em termos sociológicos, características mais próximas das definições de comunidade.

– Capital social e os valores das conexões

Recuero também parte do conceito de laços sociais de Granovetter (1973) para introduzir a discussão sobre capital social, cujas formas correspondem às vantagens estruturais das quais os atores se beneficiam (informação, intimidade e reciprocidade). A discussão em torno desse conceito, entretanto, é muito mais complexa e extrapola os estudos de redes sociais em seu caráter metodológico, mas o que interessa aqui é o que está no cerne da expressão: se trata de um capital, há tanto negociação quanto acúmulo (de valores, posições, vantagens, etc.), e esses dois aspectos têm relação direta com as matrizes das redes.

Desse modo, “as trocas sociais implicam na construção de valores cuja percepção por parte do grupo também atua na construção de relações de confiança, resultado dos investimentos individuais na estrutura”. A autora aponta que a maioria dos autores concorda, portanto, que o capital social representa um valor associado à estrutura social – “Burt (1992) argumenta que o conceito é uma metáfora para as transação que caracterizam as interações sociais”, enquanto Putnam (2000) separa dois tipos: bridging (pontes ou laços fracos entre atores de diferentes grupos) e bonding (qualidade/força das conexões ou laços fortes num mesmo grupo).

Estar em uma rede social, assim, permite a construção de valores para os atores. Desse modo, as relações sociais são constituídas de trocas através das quais os atores buscam atingir objetivos e interesses, como um sistema econômico. É preciso investir (interagir) na estrutura social para colher os benefícios. Os valores de capital social são, desse modo, associados a normas de comportamento, participação e às próprias conexões que alguém possui, além de vantagens competitivas advindas desses valores. (BURT, 1992, p. 348)

RECUERO, 2017, p. 29.

Na perspectiva de redes, portanto, os laços sociais (e, portanto, sua posição na estrutura) são como a moeda que garantem acesso a determinados bens, como informações novas e diferentes (mais associados a laços fracos) ou confiança e intimidade (mais associados a laços fortes). Essas vantagens são atribuídas não somente aos indivíduos (ou atores), mas para os grupos sociais (os clusters) como todo, que detêm valores próprios entre si. E além da circulação de informação, mais associado ao conceito de capital social nos estudo das redes, há também outros valores disponíveis em negociação.

  • BERTOLINI E BRAVO (2004) – tipologia de níveis de capital na rede
    • Primeiro nível: apropriado de modo individual e relacionado a elementos de laços fracos / tipos: 1) as conexões sociais que os atores possuem, 2) as informações às quais têm acesso e 3) o conhecimento das normas associadas ao grupo que pertencem;
    • Segundo nível: apropriado de modo coletivo e relacionado a elementos de laços fortes / tipos: 1) a confiança no ambiente social e 2) a institucionalização relacionado ao reconhecimento do grupo como tal.

Outro valor também muito importante na perspectiva dos sites de redes sociais é aquele relacionado à popularidade: “é uma concessão, no sentido de que o ator popular concentra mais capital social, em termos de atenção e visibilidade de seus pares, do que outras pessoas não populares”. Fica ainda mais evidente, neste caso, a relação de apropriação e escassez, em que os próprios recursos de vínculos sociais (a serem investidos ou capturados) são também limitados. Recuero retoma o trabalho de Barabási (2003) sobre a presença de conectores (grupos pequenos muito conectados entre si) para complementar o argumento de que todos detemos de capital social, mas a sua lógica própria exige a distribuição desproporcional de recursos.

– Homofolia, [Pontes, Conexões Reduntantes,] Buracos Estruturais e Fechamentos

O conceito de homofilia, de modo simplificado, diz respeito à ideia de que “pessoas mais próximas tendem a ter interesses comuns e padrões de comportamento semelhantes”, seja isso tanto efeito quanto causa. Ou seja, um grupo social pode ser identificado enquanto tal justamente por agregar pessoas “parecidas”, o que resulta “no fato de que esses atores tendem a ter acesso às mesmas fontes e a circular as mesmas informações”. Essa característica, portanto, também se relaciona ao capital social, “uma vez que pode auxiliar na construção e no fortalecimento dos laços sociais que vão gerá-lo”.

Outro conceito também muito importante nas redes sociais são as chamadas conexões “pontes“, aquelas que se conectam a vários grupos, transitando em círculos variados e aproximando grupos distantes/diferentes entre si. São fundamentais para que as informações circulem na rede, formadas geralmente de laços fracos. O conceito de “buraco estrutural” parte dessa ideia, em que os buracos “representam a ausência de conexões entre dois nós que possuem grupos/fontes informativas complementares ou não redundantes”.

Um cluster geralmente tem conexões redundantes, ou seja, conexões que interligam o mesmo conjunto de nós. Já conexões não redundantes são aquelas que interligam os atores de diferentes grupos. Conexões redundantes o são porque nelas circulam as mesmas informações. Já as não redundantes são aquelas capazes de trazer informações novas para o grupo. Assim, como dissemos, as conexões transmitem informação e estão relacionadas ao conceito de capital social. O buraco estrutural, portanto, representa uma falha no caminho de transmissão de informações, que poderia dar acesso a fontes de informação diferentes para os dois grupos em questão. Desse modo, aqueles atores que fazem a “ponte” (ou mediação) entre diferentes grupos possuem uma vantagem em relação aos demais, pois têm acesso a tipos diferentes de informação, enquanto que os buracos estruturais representam uma desvantagem para os grupos.

RECUERO, 2017, p. 32.

Já a ideia de “fechamento da rede” é o oposto dos buracos estruturais: “é a qualidade associada a todos os nós de uma determinada rede estarem interconectados”. Está associada aos chamados clusters, que são grupos mais fechados entre si (atores que compartilham de mais conexões uns com os outros) – cujo fechamento completo (inteiramente conectado) é chamado de clique, “um grupo em que todas as conexões possíveis existem”. Assim como o conceito de homofilia, pontes, conexões reduntantes e buracos estruturais, também corresponde à noção de capital social por operar no intercâmbio relacional da rede.

– Graus de separação [e estrutura de mundo pequeno]

Vimos na primeira parte que um dos fundamentos da Teoria dos Grafos é o enigma das Pontes de Königsberg, em que foi feito a tentativa de calcular qual era a distância mínima entre dois pontos sem repetir um mesmo caminho. Na perspectiva das redes, isso veio a se chamar de “grau de separação”, ou seja, a distância entre dois nós. As métricas de “caminho médio” ou “distância média” (average path) calculam justamente o caminho médio mais curto entre todos os nós da rede, podendo indicar “o quão interconectada está a rede pelos diversos laços existentes”.

Recuero parte do conceito de grau de separação para falar da teoria de mundo pequeno, que foi apropriada no estudo de redes de modo que “uma rede mundo pequeno é aquela em que um conjunto de nós é aproximado na rede por algumas conexões, que terminam por reduzir a distância (grau de separação) entre todos os nós na estrutura”. A importância aqui está no fato de que nós (ou indivíduos) mais conectados (mais conhecidos) podem diminuir significativamente a distância entre os demais atores da rede.

A estrutura de mundos pequenos, assim, é encontrada em redes sociais e está relacionada à presença de “pontes” entre os vários nós da rede e à redução do “caminho” (path) entre dois nós quaisquer da rede pela presença dessas conexões, que são apresentadas por autores como Granovetter (1973) e Watts e Strogats (1998) como conexões fracas ou associadas aos laços fracos, e portanto, ao capital social do tipo bridging de Putnam (2000), pois permitem que os atores tenham acesso a fontes diferentes de informações

RECUERO, 2017, p. 34.

REDE EGO

A estrutura é desenhada a partir de um indivíduo central, determinando, a partir desse “ego”, um número de graus de separação; [p. 37]

REDE INTEIRA

É mapeada na sua integridade, quando é possível limitar essa rede de modo externo [p. 37].


Recapitulando, neste post (e neste segundo capítulo) vimos os conceitos de: redes sociais, nós/vértices e conexões/arestas, redes bimodais, laços fracos/fortes/ausentes, redes direcionadas e não direcionadas, clusters, capital social, briding/bonding, homofilia, pontes, conexões redundantes, buracos estruturais, fechamentos, graus de separação, estrutura de mundos pequenos, redes ego e redes inteiras. Anotou tudo?

Referências citadas neste capítulo

  • BURT, R. The Social Structure of Competition. In: BURT, R. Structural Holes: the social structure of competition. Cambridge: Harverd University Press, 1992.
  • BERTOLINI, S.; BRAVO, G. Social Capital, a Multidimensional Concept. [S.l.:s.n.], [2004]. Disponível em: http://www.ex.ac.uk/shipss/politics/research/socialcapital/other/bertolini.pdf. Acesso em: 17 out. 2004.
  • BARABÁSI, A. Linked: How everything is connected to to Everything Else and What It Means for Business, Science, and Everyday Life. New York: Basic Books, 2003.
  • GRANOVETTER, M. S. The Strength of Weak Ties. American Journal of Sociology, Chicago, v. 78, n. 6, p. 1360 – 1380, 1973.
  • PUTNAM, R. D. Bowling Alone: The collapse and Revival of American Community. New York: Simon e Schuster, 2000.
  • WATTS, D.; STROGATZ, S. Collective dynamics of ‘small-world’ networks. Nature, [S.l.], v. 393, p. 440-442, 1998.

Introdução à análise de redes sociais online: o que é a análise de redes?

[Este post faz parte de uma série de resumos comentados do e-book “Introdução à análise de redes sociais online” (2017), de Raquel Recuero]

Em abril de 2017, publiquei aqui no blog o texto “A minha saga com redes sociais (ou por que é importante compreendê-las)“, no qual contava um pouco da minha relação com redes sociais enquanto abordagem teórico-metodológica. Nesta época estava começando a escrever meu TCC (sobre identidade nordestina em sites de redes sociais) e tinha acabado de dar início também (como relato no post) ao curso de Análise de Redes para Mídias Sociais do IBPAD. Em dezembro desse mesmo ano, Raquel Recuero lançou pela Coleção Cibercultura/Lab404 da EDUFBA um e-book introdutório sobre análise de redes sociais online.

Três anos depois, muita coisa já aconteceu: apresentei minha monografia com uma metodologia atravessada por análise de redes, ofereci uma palestra em parceria com Toth no Social Media Week SP 2018 sobre o assunto, escrevi três artigos acadêmicos (e um capítulo de um livro no prelo) utilizando redes semânticas e outro com redes de imagens; dentre vários outros projetos que assumi no trabalho com redes de vídeos/canais do YouTube, tweets/perfis, etc. Aqui no blog, também produzi algumas análises “simples” com redes semânticas e de imagens. Mais recentemente, fui responsável por um relatório de influenciadores sobre a COVID-19 no Twitter.

Com certeza o Pedro de 2017, ainda bastante resistente a análise de redes, não esperava que tudo isso fosse (ou sequer poderia) acontecer. E faço essa introdução porque esta série que inicio com este post tem também essa função incentivadora (assim como foi a palestra no SMWSP), para aqueles que têm vergonha de perguntar, que tem medo ou que acham desnecessária (ou demasiadamente “quantitativa”, como era o meu caso) essa abordagem teórico-metodológica. A ideia é utilizar a excelente publicação de Raquel Recuero para a editora da UFBA como fonte teórica e propulsora para uma iniciação ao trabalho de análise de redes para mídias sociais.

É importante salientar que há outra obra, mais completa e publicada por Recuero em parceria com Gabriela Zago e Marcos Bastos em 2015, “Análise de Redes para Mídia Social” (Editora Sulina). O e-book produzido para a Coleção Cibercultura/Lab404 da UFBA é, como o próprio nome já indica, uma introdução à temática, ainda que traga novas referências como fruto da própria experiência de aprendizado constante da autora. Trata-se de uma obra condensada, “uma pequena compilação dos principais conceitos e elementos da ARS” cujo norte “está na busca das aplicações empíricas e no aprendizado pela prática”.

Esse “guia introdutório e simplificado de conceitos, práticas e formas de análise” está dividido em quatro capítulos: 1. O que é Análise de Redes?; 2. Quais são os principais conceitos de ARS?; 3. Quais são as principais métricas de Análise de Redes? 4. Como coletar, analisar e visualizar dados para Análise de Redes?. Os títulos como perguntas reitera a proposta direto ao ponto da obra, em que cada parte do texto é desencadeada conforme as discussões abordadas, “fornecendo as bases para a compreensão de como fazer análise de redes e a seguir, trazendo elementos complementares”. Neste primeiro post, sigamos apenas com o primeiro capítulo.

O QUE É ANÁLISE DE REDES?

O primeiro esforço que a autora faz é o de deixar claro que a análise de redes sociais é uma abordagem para analisar grupos sociais, ou seja, é muito anterior (quase um século) à análise de redes online. Suas premissas metodológicas, com respaldo teórico, têm fundamento (ou raízes) na Sociometria e na Teoria dos Grafos, as quais serão explicadas mais adiante. De modo simplificado, a análise de redes (sociais) é uma perspectiva teórico-metodológica que permite estudarmos estruturas e fenômenos sociais como redes.

“A rede dentro da qual qualquer indivíduo está inserido (ou seu grupo social) é também a responsável por uma grande parcela de influência sobre esse indivíduo. O lugar de alguém na estrutura social advém de uma série complexa de relações, da qual emergem normas, oportunidades e, inclusive, limitações. […] Ou seja, a percepção da estrutura em torno dos atores é fundamental para que possamos compreender também seu comportamento. Além disso, o comportamento individual dos atores reflete-se na rede como um todo, moldando-a e adaptando-a, sendo também, portanto, fundamental para que possamos compreender a estrutura em si.”

RECUERO, 2017, p. 13.

Ela complementa que “a ideia que embasa os estudos das estruturas sociais é aquela de que os indivíduos, os atores sociais, estão inseridos em estruturas complexas de relações com outros atores”. Os grupos sociais (família, escola, trabalho, etc.) os quais nós enquanto indivíduos fazemos parte “têm um papel fundamental no [nosso] comportamento e na [nossa] visão de mundo”, em que as relações que estabelecemos conferem determinadas posições nas redes, que são tanto produto quanto produtora das interações e associações.

– De onde vem a Análise de Redes Sociais?

A origem da análise de redes sociais pode ser creditada a variados campos do saber (numa perspectiva interdisciplinar) no início do século XX, sobretudo a partir da década de 30. A posição da autora a é de seguir com o consenso estabelecido pela revisão literária de que há dois pilares fundadores: a Sociometria e a Teoria dos Grafos, “embora traços dos conceitos possam ser observados em trabalhos muito anteriores”. Sociologia, Antropologia e Psicologia são apenas algumas das disciplinas que, ancoradas na contribuição da Matemática, começaram a esquematizar um método para a análise de redes sociais.

Scott (2001) credita o “nascimento” da ARS como abordagem ao desenvolvimento da Sociometria, que trouxe sistematização analítica a partir de fundamentos da teoria dos grafos. Já o desenvolvimento desse método, o autor atribui aos pesquisadores que, na década de 1930, passaram a estudar os padrões de relações e a formação de grupos sociais como cliques e, finalmente, aos antropólogos que a partir desses elementos começaram a estudar os conceitos de “comunidade”. Para o autor, são essas tradições que vão formar aquilo que, na década de 1960, vai se constituir na tradição dos estudos de análise de redes.

RECUERO, 2017, p. 14.

A sociometria é a denominação dada à abordagem de Jacob Moreno na invenção do sociograma (1930), “a representação da rede, no qual os atores sociais são apresentados como nós, e suas conexões, representadas por linhas que unem esses nós”. Os estudos do psicólogo, com ajuda da sua colaboradora Helen Jennings, tinha como objetivo “medir as relações dos grupos, compreendendo […] como esses conjuntos de atores eram estruturados”. Foi fundamental para direcionar o foco à “estrutura social para que se compreendesse a dinâmica dos grupos”, embora só tenha sido desenvolvida (reabordadas por outros grupos) como análise de redes após a década de 50.

Já a Teoria dos Grafos foi responsável por fornecer “formas mais sistemáticas de medida […]” das estruturas sociais, cuja teorização das redes dispõem as principais métricas para a compreensão das posições dos nós e de sua própria estrutura. É uma disciplina da matemática “que estuda conjuntos de objetos e suas conexões”, cuja origem estaria “no trabalho de Ëuler e na solução que ele propôs para o enigma das Pontes de Königsberg”. Cartwright e Harary teriam sido os primeiros a aplicar grafos à leitura dos sociogramas de Moreno, o que permitiu “que novas perspectivas fossem compreendidas dentro da dinâmica dos grupos sociais”.

Mas se a análise de redes sociais tem sua consolidação em meados do século XX, com sementes originárias datando de décadas antes (até Simmel e Weber, por exemplo), por que há uma crescente popularização dessa abordagem? Recuero credita isso à “ampliação do foco do estudo de grupos pequenos para grupos em larga escala”, fazendo com que novas disciplinas cruzem fronteiras entre as Ciências Exatas e Ciências Sociais e Humanas. Duas justificativas para esse novo contexto da análise de redes sociais possa surgir são: “a disponibilização de dados sociais, especialmente pelas ferramentas digitais de comunicação” e; “o uso de métodos computacionais, que permitiram a coleta e a análise desses dados sociais”.

– Redes sociais e sites de redes sociais são a mesma coisa?

Em julho de 2019, a autora publicou no Medium o texto “Mídia social, plataforma digital, site de rede social ou rede social? Não é tudo a mesma coisa?”, somente dois anos após o lançamento do e-book. Essa é uma pergunta que provavelmente deve continuar sendo feita ainda por muito tempo, mesmo com todos os (constantes) esforços para respondê-la. O problema está principalmente no fato de que, no Brasil, chamamos tudo de “rede social”; no entanto, como a própria discussão da origem das análises de redes sociais já indica, redes sociais são muito “anteriores” aos sites de redes sociais.

O argumento apresentado no e-book parte do conceito primeiro proposto pelas autoras danah boyd e Nicole Ellison em publicação de 2007 (a data é importante para contextualizar o momento pelo qual a internet passava, pensando Facebook, Orkut, etc.) que “algumas ferramentas online apresentam modos de representação de grupos sociais baseados nas relações entre os atores”. Seriam características dessas: “(1) permitir que os atores construam um perfil público ou semipúblico; (2) permitir que esses atores construam conexões com outros atores; e (3) permitir que esses atores possam visualizar ou navegar por essas conexões“.

“Enquanto uma rede social está relacionada à percepção de um grupo social determinado pela sua estrutura (a “rede”), que é geralmente oculta, pois só está manifesta nas interações, as ferramentas sociais na internet são capazes de publicizar e influenciar essas estruturas sociais. (BOYD; ELLISON, 2007) Ou seja, o Facebook, por si só, não apresenta redes sociais. É o modo de apropriação que as pessoas fazem dele que é capaz de desvelar redes que existem ou que estão baseadas em estruturas sociais construídas por essas pessoas […].”

RECUERO, 2017, p. 16.

Sites não necessariamente refletem redes sociais do espaço offline, mas “amplificam conexões sociais, permitem que estas apareçam em larga escala (RECUERO, 2009) e também atuam de modo a auxiliar na sua manutenção”. Pessoas que você conhece (ou conheceu) offline, por exemplo, podem manter uma conexão com você no Facebook devido à facilidade de manutenção desse laço fraco; ou, ainda, pessoas que você não conhece offline podem aparecer no seu news feed enquanto perfil ou até mesmo publicações, devido à característica própria da ferramenta. As redes sociais na internet, portanto, “são outro fenômeno, característico da apropriação dos sites de rede social.”

Outro conceito que Recuero traz de boyd para diferenciar os sites de redes sociais (e, portanto, as redes sociais online) é o de “públicos em rede” (networked publics). “Embora esse conceito não esteja diretamente relacionado com análise de redes, ele auxilia a compreensão de como os sites de rede social influenciam os processos de representação dos grupos“, explica. São affordances que explicitam “elementos que emergem das características técnicas dessas ferramentas e suportam suas apropriações“:

  1. Persistência: interações/conexões dos meios online permanecem no tempo (podem ser recuperadas); o que permite que a conversa seja assíncrona (atores não estão presentes ao mesmo tempo), ampliando “as possibilidades de manutenção e recuperação de conexões e valores sociais”.
  2. Replicabilidade: como as interações/conexões permanecem, são mais facilmente replicadas (podem circular mais rápida e fidedignidamente);
  3. Escalabilidade: a junção de esses dois elementos permite que as informações percorram toda a estrutura de redes (viralidade);
  4. Buscabilidade: devido à permanência (registro), as informações podem ser buscáveis.

“São esses elementos que proporcionam os contextos nos quais podemos perceber como as redes sociais na internet podem ser diferentes em suas apropriações e práticas sociais, e na circulação de informações das redes sociais offline.”

RAQUEL RECUERO

Ainda pensando num contexto mais conversacional (e não de laços estabelecidos, como amigos/seguidores – ou conexões associativas, para utilizar o conceito da própria), Recuero também recupera boyd para destacar as dinâmicas dos públicos em rede. O foco dessas outras características, entretanto, estaria no modo como “influenciam as redes sociais que emergem desse processo”:

  1. Audiências invisíveis: diferente das redes offline, em que a autora argumenta que conseguimos “peceber” com mais facilidade (por ser menor e menos conectada), as redes de SRSs são “imediatamente discerníveis” pelas “audiências que rodeiam as interações no espaço online”.
  2. Colapso dos contextos: ao permanecerem e serem replicadas, deslocamentos de contextos são comuns, o que potencializa a possibilidade de conflitos entre grupos distintos.
  3. Borramento das fronteiras entre o público e o privado: diz respeito à “dificuldade em demarcar espaços que são tipicamente dados nos grupos sociais offline” (família, amigos, etc.), o que “acaba por expor os atores, aumentando a percepção de intimidade e sua participação pela rede”.

– Para que serve a ARS?

Como mencionado anteriormente, a análise de redes sociais tem se popularizado devido a dois fatores principais: “graças ao aumento da quantidade de dados sociais disponibilizados por conta dos usos das ferramentas de comunicação mediada pelo computador” e, também, “por ser uma abordagem bastante propícia para o estudo e a visualização de grandes quantidades de dados”. É nesse contexto que tem sido utilizada em áreas como Comunicação Social e Sociologia Computacional, “para compreender fenômenos associados à estrutura das redes sociais, principalmente, online”.

A autora encerra o primeiro capítulo, portanto, listando os cenários em que a análise de redes sociais pode ser utilizada: 1) estudos das relações entre os elementos da estrutura do fenômeno; 2) estudos nos quais o objeto possa ser estruturalmente mapeado; 3) estudos nos quais o problema de pesquisa foque um conjunto de dados passível de ser coletado e mapeado com os recursos disponíveis. Ela está chamando a atenção para o fato de que nem toda pesquisa cabe uma abordagem de redes, por isso é preciso ficar atento a esses “critérios” básicos e se perguntar: a resposta que eu preciso responder pode ser alcançada com a análise de redes?

Se você quer identificar como o capital social é constituído em determinado grupo, como a informação circula num determinado grupo social ou quais são os subgrupos – ou clusters – dentro de uma grande grupo – ou rede, por exemplo, sim. Se o objeto pode ser mapeado e sua estrutura será visível (os dados são acessíveis), também. Se há a possibilidade de realizar todo o processo, de mapeamento à coleta e posterior análise seguindo as premissas metodológicas da análise de redes sociais, também.

Referências citadas neste capítulo

  • SCOTT, J. Social Network Analysis: Ahandbook. 2. ed. New York: SAGE, 2001.
  • BOYD, D.; ELLISON, N. Social Network Sites: Definition, History, and Scholarship. Journal of Computer-Mediated Communication, [S.l.], v. 13, n. 1, p. 210-230, 2007.
  • BOYD, D. Social Network Sites as Networked Publics: Affordances, Dynamics, and Implications. In: PAPACHARISSI, Z. (Ed.). ANetworked Self: Identity, Community, and Culture on Social Network Sites. New York: Routledge, 2010. p. 39-58
  • BRUNS, A. et al. #qldfloods and @QPSMedia: Crisis Communication on Twitter in the 2011 South East Queensland Floods. Brisbane, Qld: ARC Centre of Excellence for Creative Industries and Innovation, 2012.
  • BRUNS, A.; BURGESS, J. E. Researching news discussion on Twitter: New methodologies. Journalism Studies, Florida, v. 13, 2012.
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  • FREEMAN, L. The development of social network analysis: a study in the sociology of science. Vancouver: Empirical Press, 2004.
  • MALINI, F. Um método perspectivista de análise de redes sociais: Cartografando topologias e temporalidades em rede. In: ENCONTRO DACOMPÓS, 25., 2016, Goiânia. Anais… Campós: Goiânia, 2016. Disponível em: http://www.compos.org.br/biblioteca/compos_malini_2016_3269.pdf. Acesso em: 23 de maio de 2017
  • RECUERO, R. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.
  • RECUERO, R. A Conversação em Rede: comunicação mediada pelo computador. Porto Alegre: Sulina, 2012.
  • RECUERO, R. Contribuições da Análise de Redes Sociais para o estudo das redes sociais na Internet: o caso da hashtag #Tamojuntodilma e #CalaabocaDilma. Revista Fronteiras, São Leopoldo, v. 16, p. 60-77, 2014.
  • RECUERO, R.; BASTOS, M. T.; ZAGO, G. Análise de Redes para Mídia Social. Porto Alegre: Sulina, 2015.
  • WASSERMAN, S.; FAUST, K. Social Network Analysis: methods and aplications. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

Um discurso sobre as ciências

O texto “Um discurso sobre a ciências” (1987), de Boaventura de Sousa Santos, chegou até mim na primeira aula de Epistemologias que tive na pós. Refiro-me a ele como texto porque, ao lermos na própria sala de aula, ainda não tinha ciência de que aquele artigo de 22 páginas já havia sido publicado como livro com mais de 90 páginas em sua oitava edição pela Editora Cortez. Não suficiente, uma continuação com textos de vários autores compunham a coletânea “Conhecimento prudente para uma vida decente – ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado”, de 2004.

Do mesmo modo que sua primeira publicação, feita em Portugal em 1987, causou um rebuliço intenso na comunidade acadêmica, também me impactou profundamente antes mesmo de descobrir todo esse contexto por trás da obra. Se, ao finalizar a leitura, já tinha como afirmativa de que ele precisava ser leitura básica em qualquer (ou melhor, em todas) disciplina(s) de graduação, depois que descobri toda a polêmica por trás de sua publicação (e continuações/revisões), não tenho dúvida de que ele deve ser apresentado e discutido sempre nas primeiras aulas. Sobre essas polêmicas, o autor explica no prefácio (da 8ª edição, que foi a que adquiri):

Em meados dos anos 1990, eclodiu, primeiro na Inglaterra e depois nos EUA, um novo episódio de debate aceso entre positivistas e antipositivistas, entre realistas e construtivistas, que em breve se transformou numa nova guerra da ciência. O momento mais intenso desta guerra ficou conhecido pelo nome de Sokal Affair, por ter tido origem num embuste redigido pelo físico matemático Alan Sokal e publicado na revista Social Text, com o objetivo de denunciar as supostas debilidades das posições antipositivistas ditas pós-modernas. Neste artigo, Sokal menciona, como textos representativos desta corrente, Um Discurso sobre as Ciências e Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Logo depois, o esclarecimento do embuste é publicado em Língua Franca (1996, 62/64), num artigo intitulado “A Physicist Experiments in Cultural Studies”. Em 1997, Sokal publica, junto com Jean Bricmont, o livro Impostures Intellectuelles, em que é desenvolvida a crítica aos filósofos e cientistas sociais “pós-modernos” franceses, genericamente acusados de uso incorrecto de teorias e conceitos das ciências físico-naturais. Entretanto, em 2002, foi publicado em Portugal um livro intitulado O Discurso Pós-moderno contra a Ciência: obscurantismo e irresponsabilidade, de autoria de António Manuel Baptista. Em grande medida, este livro repete, e nem sempre corretamente, os argumentos de Alan Sokal e dos que, do seu lado, intervieram nas guerras da ciência, tomando Um Discurso sobre as Ciências como o seu principal alvo. […]

(SOUSA DOS SANTOS, p.9-10)

Hoje, com 24 anos, formado e já no mestrado, consigo entender (e, metaforicamente, visualizar) tudo que engloba e atravessa esse trecho. Acho fundamental a sua leitura para absorver os argumentos que o autor levanta, mas – e talvez até mais enfaticamente – acho ainda mais relevante essa contextualização por trás da obra. A academia, em várias instâncias e de diferentes formas, sempre me ajudou/me ajuda a compreender melhor o mundo, e penso que o próprio caráter pedagógico-social do livro já reflete o que vemos para além de seus muros: é tudo disputa, é tudo luta – é tudo discurso (que envolve também performance) + relação de poder.

Parto dessa breve contextualização/explicação porque ela dialoga (ou introduz) também muito da própria proposta de conteúdo do texto: provocar as ordens de saber dominantes. Ainda que seja do final da década de 80, é extremamente atual pela aderência do debate com a força que ganhou nos últimos anos os estudos decoloniais/pós-coloniais/anti-coloniais (o próprio Boaventura é um dos organizadores da obra Epistemologias do Sul, possivelmente a mais popular sobre o tema no Brasil) e pela discussão explicitamente política que envolve fake news, pós-verdade, etc. – no geral, o intenso debate sobre como combater o anticientificismo e suas derivações.

Sem mais delongas, apresento a seguir um resumo comentado (como já é de costume aqui no blog) da obra, que está dividida em três grandes partes: (I) O paradigma dominante, na qual Boaventura situa como a ciência e o método científico se estabeleceu como modo de ver/crer/saber regente; (II) A crise do paradigma dominante, quando aponta os problemas que desencadearam da lógica mecanicista da ciência moderna e; (III) O paradigma emergente, onde enuncia alguns dos pressupostos fundamentais para a concepção do que veio a se convencionar (e se criticar) de ciência pós-moderna (todo conhecimento é social, local/total, autoconhecimento e visa o senso comum).

Antes de entrar no texto, vale explicar (para quem não conhece) algumas das terminologias frequentemente utilizadas pelo autor: epistemologia (e suas derivações, como “condições epistêmicas”) é, basicamente, uma ordem de conhecimento – ou seja, é o modo de “fazer crer”, como, por exemplo, o método científico; positivismo (e, novamente, suas derivações, como antipositivismo, linha de argumento a qual o autor se alinha) é uma corrente de pensamento ancorada nos ideais de Auguste Comte, na qual a razão é produto indissociável do progresso – ou seja, só a iluminação do conhecimento (científico) seria capaz de levar uma sociedade para frente.

E é nesse tom que Boaventura inicia o texto: estamos (já há algumas décadas) num período de transição ambíguo e complexo “descompassado em relação a tudo o que o habita”. Ele inicia seu argumento afirmando que “perdemos a confiança epistemológica”, o que tem causado uma “sensação de perda” tanto pela perda em si quanto por não sabermos ao certo o que estamos perdendo. No entanto, o mesmo sentimento que assusta é também o que entusiasma: para surgir o novo, precisamos encarar e deixar para trás a estabilidade que nos ancorou por tanto tempo no velho.

Estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica. As condições epistémicas das nossas perguntas estão inseridas no avesso dos conceitos quo utilizamos para lhes dar resposta. É necessário um esforço de desvendamento conduzido sobre um fio de navalha entre a lucidez e a ininteligibilidade da resposta. São igualmente diferentes e muito mais complexas as condições sociológicas e psicológicas do nosso perguntar. É muito diferente perguntar pela utilidade ou pela felicidade que o automóvel me pode proporcionar se a pergunta é feita quando ninguém na minha vizinhança tem automóvel, quando toda a gente tem excepto eu ou quando eu próprio tenho carro há mais do vinte anos.

(SOUSA SANTOS, p.17-18)

O paradigma dominante

Na primeira seção, o autor caracteriza brevemente a ordem científica hegemônica, com uma preocupação latente em contextualizar social e historicamente seu surgimento e viradas epistêmicas. Explica, por exemplo, que esse paradigma é fruto da revolução científica do século XVI, baseado nos estudos das ciências naturais e que só chega – ou melhor, impõem-se – sobre as ciências sociais no século XIX. Essa racionalidade científica seria um modelo global e totalitário, “na medida em que nega o carácter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas”.

O que Boaventura se propõe a explicar aqui é como o conhecimento científico se consagrou com parâmetros e propostas rigorosas que se diferenciam dos outros tipos de conhecimento hegemônicos anteriores, como a teologia e a metafísica. Essa característica, que soaria como universal – no sentido que seria válida para todos, um “ponto zero comum” -, deu aos protagonistas dessa revolução toda a confiança necessária para legitimar esse novo modo de saber. Para além da simples observação dos fatos, a ciência moderna se distinguiu do saber aristotélico e medieval ao estabelecer uma nova visão do mundo e da vida que “desconfia sistematicamente das evidência da nossa experiência imediata”.

As ideias que presidem à observação e à experimentação são as ideias claras e simples a partir das quais se pode ascender a um conhecimento mais profundo e rigoroso da natureza. Essas ideias são as ideias matemáticas. A matemática fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria. […] Deste lugar central da matemática na ciência moderna derivam duas consequências principais. Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objecto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou. […] Esta distinção entre condições iniciais e leis da natureza nada tem de “natural”. Como bem observa Eugene Wigner, é mesmo completamente arbitrária. No entanto, é nela que assenta toda a ciência moderna.

(SOUSA SANTOS, p. 26-29)

Em outras palavras, o autor está dizendo que a ciência estabeleceu um protocolo de atuação que visa a formulação de leis a partir de regularidades observadas a fim de prever o futuro. Neste contexto, explica os quatros tipos de causa (essência da ciência moderna) para Aristóteles: a material, a formal, a eficiente e a final. “As leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas”, pontua. Ou seja, o propósito fundamental da ciência moderna é o de reprodutibilidade: compreender como acontece/aconteceu no presente/passado para que seja possível repetir no futuro.

A ideia de ordem e estabilidade do mundo é o pressuposto principal para esse projeto epistêmico, que também se traduz como pré-condição para a transformação tecnológica do real. Boaventura cita, aqui, a noção de mundo-máquina de Newton, no qual “o mundo da matéria é uma máquina cujas operações se podem determinar exactamente por meio de leis físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio”, ou ainda, “um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua decomposição nos elementos que o constituem”. E é essa ideia que se constitui como hipótese universal da época, averiguada como mecanicismo.

Esse determinismo mecanicista, conforme explica, é essencialmente utilitário e funcional, mais preocupado em dominar e transformar do que em “compreender profundamente o real”. Sendo filho das ciências naturais, foi assumido pelas ciências sociais sob duas vertentes: a primeira, “dominante, consistiu em aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade todos os princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam ao estudo da natureza desde o século XVI”; enquanto a segunda “consistiu em reivindicar para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade do ser humano e sua distinção polar em relação à natureza”.

A primeira variante/vertente

  • Ciências naturais = modelo de conhecimento universalmente (e único) válido;
  • Fenômenos naturais e sociais podem ser estudados da mesma maneira;
  • Visão durkheimiana: “é necessário reduzir os factos sociais às suas dimensões externas, observáveis e mensuráveis”;
  • OBSTÁCULO I: “as ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada”;
  • OBSTÁCULO II: “as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenómenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados”;
  • OBSTÁCULO III: “as ciências sociais não podem produzir previsões fiáveis porque os seres humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se adquire”;
  • OBSTÁCULO IV: “os fenómenos sociais são de natureza subjectiva e como tal não se deixam captar pela objectividade do comportamento”;
  • OBSTÁCULO V: “as ciências sociais não são objectivas porque o cientista social não pode libertar-se, no acto de observação, dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista”.

A segunda variante/vertente

  • Reivindica para as ciências sociais um estatuto metodológico próprio;
  • O argumento fundamental é que a ação humana é radicalmente subjectiva;
  • Ciências social é subjetiva -> “tem de compreender os fenómenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas acções”
  • São necessários métodos de investigação e critérios epistemológicos diferentes das ciências naturais;
  • PROBLEMA – “Partilha com este modelo a distinção natureza/ser humano e tal como ele tem da natureza uma visão mecanicista a qual contrapõe, com evidência esperada, a especificidade do ser humano”.

Talvez o mais interessante, a meu ver, deste capítulo, é refletirmos como esse modo de fazer crer – ou seja, a epistemologia do conhecimento científico – é o alicerce de várias instâncias da vida em sociedade hoje. Se pensarmos em todo o molde de currículo estrutural escolar, por exemplo, temos uma aplicação bastante evidente de como isso pode ser traduzido. A própria ordem de disciplinas, separadas em diferentes áreas de conhecimento, são fruto dessa lógica de dividir para (re)produzir – e assim criam-se operadores da máquina capitalista.

A crise do paradigma dominante

Na segunda seção, o autor argumenta pelos sinais de crise do modelo de racionalidade científica a partir de três questões principais: 1) trata-se de uma crise profunda e irreversível; 2) o período de revolução científica dura desde Einstein até a atualidade, sem previsão de fim; 3) podemos apenas especular sobre o que virá a seguir como fruto desse período revolucionário, ainda que já seja possível “afirmar com segurança que colapsarão as distinções básicas em que assenta o paradigma dominante e a que aludi na secção precedente”.

A primeira condição teórica (que se une a uma pluralidade de outras, também sociais) resultante dessa crise é o avanço do próprio conhecimento científico, que “permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda” – a exemplo da relatividade da simultaneidade de Einstein. A segunda condição teórica, segundo o autor, é o surgimento da mecânica quântica – que relativizou a microfísica como Einstein o fez com as leis de Newton. Nesse contexto, surgem três problemáticas: uma vez que o rigor científico é estruturalmente limitado, as leis da física seriam “tão-só probabilísticas”; a totalidade do real é incabível de redução à soma das partes para observação e mensuração; sujeito e objeto não são tão afastados assim.

O teorema da incompletude (ou do não completamento) e os teoremas sobre a impossibilidade, em certas circunstâncias, de encontrar dentro de um dado sistema formal a prova da sua consistência vieram mostrar que, mesmo seguindo à risca as regras da lógica matemática, é possível formular proposições indecidíveis, proposições que se não podem demonstrar nem refutar, sendo que uma dessas proposições é precisamente a que postula o carácter não-contraditório do sistema. Se as leis da natureza fundamentam o seu rigor no rigor das formalizações matemáticas em que se expressam, as investigações de Gödel vêm demonstrar que o rigor da matemática carece ele próprio de fundamento. A partir daqui é possível não só questionar o rigor da matemática como também redefini-lo enquanto forma de rigor que se opõe a outras formas de rigor alternativo, uma forma de rigor cujas condições de êxito na ciência moderna não podem continuar a ser concebidas como naturais e óbvias.

(SOUSA SANTOS, p. 47-48)

Há em voga um movimento convergente que, junto as já referenciadas condições teóricas da crise, tem propiciado “uma profunda reflexão epistemológica sobre o conhecimento científico”. Compõem-na duas facetas sociológicas, segundo o autor: é capitaneada “por cientistas que adquiriram uma competência e um interesse filosófico para problematizar a sua prática científica”; e abrange questões antes relegadas apenas a sociólogos – e agora centrais ao novo modelo -, como “a análise das condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigação científica”.

Alguns dos temas principais dessa reflexão epistemológica são:

  1. O conceito de lei e de causalidade associado são questionados;
  2. O rigor científico é questionado no seu caráter epistemológico totalitário;
  3. A irredutibilidade dos objetos é enfrentada em seus diversos limites e problemáticas.

Boaventura fecha esta seção falando sobre a problemática da industrialização da ciência: “referirei tão-só que, quaisquer que sejam os limites estruturais de rigor científico, não restam dúvidas que o que a ciência ganhou em rigor nos últimos quarenta ou cinquenta anos perdeu em capacidade de auto-regulação”. Ratifica que “as ideias da autonomia da ciência e do desinteresse do conhecimento científico, que durante muito tempo constituíram a ideologia espontânea dos cientistas, colapsaram perante o fenómeno global da industrialização da ciência a partir sobretudo das décadas de trinta e quarenta”.

“A ciência e a tecnologia têm vindo a revelar-se as duas faces de um processo histórico em que os interesses militares e os interesses económicos vão convergindo até quase a indistinção”

Boaventura de Sousa Santos

O final desta seção é bem interessante porque, ao mesmo tempo em que coloca o dedo na ferida e basicamente diz: foi a ciência (ou pelo menos legitimados pela ciência) que nos levou às guerras, à exploração, à opressão, à escravidão, etc.; ainda mantém o entusiasmo ao afirmar que a crise é “o retrato de uma família […] criativa e fascinante, no momento de se despedir […] dos lugares conceituais, teóricos e epistemológicos, ancestrais e íntimos, mas não mais convincentes e securizantes” – e acrescenta: “uma despedida em busca de uma vida melhor a caminho doutras paragens onde o optimismo seja mais fundado e a racionalidade mais plural e onde finalmente o conhecimento volte a ser uma aventura encantada”.

Aqui, retomo o que falei no início do post sobre o caráter para além do conteúdo do texto que, a meu ver, é também instrumento pedagógico fundamental em sala de aula: o autor está jogando o jogo da disputa. Depois de passar uma seção (ou capítulo) inteira(o) citando problemas que as próprias ciências naturais acabaram encontrando conforme seus próprios paradigmas, amacia a mensagem basicamente falando que cientistas podem ser bonzinhos, só estão perdidos (parafraseando Criolo). Ou ele está tentando agradar um público que também quer persuadir com o texto, ou está simplesmente usufruindo do privilégio da epistemologia da ignorância.

O paradigma emergente

Na última seção, Boaventura apresenta o paradigma emergente a partir de quatro teses principais: 1) todo o conhecimento é científico-social; 2) é local e total; 3) é auto-conhecimento; 4) e visa constituir-se em senso comum. Antes, ratifica que são premissas para o futuro que “o que dele dissermos é sempre o produto de uma síntese pessoal embebida na imaginação, no meu caso na imaginação sociológica”. Ainda mais importante, também chama a atenção para o caráter desta revolução: “sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico […], tem de ser também um paradigma social […]”.

1. Todo o conhecimento científico-natural é científico-social

A primeira tese do autor argumenta pelo fim da distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais e elege esta como catalisador necessário do paradigma emergente. Num primeiro momento, ele então discorre sobre diversas teorias da ciência moderna que “introduzem na matéria os conceitos de historicidade e de processo, de liberdade, de auto-determinação e até de consciência que antes o homem e a mulher tinham reservado para si”. Além desse esforço, ainda explica a importância da mecânica quântica como responsável pela transformação na distinção atual entre sujeito e objeto.

O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento não dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjectivo/objectivo, colectivo/individual, animal/pessoa. Este relativo colapso das distinções dicotómicas repercute-se nas disciplinas científicas que sobre elas se fundaram.

(SOUSA SANTOS, p. 69)

Para além da superação dessa distinção, Boaventura argumenta também que é necessário enunciar “quem” dita o caminho a seguir. “Precisamente porque vivemos um estado de turbulência, as vibrações do novo paradigma repercutem-se desigualmente nas várias regiões do paradigma vigente e por isso os sinais do futuro são ambíguos”, explica. É nesse contexto que surgem matérias como a sociobiologia, cuja superação da dicotomia alinha muito mais a favor das ciências naturais. No entanto, se “atentarmos no conteúdo teórico das ciências que mais têm progredido no conhecimento da matéria, verificamos que a emergente inteligibilidade da natureza é presidida por conceitos, teorias, metáforas e analogias das ciências sociais”.

A máxima dukrheimiana seria, portanto, invertida: os fenômenos naturais deveriam ser estudados como fenômenos sociais (e não o contrário). Ainda assim, argumenta o autor, superar essa dicotomia pela égide das ciências sociais ainda não é um movimento “suficiente para caracterizar o modelo de conhecimento no paradigma emergente”. Como já explicou previamente, isso porque “as próprias ciências sociais constituíram-se no século XIX segundo os modelos de racionalidade das ciências naturais clássicas”. Como solução para essa armadilha, que pode ser apenas ilusória, Boaventura sugere um caminho direcionado ao campo de saber das humanidades, cujo projeto epistêmico é ainda mais subjetivo e relativo.

A superação da dicotomia ciências naturais/ciências sociais tende assim a revalorizar os estudos humanísticos. Mas esta revalorização não ocorrerá sem que as humanidades sejam, elas também, profundamente transformadas. O que há nelas de futuro é o terem resistido à separação sujeito/objecto e o terem preferido a compreensão do mundo à manipulação do mundo. Este núcleo genuíno foi, no entanto, envolvido num anel de preocupações mistificatórias (o esoterismo nefelibata e a erudição balofa). O ghetto a que as humanidades se remeteram foi em parte uma estratégia defensiva contra o assédio das ciências sociais, armadas do viés cientista triunfalmente brandido. Mas foi também o produto do esvaziamento que sofreram em face da ocupação do seu espaço pelo modelo cientista. […] Há que recuperar esse núcleo genuíno e pô-lo ao serviço de uma reflexão global sobre o mundo.

(SOUSA SANTOS, p. 76)

Confesso que o termo “humanidades”, para mim, não é tão comum. Apenas recordo de tê-lo visto em artigos/produções acadêmicas (geralmente em inglês) relacionados às chamadas “humanidades digitais” – mas que nunca me foi explicado ou que busquei compreender em sua complexidade, tomando-a como em sua concepção minimamente literal. “É pois necessário descobrir categorias de inteligibilidade globais, conceitos quentes que derretam as fronteiras em que a ciência moderna dividiu e encerrou a realidade”, pontua. “A ciência pós-moderna é uma ciência assumidamente analógica que conhece o que conhece pior através do que conhece melhor”.

O autor encerra esta primeira tese com um argumento que dialoga bastante com a minha trajetória acadêmica deste ano, conforme a urgência que notei – e adotei – de mudança de projeto do mestrado. É talvez a primeira vez que ele coloca, de maneira escancarada, o sujeito-pesquisador enquanto potência. Essa é uma das críticas que tenho ao texto, a qual já tinha pontuado brevemente ao final da primeira seção e que se repete de modo ainda mais grave (a meu ver) em parte da próxima tese, a seguir. No entanto, aqui, confesso que fui bastante atravessado ao modo como encerra:

Já mencionei a analogia textual e julgo que tanto a analogia lúdica como a analogia dramática, como ainda a analogia biográfica, figurarão entre as categorias matriciais do paradigma emergente: o mundo, que hoje é natural ou social e amanhã será ambos, visto como um texto, como um jogo, como um palco ou ainda como uma autobiografia. […] A nudez total, que será sempre a de quem se vê no que vê, resultará das configurações de analogias que soubermos imaginar: afinal, o jogo pressupõe um palco, o palco exercita-se com um texto e o texto é a autobiografia do seu autor. Jogo, palco, texto ou biografia, o mundo é comunicação e por isso a lógica existencial da ciência pós-moderna é promover a “situação comunicativa” tal como Habermas a concebe. Nessa situação confluem sentidos e constelações de sentido vindos, tal qual rios, das nascentes das nossas práticas locais e arrastando consigo as areias dos nossos percursos moleculares, individuais, comunitários, sociais e planetários.

(SOUSA SANTOS, 77-79)

2. Todo o conhecimento é local e total

Para argumentar por sua segunda tese, Boaventura critica a hiper-especialização da ciência moderna: “a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado”. Explica que o avanço pela especialização acarretou no dilema básico da ciência moderna: “o seu rigor aumenta na proporção directa da arbitrariedade com que espartilha o real”. Ainda que os males desse fenômeno já sejam reconhecidos, a ainda mantida disciplinarização (que organiza o saber e policia as fronteiras contra transposição) de novas disciplinas reproduzem o mesmo modelo de cientificidade.

Contra a parcelização do conhecimento, o autor defende o conhecimento total (universal e/ou indivisível) do paradigma emergente. Em vez de disciplinas, sugere temas, “galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros”. Contrário ao paradigma dominante, o novo paradigma tem o avanço do conhecimento “à medida que o seu objecto se amplia, ampliação que, como a da árvore, procede pela diferenciação e pelo alastramento das raízes em busca de novas e mais variadas interfaces”. Em outras palavras, é um passo em direção ao caráter interdisciplinar da academia – não de novas disciplinas, mas disciplinas dialogando entre si.

A segunda parte do argumento por esse conhecimento local é a que mais me incomodou em todo o texto: “o conhecimento pós-moderno é também total porque reconstitui os projectos cognitivos locais, salientando-lhes a sua exemplaridade, e por essa via transforma-os em pensamento total ilustrado”. Ainda sobre a ciência do paradigma emergente, acrescenta: “sendo […] assumidamente analógica, é também assumidamente tradutora, ou seja, incentiva os conceitos e as teorias desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser utilizados fora do seu contexto de origem”.

Eu não sei se entendi errado, ou se de fato ele quis dizer que o conhecimento pós-moderno pode transpor um conhecimento específico para outra realidade completamente diferente. Não é isso que a ciência moderna já faz? Em outro trecho, ele até reconhece isso, mas passando pano para o paradigma emergente: “Este procedimento [de tradução], que é reprimido por uma forma de conhecimento que concebe através da operacionalização e generaliza através da quantidade e da uniformização, será normal numa forma de conhecimento que concebe através da imaginação e generaliza através da qualidade e da exemplaridade”.

Novamente, não sei se entendi errado, mas, caso esteja correto, o que o autor faz é simplesmente privilégio acadêmico. Mais uma vez, ignora – ou melhor, vangloria – o sujeito-pesquisador, colocando-o o cientista pós-moderno tão iluminado quanto o cientista moderno que tanto critica. É conivente com as relações de poder que estão em jogo também na academia, que, como ele mesmo já afirmou anteriormente, traduz-se para toda a sociedade (visto que é onde parte a revolução científica da sociedade científica). E aí, enfim, esquece quem, histórica e socialmente, sempre teve a possibilidade de habitar esse espaço e criar/legitimar suas epistemologias.

O conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade. As condições de possibilidade da acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo local. Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica. Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta. Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante transgressão metodológica. Sendo certo que cada método só esclarece o que lhe convém e quando esclarece fá-lo sem surpresas de maior, a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora do seu habitat natural.

(SOUSA SANTOS, p. 83-84)

Mais uma vez, entretanto, o autor finaliza a tese de modo muito interessante, agora colocando o sujeito-pesquisador como potência criativa (entusiasta), porém possivelmente transgressora. Cabe a este ator transgredir metodologicamente para desenvolver um estilo literário novo, “uma configuração de estilos construída segundo o critério e a imaginação pessoal do cientista”. Em contraponto à suposta imparcialidade do racional científico moderno, aposta na “composição transdisciplinar e individualizada [… que] sugere um movimento no sentido da maior personalização do trabalho científico”.

3. Todo o conhecimento é auto-conhecimento

A terceira tese é, para mim, a mais interessante. Se critiquei o autor algumas vezes até aqui por conscientemente esquivar o sujeito do debate, é aqui que ele se redime de todas as minhas críticas. Boaventura começa este argumento explicando a problemática distinção dicotômica entre sujeito e objeto: “um conhecimento objectivo, factual e rigoroso não tolerava a interferência dos valores humanos ou religiosos”. Reconhece, entretanto, que essa distinção nunca foi tão simples nas ciências sociais, afinal éramos nós estudando nós mesmos. Parte daí a diferenciação básica entre sociologia e antropologia, que inicialmente se afastaram e a tendência agora é convergirem metodologicamente cada vez mais.

Parafraseando Clausewitz, podemos afirmar hoje que o objecto é a continuação do sujeito por outros meios. Por isso, todo o conhecimento científico é auto-conhecimento. A ciência não descobre, cria, e o acto criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica da natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação. A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente na previsão e no controlo dos fenómenos nada tem de científico. É um juízo de valor. A explicação científica dos fenómenos é a auto-justificação da ciência enquanto fenómeno central da nossa contemporaneidade. A ciência é, assim, autobiográfica.

(SOUSA SANTOS, 89-90)

O que ele chama atenção aqui é justamente sobre como o fazer científico é atravessado pelo intermediário que é o sujeito cientista, citando como exemplo o próprio Descartes, em Discurso do Método. “No início, os protagonistas da revolução científica tiveram a noção clara que a prova íntima das suas convicções pessoais precedia e dava coerência às provas externas que desenvolviam”, explica. É como se a ciência, em sua máxima de imparcialidade e rigor, tivesse esquecido do básico: o instrumento que nos faz entender o real somos nós mesmos, cheios de bagagens, interpretações e atravessamentos.

“Hoje sabemos ou suspeitamos que as nossas trajectórias de vida pessoais e colectivas (enquanto comunidades científicas) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são a prova íntima do nosso conhecimento”, aponta. Sem isso, “as nossas investigações laboratoriais ou de arquivo, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligências absurdas sem fio nem pavio”. Boaventura argumenta que, entretanto: “este saber, suspeitado ou insuspeitado, corre hoje subterraneamente, clandestinamente, nos não-ditos dos nossos trabalhos científicos”.

No paradigma emergente, o carácter autobiográfico e auto-referenciável da ciência é plenamente assumido. A ciência moderna legou-nos um conhecimento funcional do mundo que alargou extraordinariamente as nossas perspectivas de sobrevivência. Hoje não se trata tanto de sobreviver como de saber viver. Para isso é necessária uma outra forma de conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos. A incerteza do conhecimento, que a ciência moderna sempre viu como limitação técnica destinada a sucessivas superações, transforma-se na chave do entendimento de um mundo que mais do que controlado tem de ser contemplado. Não se trata do espanto medieval perante uma realidade hostil possuída do sopro da divindade, mas antes da prudência perante um mundo que, apesar de domesticado, nos mostra cada dia a precaridade do sentido da nossa vida por mais segura que esteja ao nível da sobrevivência. A ciência do paradigma emergente é mais contemplativa do que activa. A qualidade do conhecimento afere-se menos pelo que ele controla ou faz funcionar no mundo exterior do que pela satisfação pessoal que dá a quem a ele acede e o partilha.

(SOUSA SANTOS, p.92-93)

E mais uma vez, termina, a meu ver, de forma brilhante: “a criação científica no paradigma emergente assume-se como próxima da criação literária ou artística, porque a semelhança destas pretende que a dimensão activa da transformação do real (o escultor a trabalhar a pedra) seja subordinada à contemplação do resultado (a obra de arte)”. E acrescenta: “a crítica literária anuncia a subversão da relação sujeito/objecto que o paradigma emergente pretende operar; […] o objecto do estudo, como se diria em termos científicos, sempre foi, de facto, um super-sujeito (um poeta, um romancista, um dramaturgo) face ao qual o crítico não passa de um sujeito ou autor secundário”.

4. Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum

Sua quarta e final tese critica o afastamento do conhecimento científico das outras formas de conhecimento ao mesmo tempo em que atribui à ciência pós-moderna a responsabilidade racional de fazer essa aproximação para que, então, torne-se também parte desse amaranhado. “A ciência moderna construiu-se contra o senso comum que considerou superficial, ilusório e falso. A ciência pós-moderna procura reabilitar o senso comum por reconhecer nesta forma de conhecimento algumas virtualidades para enriquecer a nossa relação com o mundo”, explica.

O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente na acção e no princípio da criatividade e da responsabilidade individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajectórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma fiável e securizante. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objectivos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência linguística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida. O senso comum aceita o que existe tal como existe; privilegia a acção que não produza rupturas significativas no real. Por último, o senso comum é retórico e metafísico; não ensina, persuade.

(SOUSA SANTOS, 96-97)

Esse com certeza é o argumento mais polêmico do autor. É extremamente complicado em diversas instâncias, principalmente na onde bastante atual de anticientificismo (terraplanismo, antivacina, etc.). Eu entendo, entretanto, onde o autor esteja querendo chegar aqui: ele quer prezar pela “dimensão utópica e libertadora” do senso comum que “pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento científico”. Isso não quer dizer descartar por completo o conhecimento científico nem colocar o senso comum como estatuto de verdade, mas simplesmente abrir a estrutura enclausurante do primeiro para com o segundo.

“Deixado a si mesmo, o senso comum é conservador e pode legitimar prepotências, mas interpenetrado pelo conhecimento científico pode estar na origem de uma nova racionalidade”, explica. Há, para o autor, que se inverter a ruptura epistemológica: do conhecimento científico para o senso comum – tanto o primeiro bebendo da fonte do último quanto o primeiro eventualmente tornando-se também o último. Novamente, entendo como isso é radical – no sentido de ir à raiz mesmo – e, portanto, complicado de ser recebido sem resistência – e muito provavelmente daí surjam todas as críticas que o procederam.

A ciência pós-moderna, ao sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em auto-conhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida. É esta que assinala os marcos da prudência à nossa aventura científica. A prudência é a insegurança assumida e controlada.

(SOUSA SANTOS, p. 98)

Talvez o maior problema do texto, que é o que possivelmente acarreta nas críticas que citei, seja não localizar explicitamente o conhecimento científico enquanto estatuto legitimado de relação de poder. E aí o contexto, mais uma vez no jogo que cito desde o início, importa: Boaventura é português, formado em Direito, homem, branco, etc. Ou ele não precisa passar por esse enfrentamento ou ele simplesmente não quer, para conseguir agradar parte de sua audiência. Ainda assim, não tenho dúvidas de quanto é e foi um texto necessário (complicado, mas necessário).

“Nenhum de nós pode neste momento visualizar projectos concretos de investigação que correspondam inteiramente ao paradigma emergente que aqui delineei”, reconhece, por estarmos (na década de 80) numa fase de transição. “Duvidamos suficientemente do passado para imaginarmos o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para podermos realizar nele o futuro. Estamos divididos, fragmentados. Sabemo-nos a caminho mas não exactamente onde estamos na jornada. A condição epistemológica da ciência repercute-se na condição existencial dos cientistas”, finaliza. E é aí que entra a importância da academia está mudando de cara e de cor.

SANTOS SOUSA, Boaventura. Um discurso sobre as ciências. 8ª edição. São Paulo, Cortez: 2018.

O papel da representação – em Cultura e representação, de Stuart Hall

Em março de 2017 publiquei aqui no blog a primeira parte do que prometi que seria uma série de três posts sobre o livro “Cultura e Representação” (Stuart Hall, 2016), organizado pela Editora PUC-Rio. A obra traz três textos independentes (produzidos originalmente para diferentes publicações), porém complementares: a Apresentação (introdução da coletânea Representation: Cultural Representation and Signifying Practices, de 1997), o Capítulo 1 – O papel da representação (o original, The Work of Representation) e o Capítulo 2 – O espetáculo do outro (o original, The Spectacle of the Other). Tendo mais de um ano do lançamento desta série, compartilho aqui – enfim – o segundo post sobre o livro, como uma espécie de resumo-comentado.

No texto “O papel da representação” (primeiro capítulo da obra), Hall se debruça com tremenda minúcia em alguns dos conceitos mais relevantes do seu trabalho: representação, sentido, linguagem e discurso. Extremamente metódico, o autor divide a leitura em cinco tópicos principais: 1. Representação, sentido e linguagem (no qual explica as principais teorias em torno de signos, significados e sentidos); 2. O legado de Saussure (no qual apresenta a “virada linguística” nos estudos sociais); 3. Da linguagem à cultura: da linguística à semiótica (no qual apresenta a abordagem da semiótica quanto à construção de sentido); 4. Discurso, poder e sujeito (no qual localiza a importância de Foucault para pensar poder/política/causa e efeito); e 5. Onde está o sujeito? (no qual toma para si a responsabilidade de localizar o sujeito na estrutura).

1. Representação, sentido e linguagem

Na primeira parte, o autor apresenta gradativamente os conceitos que serão trabalhados no texto, a começar por representação: um processo-chave do circuito cultural (significados produzidos e compartilhados) que conecta o sentido e a linguagem (signos e imagens que significam/representam objetos) à cultura. Em outras palavras (e de modo simples), representação seria a produção de sentido pela linguagem. E para explicar com mais detalhes sobre esse assunto, ele apresenta três abordagens/teorias principais: a Reflexiva, a Intencional e a Construtivista – esta última mais relevante (e atual), à qual o autor se filia e na qual desenvolve todo o seu pensamento -, a serem exploradas com mais detalhes logo mais.

Para facilitar a compreensão, colocaria que, fosse essa temática uma simples equação matemática, seria algo como: representação = sentido + linguagem. Ou seja, “é a conexão entre conceitos e linguagem que permite nos referirmos ao mundo ‘real’ dos objetos, sujeitos ou acontecimentos, ou ao mundo imaginário de objetos, sujeitos e acontecimentos fictícios” (p. 34). Nesse contexto, há o que o autor pontua didaticamente como dois processos (ou sistemas) complexos de representação: o primeiro, ligado aos conceitos sustentados pela construção metódica de sentido; e, o segundo, ligado ao uso da linguagem (enquanto instrumento comunicacional) para carregar consigo a função do primeiro.

Hall simplifica o primeiro sistema (bastante complexo, é bom ratificar) como “um conjunto de conceitos ou representações mentais que nós carregamos” relacionados a ordem de objetos, sujeitos e acontecimentos “que podem ‘representar’ ou ‘se colocar como’ o mundo” (p. 34). Diz respeito, portanto à nossa capacidade enquanto seres inteligíveis capazes de produzir e manter um sistema conceitual mental que nos permita julgar “o mundo de maneira relativamente similar”, podendo “construir uma cultura de sentidos compartilhada e, então, criar um mundo social que habitamos juntos” (p. 36). Talvez aqui seja difícil de compreender por se tratar de um processo bem abstrato, mas os exemplos que surgirão mais para frente devem ajudar.

Já o segundo sistema é relativamente mais simples (de compreender), já que se faz literalmente mais concreto no nosso cotidiano. É a linguagem esse “segundo sistema de representação envolvido no processo global de construção de sentido” (p. 36), sobre o qual os signos se organizam. Estes “indicam ou representam os conceitos e as relações entre eles que carregamos em nossa mente e […], juntos, constroem os sistemas de significado da nossa cultura” (p. 37). Ele chama atenção para o sentido mais amplo atribuído à linguagem (e, consequentemente, aos signos) nessa explicação, não se limitando à fala/escrita/etc., mas tudo que seja capaz “de carregar e expressar sentido”, organizado sistematicamente e se tornando, assim, “uma linguagem”.

No cerne do processo de significação na cultura surgem, então, dois “sistemas de representação” relacionados. O primeiro nos permite dar sentido ao mundo por meio da construção de um conjunto de correspondências, ou de uma cadeia de equivalências, entre as coisas, pessoas, objetos, acontecimentos, ideias abstratas etc. – e o nosso sistema de conceitos, os nossos mapas conceituais. O segundo depende da construção de um conjunto de correspondências entre esse nosso mapa conceitual e um conjunto de signos, dispostos organizados em diversas linguagens, que indicam ou representam aqueles conceitos. A relação entre “coisas”, conceitos e signos se situa, assim, no cerne da produção do sentido na linguagem, fazendo do processo que liga esses três elementos o que chamamos de “representação” (p. 38).

Todo esse “ciclo” da representação exige que as pessoas possuam minimamente “mapas conceituais” semelhantes, ou seja, maneiras parecidas de interpretas os signos de uma linguagem: “à medida que a relação entre o signo e o seu referente se torna menos clara, o sentido começa a deslizar e escapar de nós, caminhando para a incerteza” (p. 39). Essa condição (ou pré-requisito) é importante também para nos lembrar a arbitrariedade dessa relação entre signo, conceito e objeto; ou seja, a palavra “melancia” nos remete à fruta devido ao acordo que fizemos na sociedade brasileira/língua portuguesa quanto à referência entre signo e objeto real, mas poderia ser qualquer outra combinação de letras: “yulate” (ou “watermelon”, em inglês).

O sentido, portanto, não nasce com o signo, é incorporado a ele: “Somos nós quem fixamos o sentido tão firmemente que, depois de um tempo, ele parece natural e inevitável. […] Ele é construído e fixado pelo código, que estabelece a correlação entre o nosso sistema conceitual e nossa linguagem […]” (p. 42). Os códigos, portanto, possibilitam-nos a falar e ouvir inteligentemente ao fixar arbitrariamente as relações entre o nosso sistema conceitual e os nossos sistemas linguísticos, num processo de tradutibilidade em ambas direções. Crianças, por exemplo, aprendem o sistema de convenções sociais e representações (tanto na fala quanto na interpretação) para que passem a, gradativamente, atuar como sujeitos culturalmente competentes.

Uma implicação desse argumento sobre códigos culturais é que, se o sentido é o resultado não de algo fixo na natureza, mas de nossas convenções sociais, culturais e linguísticas, então o sentido não pode nunca ser finalmente fixado […]. Obviamente, deve haver alguma fixação do sentido na linguagem, ou nunca poderíamos entender uns aos outros […]. Convenções sociais e linguísticas mudam, sim, através do tempo […]. Códigos linguísticos variam significativamente entre uma língua e outra. […] O principal ponto é que o sentido não é inerente às coisas, ao mundo. Ele é construído, produzido. É o resultado de uma prática significante – uma prática que produz sentido, que faz os objetos significarem. (p. 46)

Para explicar como a representação do sentido pela linguagem funciona, Hall traz três enfoques das teorias já citadas: reflexiva, intencional a construtivista. Na primeira, “o sentido é pensado como repousando no objeto, pessoa, ideia ou evento no mundo real, e a linguagem funciona como um espelho, para refletir o sentido verdadeiro como ele já existe no mundo” (p. 47). O foco dessa teoria, portanto, está na mimesis (reflexão/imitação) do real – por isso também é comumente chamada de mimética. Já na segunda, o foco é o interlocutor: “as palavras significam o que o autor pretende que signifiquem” (p. 48). Seu caráter individualista, entretanto, esbarra na necessidade comunicacional que exige o conhecimento compartilhado dos signos e dos sentidos a eles atribuídos.

É sob o manto da teoria construtivista, entretanto, que o autor se deleita. Nela, nem o signo pelo signo nem o interlocutor pelo interlocutor basta, mas um jogo complexo entre todas as partes envolvidas: “Nem as coisas nelas mesmas, nem os usuários individuais podem fixar os significados na linguagem. As coisas não significam: nós construímos sentido, usando sistemas representacionais – conceitos e signos”. Em complemento, explica a dinâmica desse processo: “São os atores sociais que usam os sistemas conceituais, o linguístico e outros sistemas representacionais de sua cultura para construir sentido, para fazer com que o mundo seja compreensível e para comunicar sobre esse mundo, inteligivelmente, para outros” (p. 49).

Para explicar melhor a teoria construtivista (e o processo de representação como um todo), o autor utiliza o ótimo exemplo da linguagem dos semáforos. Primeiro, levemos em consideração as cores que conhecemos. Elas existem, obviamente, mas os nomes os quais as atribuímos foram definidos por nós mesmos: “usamos um modo de classificar o espectro colorido para criar cores que são diferentes umas das outras. Nós representamos ou simbolizamos as diversas cores e as classificamos de acordo com diferentes conceitos de cor” (p. 49-50). São, portanto, dois momentos (didáticos): aquele no qual nosso mapa mental compreende e distingue as cores umas das outras; e outro no qual associamos a essas cores, diferenciadas, signos e códigos linguísticos.

É óbvio que, na prática, esse processo é menos metódico e mais “bagunçado”, mas ele nos leva a três considerações relevantes: 1) nem o significado nem o signo existem sozinhos, são construídos socialmente; 2) uma vez que são construídos socialmente, poderiam ser qualquer coisa; 3) exatamente devido a essa possibilidade de ser qualquer coisa, mas tendo essa fixação social, há um duplo arbitrário em jogo. E é justamente em cima dessa arbitrariedade que os construtivistas vão argumentar de onde surge o sentido: “o que significa, o que carrega sentido, eles argumentam, não é cada cor por si mesma nem o conceito ou palavra para ela. É a diferença entre vermelho e verde que significa” (p. 53).

Em princípio, qualquer combinação de cores – como qualquer coleção de letras na linguagem escrita ou de sons na linguagem falada – funcionaria, dado que as cores fossem suficientemente diferentes para não serem confundidas. Os construtivistas expressam essa ideia dizendo que todos os signos são ‘arbitrários’. Esse termo significa que não existe nenhuma relação natural entre o signo e seu sentido ou conceito […]. É o código que fixa o sentido, não a cor por si própria. Isso também tem implicações mais amplas para a teoria da representação e sentido na linguagem, e significa que signos por eles mesmos não podem fixar sentido. Em vez disso, o sentido depende da relação entre um signo e um conceito, o que é fixado por um código. O significado, os construtivistas diriam, é ‘relativo’. (p. 52)

Em resumo, portanto, vale recapitular: representação é a produção do sentido pela linguagem“O sentido é produzido dentro da linguagem, dentro e por meio de vários sistemas representacionais que, por conveniência, nós chamamos de ‘linguagens’. O sentido é produzido pela prática, pelo trabalho, da representação. Ele é construído pela prática significante, isto é, aquele que produz sentidos” (p. 54). Como um ciclo da teoria construtivista, portanto, compreenderia-se: conceitos formados nas nossas mentes em sistemas classificatórios inteligíveis > signos que transportam os sentidos > tradução dos nossos conceitos em linguagem através de mapas de sentido compartilhados.

  • Teoria Reflexiva (Mimética): propõe uma relação direta e transparente de imitação ou reflexão entre as palavras (signos) e as coisas;
  • Teoria Intencional: reduz a representação às intenções do autor ou sujeito;
  • Teoria Construtivista: propõe uma relação complexa e mediada entre as coisas no mundo, os conceitos em nosso pensamento e a linguagem.

2. O legado de Saussure

A segunda parte do texto é completamente dedicada ao filósofo Ferdinand de Saussure, responsável pela “virada linguística” das Ciências Sociais (e, consequentemente, dos Estudos Culturais). A visão social-construtivista da linguagem ratifica a importância dos signos (sistema de sinais), porém somente num contexto de sistema de convenções compartilhadas. Deste modo, o significante (a palavra ou imagem de um objeto) se correlaciona com o conceito mental desse objeto parar gerar sentido, “mas é a relação entre eles, fixada pelo nosso código cultural e linguístico, que sustenta a representação” (p. 57). Novamente, para simplificar: signo = significante (forma que significa) + significado (ideia significada).

Embora essa primeira introdução ao autor possa indicar uma caminhada em direção à teoria reflexiva, Hall logo explica que é a natureza arbitrária do signo que fundamenta – para Saussure, assim como para os construtivistas – a construção de sentido pela linguagem: “Signos não possuem um sentido fixo ou essencial. […] Os signos, argumentou ele, ‘são membros de um sistema e definidos em relação a outros membros daquele sistema'” (p. 58). O filósofo, enfática e revolucionariamente, argumentou que “os significantes devem estar organizados em um ‘sistema de diferença'” para produzir sentido, pois “é a diferença entre os significantes que significa” (p. 59) – logo, a retomada ao signo não se refere a sua mimesis, mas a seu caráter social/cultural.

É aí que a teoria construtivista pesa em seu pensamento, quando ele localiza o signo (e o sentido) à história: “Os conceitos (significados) aos quais elas [as palavras] se referem também se modificam, historicamente, e toda transformação altera o mapa conceitual da cultura, levando diferentes culturas, em distintos momentos históricos, a classificar e pensar sobre o mundo de maneira diversa” (p. 59). Ou seja, não há como sustentar o significante e o significado sem compreender o processo histórico e cultural nos quais eles estão concebidos. Isso quebra “qualquer vínculo natural e inevitável” entre ambos, abrindo assim “a representação para o constante ‘jogo’ de deslizamento do sentido, para a constante produção de sentidos, novas interpretações” (p. 60).

O sentido deve ser ativamente ‘lido’ ou ‘interpretado’. Consequentemente, há uma imprecisão necessária e inevitável sobre a linguagem. O sentido que nós captamos, como espectadores, leitores ou público, nunca é exatamente o sentido que foi dado pelo interlocutor, escritor ou pelos outros espectadores. E, uma vez que, para dizer algo relevante, nós devemos ‘entrar na linguagem’, onde todos os tipos de sentidos que nos antecedem, que seria fazer uma triagem de todos os outros sentidos ocultos que podem modificar ou distorcer o que nós queremos dizer. […] Assim, a interpretação torna-se um aspecto essencial do processo pelo qual o sentido é dado e tomado. O leitor é tão importante quanto o escritor na produção do sentido. Todo significante dado ou codificado com significado tem que ser significativamente interpretado ou decodificado pelo receptor (Hall, 1980). Signos que não tenham sido inteligivelmente recebidos ou interpretados não são, em nenhum sentido útil, “significativos” (p. 60-61).

Um dos termos – conceitos – importantes de Saussure é o que ele chamou de langue (ou sistema de linguagens), que é basicamente a estrutura regrada que nos possibilita formar sentenças socialmente compreensíveis. Em complemento à langue, há a parole, reconhecida como “atos particulares de fala, escrita ou desenho que […] são produzidos por um interlocutor ou escritor real”. Em suma, a partir de Culler (1976), Hall explica: “A langue é o sistema da linguagem, a linguagem como um sistema de formas, enquanto a parole é a fala [ou escrita] real, os atos de fala que só são possíveis pela linguagem” (p. 61). Ou seja, o primeiro seria a base (cultural) na qual o segundo pode operar a partir de performances individuais.

Nosso autor destaca que, para Saussure, a langue, por se tratar de um sistema razoavelmente fechado/limitado de regras e códigos, poderia ser estudada cientificamente. Já a parole, por mais individual que seja (ela realmente é lida como a fala/linguagem de cada um de nós), precisa da langue para se sustentar: “Cada afirmação autoral só se torna possível porque o ‘autor’ compartilha com outros usuários da linguagem as regras e códigos comuns do sistema – a langue -, que permite que eles se comuniquem um com o outro significantemente” (p. 62). Essa argumentação é importante para fazer coro com o que já vimos anteriormente, sempre lembrando que 1) nada é natural e 2) tudo se constrói em sociedade, e não no vácuo.

O grande feito de Saussure foi nos forçar a prestar especial atenção na linguagem em si, como um fato social, no processo de representação em si, em como a linguagem realmente funciona e no papel que desempenha na produção do sentido. Ao fazer isso, Saussure salvou a linguagem do status de mero meio transparente entre coisas e sentido. Ele mostrou, em vez disso, que a representação é uma prática. No entanto, em seu próprio trabalho, Saussure tendeu a focar, quase exclusivamente, nos dois aspectos do signo – significante e significado. Deu pouca ou nenhuma atenção a como essa relação entre significante / significado poderia servir ao propósito do que nós previamente chamamos de referência – ou seja, nos referindo ao mundo das coisas, pessoas e eventos que estão fora da linguagem, no mundo ‘real’. (p. 63)

Ainda que seu trabalho tenha sido importantíssimo para as Ciências Sociais como um todo, a obsessão funcionalista pelo seu objeto de pesquisa o cegou de levar em consideração as “características mais interativas e dialógicas da linguagem – como é realmente usada, como funciona em situações reais, no diálogo entre diferentes tipos de locutores” (p. 64). Hall aponta que “teóricos culturais posteriores aprenderam com o ‘estruturalismo’ de Saussure, mas abandonaram sua premissa científica”, explicando que: “Como por vezes acontece, o sonho ‘científico’ que residia por trás do impulso estruturalista do seu trabalho (embora influente em nos alertar para certos aspectos de como a linguagem funciona) provou ser ilusório. A linguagem não é um objeto que possa ser estudado com a precisão de uma ciência” (p. 64).

E continua: “A linguagem permanece governada por regras, mas não é um sistema ‘fechado’ que pode ser reduzido aos seus elementos formais. Uma vez que está constantemente mudando, ela é, por definição, um conceito aberto. O sentido continua sendo produzido pela linguagem em formas que nunca podem ser previstas de antemão e o seu deslizamento, como nós descrevemos acima, não pode ser contido” (p. 64). Diante dessa crítica tão contundente, portanto, como se sobressai o legado de Saussure? O modo pelo qual ele deu atenção, pioneiramente, ao processo como o significante (código de linguagens) associa significados (conceitos mentais) produz signos linguísticos que se traduzem em sentidos referentes ao “mundo real”.

3. Da linguagem à cultura: da linguística à semiótica

O legado de Saussure é justamente o responsável pela fundação da semiótica. Matéria extremamente comum (e temida) nos cursos de Publicidade e Propaganda, continua tão relevante talvez por estarmos vivendo cada vez mais numa sociedade hiper-visual. Nessa terceira parte do texto, Hall apresenta – sem entrar em muitos detalhes, por estar menos interessado na poética e mais interessado nos efeitos de sentido – como podemos compreender a disciplina. Para aproximar o leitor do conteúdo, utiliza dois exemplos simples que explicam bem os conceitos: a linguagem da moda e o mito de Roland Barthes – o primeiro, num localizado principalmente num contexto da sociedade do consumo; e, o segundo, político-cultural.

Na abordagem semiótica, não apenas palavras e imagens, mas os próprios objetos podem funcionar como significantes na produção do sentido. Roupas, por exemplo, podem ter uma função física simples – cobrir e proteger o corpo do clima. Contudo, também se apresentam como signos. Elas constroem significados e carregam uma mensagem (p.68).

Ao abordar a “linguagem da moda”, é importante ter em mente que ele se refere a todo o espectro cultural de como nós, em sociedade, compreendemos nosso vestuário – não se trata apenas do mercado da moda. Lembrando que os signos são os produtos da junção de significantes com significados, ele aponta que “o código da moda nas culturas consumidoras ocidentais […] correlacionam tipos ou combinações particulares de roupas com certos conceitos”, denotando às roupas categorias de elegância, formalidade, casualidade, etc. Logo, as roupas são significantes que, convertidas em signos, podem ser lidos como uma linguagem – e, no contexto da moda, “são arranjados em certa sequência, em determinadas relações uns com os outros” (p. 69-70).

Talvez fique ainda mais fácil de entender se levarmos em consideração os vestidos de casamento. Todo o ritual em torno do casamento é extremamente simbólico, mas façamos um recorte apenas na vestimenta. Na prática, a roupa que a mulher usa é apenas um vestido de coloração branca. Essa interpretação Hall explica como denotativa, “o nível simples, básico, descritivo, em que o consenso é difundido e a maioria das pessoas concordaria no significado”. No entanto, ele é branco por um motivo: carrega um sentimento de pureza, angelical, etc. À nossa primeira leitura (um vestido branco), acrescenta-se um sentido mais amplo: “[A linguagem da moda] os conecta a sentidos e temas mais abrangentes, ligando-os ao que nós chamaremos de campos semânticos mais vastos de nossa cultura” (p. 71).

O argumento fundamental por trás da abordagem semiótica é que, uma vez que todos os objetos culturais expressam sentido, e todas as práticas culturais dependem do sentido, eles devem fazer uso dos signos; e na medida em que fazem, devem funcionar como a linguagem funciona e ser suscetíveis a uma análise que, basicamente, faz uso dos conceitos linguísticos de Saussure (ou seja, a distinção entre significante/significado e langue/parole, sua ideia de códigos e estruturas subjacentes e a natureza arbitrária do signo) (p. 67).

O segundo exemplo que Hall utiliza para explicar a semiótica provavelmente já é de conhecimento a qualquer pessoa que teve uma aula sequer de semiótica (que não foi o meu caso): o mito de Barthes. Num dos ensaios mais famosos do linguista, ele escreve sobre uma capa de revista francesa a qual foi apresentado, que continha um adolescente negro fazendo continência para a bandeira francesa (à direita). A primeira interpretação que fazemos, denotativa, é justamente esta que escrevi – no entanto, semioticamente, é possível (e compreensível) fazer uma leitura muito mais densa do que vemos na capa da revista, conhecendo o histórico de colonização dos povos africanos – também em grande parte – pela França.

“O primeiro significado completo funciona como significante no segundo estágio do processo de representação e, quando ligado a um tema mais amplo pelo leitor, produz uma segunda mensagem, ou significado, mais elaborada e ideologicamente enquadrada”, explica Hall. Ou seja, é o primeiro significado (o signo de uma pessoa, um jovem negro, na capa de uma revista francesa, com roupas militares), que fundamenta a segunda interpretação – o militarismo/colonialismo francês sob povos africanos. “Barthes dá a esse segundo conceito ou tema um nome: ele o chama de ‘uma mistura a propósito do ‘imperialismo francês’ e do ‘militarismo’. Isto, diz ele, adiciona uma mensagem sobre o colonialismo francês e seus fiéis soldados filhos negros. Barthes chama esse segundo nível de significação de mito” (p. 72-73).

Seja lá o que pense sobre a “mensagem” real que Barthes ressalta, para uma análise semiótica ideal você deve ser capaz de delinear precisamente os diferentes passos pelos quais esse sentido mais amplo foi produzido. Barthes argumenta que, aqui, a representação acontece por dois processos independentes, porém ligados. No primeiro, os significantes (os elementos da imagem) e os significados (os conceitos – soldado, bandeira e assim por diante) se unem para formar um signo com uma simples mensagem denotada: um soldado negro está saudando a bandeira francesa. Em um segundo estágio, essa mensagem, ou signo completo, é ligada a outro conjunto de significados – um conteúdo amplo e ideológico sobre o colonialismo francês (p. 73).

4. Discurso, poder e o sujeito

Embora a semiótica tenha sido – e continue sendo – extremamente importante, o sentido jamais pode ser fixado, ou seja “interpretações nunca produzem um momento final de absoluta verdade”. Hall recorre mais uma vez a Derrida para argumentar que a diferença “nunca pode ser totalmente capturada por um sistema binário”, o que faz com que “qualquer noção de sentido final [seja] sempre infinitamente descartada, adiada” (p. 77). É aqui que entra, portanto, Michel Foucault, um para pensarmos a representação sob outra perspectiva para além do seu caráter poético – “sublinhando três de suas principais ideias: seu conceito de discurso, o problema do poder e conhecimento, a questão do sujeito” (p. 79).

Na abordagem semiótica, a representação foi entendida com base na forma como as palavras funcionam como signos dentro da linguagem. Contudo, em primeiro lugar temos que, em uma cultura, o sentido frequentemente depende de unidades maiores de análise […]. A semiótica parecia confinar o processo de representação à linguagem, e tratá-la como um sistema fechado, bastante estático. Desenvolvimentos posteriores se tornaram mais preocupados com a representação como uma fonte para a produção do entendimento social – um sistema mais aberto, conectado de maneira mais íntima às práticas sociais e às questões de poder. […] Mesmo que a linguagem, de algum jeito, ‘fale sobre nós’ (como Saussure tendia a argumentar), também é importante notar que em certos momentos históricos algumas pessoas têm mais poder para falar sobre determinados assuntos do que outros […]. Modelos de representação, argumentaram esses críticos, devem focar nesses aspectos mais amplos de conhecimento e poder (p. 77-78).

Uma das mudanças mais significativas (e simbólicas, de certa forma) que Foucault traz, no contexto da representação, é a troca do termo “linguagem” para o termo “discurso”. Pode parecer algo simples, mas é bastante valioso no pensamento do filósofo: “o que interessava a ele eram as regras e práticas que produziam pronunciamentos com sentido e os discursos regulados em diferentes períodos históricos” (p. 80). Ou seja, para ele, a produção do sentido pela linguagem – enquanto discurso“produz os objetos do nosso conhecimento, governa a forma com que o assunto pode ser significativamente falado e debatido, e também influencia como ideias são postas em prática e usadas para regular a conduta dos outros” (p. 80).

Já fica explícito aqui como – sob qual perspectiva – o autor pretende trabalhar representação, a partir do conceito de discurso, levando em consideração normas de conduta e campos institucionais da sociedade: “essa ideia de que coisas e ações físicas existem, mas somente ganham sentido e se tornam objetos de conhecimento dentro do discurso está no coração da teoria construtivista sobre o sentido e a representação”. Pode parecer confuso, mas o que ele quer dizer é que, no jogo do sentido (que é o mesmo da cultura e da representação), as coisas só existem a partir do discurso. Ou seja, “é o discurso – não as coisas por elas mesmas – que produz o conhecimento” (p. 83).

A ideia de que ‘o discurso produz os objetos do conhecimento’ e de que nada que tem sentido existe fora dele é, à primeira vista, uma proposição desconcertante, que parece correr contra o cerne do pensamento comum. […] O que realmente argumenta é que ‘nada tem nenhum sentido fora do discurso’ (Foucault, 2012). Como Laclau e Mouffe colocaram, ‘nós usamos [o termo discurso] para enfatizar o fato de que toda configuração social tem sentido’ (1990: 100). O conceito de discurso não é sobre se as coisas existem, mas sobre de onde vem o sentido das coisas (p. 81).

De certo modo, poderia-se dizer que Foucault historiciza a linguagem, elevando-a ao discurso e complexificando-a quanto à produção de conhecimento e ao regime da verdade (em comparação à “não-historicidade” da semiótica). “Ele se concentrou na relação entre conhecimento e poder, e em como este funcionava dentro do que o filósofo chamou de aparato institucional e suas tecnologias (técnicas)”, explica Hall. Ao enxergar “o conhecimento como inexoravelmente envolvido em relações de poder porque este sempre é aplicado à regulação da conduta social na prática (ou seja, a ‘corpo’ particulares)”, marcou um desenvolvimento significativo na abordagem construtivista recuperando “a representação das garras de uma teoria puramente formal e deu a ela um contexto operacional histórico, prático e ‘global'” (p. 85).

A perspectiva discursiva em sua contextualização histórica se assemelha à argumentação marxista na qual “as ideias refletiam a base econômica da sociedade e, então, as ‘ideias em vigor’ eram aquelas da classe dominante, que governa a economia capitalista; assim, o pensamento correspondia aos interesses dos dominadores”. Hall explica, entretanto, que Foucault se aproximava mais ao pensamento de Gramsci, uma vez que a teoria marxista clássica de ideologia “tendia a reduzir toda a relação entre conhecimento e poder à questão do poder da classe e seus interesses”. Para eles, “grupos sociais particulares estão em conflito de diversas formas, incluindo ideologicamente, para ganhar o consenso dos outros grupos e alcançar um tipo de ascendência sobre eles, na prática e no pensamento” (p. 87).

A noção de discurso em Foucault está muito associada também às suas outras concepções de poder, conhecimento e verdade, por isso o livro também aborda – tímida, mas suficientemente – essas outras questões. Hall explica que o conhecimento é uma forma de poder circunstancial, cuja efetividade é mais importante do que sua veracidade. “O conhecimento não opera no vácuo. Ele é posto ao trabalho, por certas tecnologias e estratégias de aplicação, em situações específicas, contextos históricos e regimes institucionais” (p. 89), explica. Foucault, para quem não conhece, desenvolvia trabalhos em torno de instituições onde o poder era uma questão central, como escola, prisões e hospícios, por isso sua preocupação com “regimes de verdade”.

A verdade não existe fora do poder ou sem poder (…) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele devido a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 1984: 10)

Além de historicizar a linguagem e, consequentemente, pensar o discurso enquanto disputa de sentido, Foucault também foi responsável por descentralizar o poder – muitas vezes interpretado de forma maniqueísta. “Relações de poder permeiam todos os níveis da existência social e podem, portanto, ser encontradas operando em todos os campos da vida social – nas esferas privadas da família e da sexualidade, tanto quanto nas esferas públicas da política, da economia e das leis”, explica Hall, parafraseando o autor. Para ele(s), o poder circula – é implantado e exercido – como em uma rede que penetra todo o corpo social, “atravessando e produzindo coisas, induzindo ao prazer, a formas do conhecimento, produzindo discurso” (p. 90).

É nesse contexto que Foucault conceitua “rituais meticulosos” ou a “microfísica do poder” (este último bastante popular até para além da academia), que seria basicamente – muito basicamente! – “os vários circuitos localizados, táticas, mecanismos e efeitos pelos quais o poder circula”. Ou seja, ele redireciona a fixação pela estrutura (simbolicamente, na figura do Estado, da lei, da classe privilegiada, etc.) detentora de grandes poderes para um olhar muito mais complexo. Essas relações de poder “conectam a maneira pela qual o poder opera de fato, do chão às grandes pirâmides de poder, por meio do que ele chama de movimento capilar (vasos capilares são aqueles que ajudam a troca de oxigênio entre sangue e os tecidos de nosso corpo)” (p. 90), explica Hall.

Essa perspectiva “revolucionária” de Foucault provocou uma ruptura muito representativa. Marxistas clássicos acusam-no de ser muito “pós-moderno”, responsabilizando-o pela invisibilização da consciência de classe. Essa é uma leitura rasa (e quase rancorosa, eu acrescentaria) do argumento do filósofo, conforme Hall também se propõe a explicar: “[não é que] o poder nesses níveis mais baixos meramente reflete ou ‘reproduz, no nível de indivíduos, corpos, gestos e comportamentos, a forma geral da lei ou do governo’ (Foucault, 2015)”, mas porque essa abordagem “‘enraíza [o poder] nas formas de comportamento, nos corpos e nas relações locais de poder que não deveriam, de forma alguma, ser vistas como uma simples projeção de um poder central’ (Foucault, 1980: 201)” (p. 91).

Embora sua obra seja claramente produzida na esteira da ‘virada da linguagem’ e profundamente influenciada por ela, um marco da abordagem construtivista da representação, a definição de discurso estabelecida por Foucault é bem mais ampla que a de linguagem. Ela inclui vários outros elementos da prática e da regulação institucional que a abordagem de Saussure, com seu foco linguístico, excluiu. Foucault é sempre mais historicizante, considerando formas de poder/conhecimento como enraizadas em contextos e histórias particulares. Acima de tudo, para Foucault, a produção do conhecimento é sempre atravessada por questões de poder e do corpo; e isso expande enormemente o escopo do que está envolvido na representação (p. 93).

5. Onde está o “sujeito”?

O último capítulo (antes do resumo) do texto aborda criticamente a posição do sujeito principalmente no pensamento de Foucault, já que Saussure se absteve de falar sobre os indivíduos – vale lembrar que o foco de sua “ciência” é a langue, não a parole. Hall traz que o filósofo trabalha a questão do sujeito em seus trabalhos mais avançados, ainda que de maneira a romper com uma ideia ilusória de sujeito totalmente dotado de consciência/núcleo de si mesmo – para ele, o sujeito é produzido (e só existe) no discurso. “É o discurso, não os sujeitos que o falam, que produz o conhecimento. Sujeitos podem produzir textos particulares, mas eles estão operando dentro dos limites da episteme, da formação discursiva, do regime da verdade, de uma cultura e período particulares” (p. 99), explica.

O ‘sujeito’ de Foucault parece ser produzido por meio do discurso em dois sentidos ou lugares diferentes. Primeiro, o próprio discurso produz ‘sujeitos’ – figuras que personificam formas particulares de conhecimento que o discurso produz. Esses sujeitos têm os atributos que poderíamos esperar, como definidos pelo discurso: o homem louco, a mulher histérica, o homossexual, o criminoso individualizado, e assim por diante. Essas figuras são específicas para regimes discursivos e períodos históricos determinados. O discurso também produz um lugar para o sujeito (ou seja, o leitor ou espectador, que também está ‘sujeito ao’ discurso), onde seus significados e entendimentos específicos fazem sentido. Não é inevitável, nesse sentido, que todos os indivíduos em um dado período se tornem sujeitos de um discurso em especial, portadores de seu poder/conhecimento. Mas para que eles – nós – assim façam/façamos, é preciso se/nos colocar na posição da qual o discurso faz mais sentido, virando então seus ‘sujeitos’ ao ‘sujeitar’ nós mesmos aos seus significados, poder e regulação. Todos os discursos, assim, constroem posições de sujeito, das quais, sozinhos, eles fazem sentido. (p. 100)

Para explicar a complexidade do sujeito (e da representação em sentido mais amplo) no pensamento de Foucault, Hall traz a discussão em torno da pintura Las Meninas, de Diego Velázquez – sobre a qual o filósofo disserta na sua obra As palavras e as coisas (1999). É uma obra bem complexa, que merece um tempo de deslumbramento para tentar entender o que está acontecendo. “A representação e o sujeito são as mensagens por trás da pintura – o que ela quer dizer, seu subtexto […] É tão construída em torno daquilo que você não pode ver, quanto daquilo que pode observar”, explica. Segundo Foucault, o sentido da imagem é produzido “por meio dessa complexa interação entre presença (o que você vê, o visível) e ausência (o que você não pode ver, o que está deslocado no quadro)” (p. 105).

É uma questão de perspectiva: os autores apontam que há dois “centros” na pintura – a menina (ao meio) e o casal real (que não aparece explicitamente na obra a não ser no reflexo do espelho, mas cuja encenação nos permite concluir sua presença). Esse jogo de atenção suspensa sempre adia o sentido final, uma vez que “nós tomamos as posições indicadas pelo discurso, nos identificamos com elas, sujeitamos nós mesmos aos seus sentidos e nos tornamos ‘sujeitos'” (p. 106). A visão radical de Foucault argumenta que é o sujeito que sempre há de completar o sentido, pois “o discurso produz uma posição de sujeito para o espectador-sujeito”.

Para a pintura funcionar, o espectador, quem quer que ele ou ela seja, deve primeiro se sujeitar ao discurso dela e, dessa forma, tornar-se o espectador ideal da pintura, o produtor de seus sentidos – seu ‘sujeito’. Isso é o que significa quando é dito que o discurso constrói o espectador como um sujeito – pelo que queremos dizer que ele constrói um lugar para o sujeito-espectador que está olhando e produzindo um sentido para a cena. […] A representação, portanto, ocorre a partir de pelo menos três posições na pintura. A primeira somos todos nós, o espectador, cujo “olhar” coloca juntos e unifica os diferentes elementos e relações na imagem em um sentido geral. Esse sujeito deve estar lá para a pintura fazer sentido, mas ele/ela não está representado na tela. Em seguida, há o pintor que retratou a cena. Ele está “presente” em dois lugares de uma vez, uma vez que deve ter sentado onde nós estamos agora para pintar mas, então, colocou-se (representou a si próprio na) na imagem olhando para trás, em direção àquele ponto de vista onde nós, espectadores, tomamos seu lugar (p. 107).

6. Conclusão: representação, sentido e linguagem reconsiderados

Na conclusão do texto, Hall faz um resum(ã)o de tudo que foi apresentado/discutido, começando pela definição mais simples de representação: “trata-se do processo pelo qual membros de uma cultura usam a linguagem (amplamente definida como qualquer sistema que emprega signos, qualquer sistema significante) para produzir sentido”. Essa concepção já descarta, de certa forma, a teoria reflexiva, pois somos nós que atribuímos sentido às coisas. E se o sentido é atribuído pela sociedade, conforme mudanças ocorrem, eles também mudarão: “uma ideia importante sobre representação é a aceitação de um grau de relativismo cultural entre uma e outra cultura, certa falta de equivalência e a necessidade de tradução quando nos movemos de um universo mental ou conceitual de uma cultura para outro” (p. 108).

Essa abordagem construtivista, defendida pelo autor, aponta três “ordens” diferentes que envolvem o jogo da representação: o mundo das coisas/pessoas/eventos/experiências (o mundo físico); o mundo conceitual (nossos mapas mentais); e os signos, arranjados nas linguagens, que comunicam esses conceitos. A construção de sentido através da representação só se faz possível através do ciclo de codificação e decodificação dos significados, no entanto, conforme chama a atenção: “por estarem os sentidos sempre mudando e nos escapando, os códigos operam mais como convenções sociais do que como leis fixas ou regras inquebráveis”, ou seja, os códigos – e os sentidos – de uma cultura estão sempre em constante disputa.

“Nós olhamos para duas versões do construtivismo: aquela que se concentrou em como linguagem e significação (o uso de signos na linguagem) funcionam para produzir sentidos, que depois de Saussure e Barthes nós chamamos de semiótica; e aquela, seguindo Foucault, que se concentrou em como o discurso e as práticas discursivas produzem conhecimento”, relembra Hall. A semiótica destaca a importância do significante e do significado (langue e parole), demarcando sobretudo a diferença e estabelecendo oposições binárias para a produção do sentido. Já a abordagem discursiva leva mais em consideração o poder e o conhecimento em voga, que atuam sob regimes de verdade e cujo discurso produz os sujeitos definindo também suas posições (de onde o conhecimento procede).

Hall finaliza o texto ratificando que não defende uma teoria em subjugamento da outra, reiterando que tanto a semiótica de Saussure e Barthes têm muito a colaborar assim como os pensamentos de Foucault também são extremamente importantes para o contexto da representação. “O que nós oferecemos aqui é, esperamos, um balanço relativamente claro, embora experimental, de um conjunto de ideias complexas de um projeto não acabado” (p. 111), explica. O segundo texto da obra, “O espetáculo do outro”, é onde ele promete aplicar tudo que foi passado até aqui de maneira prática, colocando em prática a teoria mas não tomando-as como completamente verdadeiras.

Monitoramento e métricas de mídias sociais: do estagiário ao CEO

Desde que a pesquisa d’O profissional de inteligência de mídias sociais no Brasil adicionou à seção de fontes de estudo, em 2015, uma pergunta sobre quais livros são referência no mercado, a obra “Monitoramento e métrica de mídias sociais: do estagiário ao CEO” de Diego Monteiro e Ricardo Azarite se manteve no top 3 todos os anos – perdendo o posto de livro mais indicado apenas na última edição, em 2017, para a coletânea do IBPAD. Foi o primeiro livro sobre monitoramento de mídias sociais do país com versão impressa que ajudou, em 2012, junto ao anterior e-book “Para entender o monitoramento de mídias sociais” (2011), organizado por Tarcízio Silva, na consolidação da área no Brasil.

Trata-se, também, obviamente, de um livro estratégico: como chefias do Scup na época, Monteiro e Azarite buscavam consolidar autoridade sobre o tema ao mesmo tempo que também capacitavam o mercado – ainda muito precoce – sobre como desenvolver um trabalho eficaz de monitoramento. Isso não significa, entretanto, que é um livro-panfleto, muito pelo contrário – Mari Ferreira, poucos meses após o lançamento, escreveu: “Com esse livro, o Scup deu um baile e um passo a frente na concorrência, no quesito referência em desenvolvimento e fomento do mercado”. E Tarcízio Silva, outra figura também bastante responsável por fomentar o mercado de monitoramento de mídias sociais (e um dos autores do prefácio), classificou-o como: “uma obra útil, abrangente e rigorosa”.

Com tamanho respaldo, quando decidi comprá-lo, ainda em 2016, as minhas expectativas eram enormes. Confesso, entretanto, que – naquele momento – não conseguir identificar todos os elogios que tinham sido atribuídos à publicação na época do seu lançamento. Talvez, portanto, tivesse feito um post sobre ele naquele ano, a minha abordagem teria sido um pouco diferente. Dois anos se passaram e, hoje, revisando todos os capítulos e sabendo tudo que eu sei (sobre a “história” do monitoramento de mídias sociais no mercado), consigo entender a sua importância. Porque, de fato, como Mari Ferreira pontuou, é um livro: 1) didático, bastante explicativo para todos os níveis; 2) conciso, que resume os principais apontamentos da área e; 3) consistente, que sustenta toda a teoria com falas reais e contextualizações práticas.

Como o próprio nome indica, “Monitoramento e métrica de mídias sociais: do estagiário ao CEO” é dividido em duas partes não-oficialmente-nomeadas: a primeira foca em gestão e negócios, trazendo um esforço importante de aculturamento do trabalho – não somente o monitoramento, é bom destacar – em mídias sociais para empresas de todos os tipos. A segunda parte não é para CEOs/gestores, mas para estagiários/analistas: práticas e aspectos do dia a dia do trabalho são apresentadas (muitas – a maioria – que seguem os mesmos moldes até hoje, seis anos depois) seguindo a metodologia proposta pelos autores – que guia todo o livro. Mais do que uma resenha, neste post pretendo fazer um resumo dos principais pontos levantados na obra a partir de uma visão crítica, ainda que levando em consideração o contexto do seu lançamento.

E para que serve medir a performance do seu negócio? Cito pelo menos quatro razões-chave para justificar: melhorar sua tomada de decisão, aprender e ajustar para evoluir seu desempenho, abrir alas para que você consiga estipular metas a serem alcançadas e agir em tempo para corrigir algo em rota de colisão.
Fabio Cipriani

INTRODUÇÃO – Mídias sociais: mais que um departamento, uma competência para todas as áreas da empresa

O livro começa batendo numa tecla muito importante: “mídia social não é um departamento, é um conhecimento” (Ian Black). Pode parecer uma afirmação óbvia em 2018, mas, em 2012, as (grandes) empresas ainda estavam se adaptando a essa realidade. E, por mais que de lá para cá as coisas tenham mudado (e melhorado) bastante, essa percepção de que as mídias sociais seriam uma “atividade restrita a um departamento específico” ainda se mantém até hoje. O simples fato de ainda termos o cargo “social media” mostra que pequenas e médias empresas ainda sofrem para evoluir nesse critério.

De olho nos grandes negócios, os autores atribuem essa dificuldade à “pouca troca de experiência prática entre os profissionais do mercado”. Talvez essa fosse uma realidade naquela época, mas, seis anos depois, podemos dizer que muito já foi trocado e debatido sobre esse assunto. Hoje o conhecimento já foi “absorvido de forma mais profunda por universidades, editoras e meios de comunicação”, mas o problema não parece ter sido solucionado como um todo. Por isso a metodologia Social Media Cycle (SMC) apresentada no livro ainda consegue ser atual e relevante, uma vez que “foi construída a partir das experiências de diversos profissionais, que compartilharam por meio de entrevistas as melhores práticas que conhecem para o trabalho com mídias sociais” a fim de ajudar o mercado “a dar o grande salto que ele precisa”.

A introdução, portanto, tem como objetivo mostrar como as mídias sociais não podem ser um departamento isolado (baseado em procedimentos e requisições), mas uma competência distribuída (baseado em entendimento e alinhamento). Nesse contexto a publicação também argumenta pela importância e constância das mídias sociais ao longo do tempo, tirando o selo de apenas mais uma “modinha” da internet. Levando em consideração principalmente que esta primeira parte do livro é mais direcionada para gestores, é uma argumentação importante respaldada por falas de vários profissionais do mercado. Para ilustrar o impacto da nova competência (no contexto de negócios), os autores apresentam uma tabela bastante didática:

Esse é, na verdade, um grande mérito do livro. Todos os capítulos, sem exceções, dispõem de pelo menos três ou quatros figuras (fluxogramas ou tabelas). Embora possa parecer exaustivo, na verdade, tendo em vista o público-alvo, é um ótimo artifício para resumir o que os autores estão querendo passar de maneira sintetizada. Ao total, são quase 50 figuras que ajudam a compor o aspecto extremamente didático do livro. Além desse atributo, boa parte dos capítulos também começam – ou ao decorrer do texto acabam aparecendo – narrativas fictícias que simulam situações de negócios/mercado, mais uma vez na tentativa de fisgar o empresário que está lendo a publicação e/ou localizar o profissional/analista que consegue se identificar com aquela história.

Apesar das limitações, as mídias sociais fazem parte da realidade das empresas. O grande problema é que há vários casos de organizações e profissionais atuando nas mídias sociais segundo o modelo de tentativa e erro. Não só porque elas não estão inseridas num novo campo de conhecimento, mas também por gerarem a sensação de que são simples. “Afinal de contas”, dizem alguns gestores, “até uma criança de 7 anos sabe criar uma página em uma mídia social”. A realidade é que existe uma imensa diferença entre colher, postar informações, e interagir nos canais sociais de maneira estruturada, de modo a obter bons resultados para o negócio do ponto de vista estratégico, a fazer isso de maneira improvisada (pág. 23).

Vale pontuar também que os autores argumentam pelas mídias sociais a partir da perspectiva de monitoramento e métricas, ou seja, para além do apoio ao trabalho de social media, eles buscam evidenciar como essa competência pode – e deve – auxiliar em todas as frentes de negócios (RH, Logística/compras, TI, Marketing, Financeiro, Jurídico, Atendimento, Produtos): percepção quanto a empresa e comportamento dos colaboradores, qualidade de entrega e serviço, disponibilidade e qualidade dos sites e sistemas, direcionar/melhorar campanhas e divulgação, passivos jurídicos e impacto de esclarecimentos em geral, qualidade do processo de atendimento e demandas do consumidor, gestão de comunidade, etc.

CAPÍTULO 1 – Como superar a visão “broadcast” para se aproximar dos clientes nas mídias sociais

Após a introdução sustentar o argumento de que mídias sociais não são um departamento, mas um conhecimento/competência, o primeiro capítulo chama a atenção para as mudanças de paradigmas que as plataformas sociais impingiram à sociedade atual. A partir do Cluetrain Manifesto e do livro Groundswell – Fenômenos Sociais nos Negócios (Charlene Li e Josh Bernoff), os autores explicam o que André Lemos já apontava em 2003 sobre a liberação do pólo de emissão: “Se pudéssemos resumir essa visão em uma frase, poderíamos dizer: ‘transferência de poder’. Um poder que deixou de ser centralizado (pelos donos dos meios de comunicação, como jornais e redes de televisão) e passou a ser distribuído” (pág. 30).

É evidente que essa afirmação – principalmente recortada de tal maneira – é um pouco prepotente e, ao passar dos anos, temos percebido que essa “descentralização” não se fez tão forte assim mesmo com as diversas tentativas da internet. Os próprios autores têm essa preocupação de retomar a ideia e explicar como ela é muito mais complexa do que aparentava ser (no início dos anos 2000, talvez), no entanto, ainda assim, para os fins didáticos da obra e pensando o olhar voltado para a atuação de marcas/empresas/negócios na internet, esse era (é) um argumento bastante válido. Isso porque, como apontaram ainda em 2012: “Em vez de se reinventar nas novas plataformas, as empresas de comunicação promoveram a simples migração de conteúdos”.

Muitas vezes, apesar de seu potencial, as mídias sociais são encaradas como um local para a exposição de marcas semelhante a um outdoor, comercial de televisão ou banner de um portal. Segundo essa lógica, o que importa é o número de seguidores e visualizações de conteúdos de perfis. Assim, as mídias sociais acabam se tornando mais um canal para as empresas, mais uma mídia. A verdade é que, como bem definiu a pesquisadora Katie Delahaye, as “mídias sociais não são sobre mídias, mas sim sobre a comunidade na qual você faz negócios”. – pág. 32

Faço questão de pontuar o ano da publicação e trazer também a citação acima para mostrar como as coisas (infelizmente) não mudaram tanto assim mesmo depois de seis anos. Cada vez mais, nos últimos anos, as empresas (principalmente pequenos e médios negócios) se tornaram dependentes de uma única plataforma e atuam com um modus operandi de panfletagem que não reflete em nada as dinâmicas e os atributos específicos da rede. São, portanto, dois pontos distintos, mas que se complementam: a dependência de uma mídia e o equívoco de tratar esta – ou qualquer outra social – apenas como mídia. Nesse contexto, somos bombardeados de anúncios que não queremos ver por profissionais cada vez mais requisitados no mercado de trabalho.

Por fim, o primeiro capítulo ainda engata uma discussão muito popular nos dias de hoje: inbound x outbound marketing. Este debate é levantado, entretanto, sem citar essas terminologias e, ao mesmo tempo, em tom de crítica à (segunda) abordagem que as empresas tiveram perante as mídias sociais. Nesse cenário, elas eram interpretadas como mídia: empurram informações, perpetuam modelo corporativo e dão bastante relevância para transação; quando em troca constante clientes-empresa, podem trocar informações, renovar a forma de fazer negócios e a prioridade é conversação. Hoje, este cenário se alinha mais com o conceito de inbound marketing, ainda que este tenha se tornado extremamente invasivo e “vazio” – graças ao boom do marketing de conteúdo.

CAPÍTULO 2 – Níveis de maturidade em mídias sociais: o caminho para a evolução da empresa

No segundo capítulo, os autores apontam três abordagens pela quais as empresas costumam enxergar as mídias sociais: como uma plataforma de publicação, como um espaço de relacionamento ou como uma rede de mobilização. Embora enfatizem que não há uma maneira correta nessas três perspectivas, atribuem a cada uma delas um nível de maturidade que “avança” conforme a complexidade do trabalho. Deste modo, conseguem localizar a metodologia elaborada: o Social Media Cycle, no qual a mídia social em 1) é vista como (mais) um canal de contato; em 2) é vista como um espaço de conversação/diálogo; e em 3) é vista como um novo formato de fazer negócios e gerir a organização.

É óbvio que, ao atribuir níveis de maturidade para as abordagens das empresas frente às mídias sociais, ainda que não dite o certo ou errado, hierarquiza o trabalho de maneira que nenhum negócio vai querer ficar atuando de maneira amadora. Além do Scup, outras empresas como a ferramenta Simply Measured e a consultoria Altimeter (Prophet) também já propuseram metodologias para interpretar “estágios” de atuação das empresas nas mídias sociais. Embora cada uma utilize suas terminologias específicas, o direcionamento para o progresso é comum em todas as propostas: o maior nível de maturidade será alcançado quando as mídias sociais forem incorporadas a todas as vertentes de negócios. “É necessário ter um modelo que traga um direcionamento e mais eficiência para o trabalho com mídias sociais, assim como provoque uma evolução no nível de maturidade das empresas como um todo” (pág. 59).

Na metodologia do livro, cada área – conteúdo e campanhas, interação e atendimento, tomada de decisão plano de negócios – é destrinchado para que o leitor consiga localizar onde a sua empresa (mais uma vez, direcionando a narrativa para CEOs e gestores) está para cada nível de maturidade. Novamente, ratificam: a busca irresponsável pelo terceiro nível “é um erro porque […] depende de diversos fatores, como momento financeiro da empresa, engajamento da direção executiva e definição de objetivos e metas para um determinado período” (pág. 52). Ainda nesse contexto, os autores entram numa discussão ainda bastante atual sobre o que motiva as empresas nas mídias sociais: ROI (economizar dinheiro/gerar mais vendas), competitividade (ser melhor que a concorrência) ou o cliente (ser mais relevante para o consumidor) – dado o argumento até aqui, a conclusão é esperada:

Quando o cliente é o centro das atenções, tanto o ROI quanto a concorrência não podem ser ignorados. Mas há uma diferença: não se deixará de fazer algo que todos percebem como importante simplesmente porque não gerará vendas – ou pior: gerará vendas que não poderão ser medidas. Nesse cenário, as ações realizadas não trazem receitas ou economia de custos de um modo direto, mas seus efeitos vêm a longo prazo. A empresa encara as mídias sociais como algo estratégico (pág. 55).

Ainda no contexto da metodologia SMC, os autores indicam as formas de atuação segundo os níveis de maturidade: para produção de conteúdo e campanhas, há desde embasamento no modelo de mídia tradicional, sem levar em conta interação e continuidade (SMC1), passando por estímulo de conversação (SMC2), até envolvimento de toda empresa (SMC3); quanto a interações e SAC, começa com a replicação da estrutura e mentalidade de canais tradicionais, foco em neutralizar as reclamações (SMC1), passa pela reconfiguração de processos e estruturas para enxergar o atendimento como oportunidade para reforçar a experiência do cliente (SMC2) até a integração do SAC 2.0 com todos os níveis organizacionais (SMC 3); por fim, para tomada de decisões, parte da restrição das informações às áreas de marketing aleatoriamente (SMC1), passando por demanda de informações para momentos específicos de mudanças (SMC2) até a utilização estratégica e definitiva para políticas da empresa (SMC3).

CAPÍTULO 3 – O ciclo das mídias sociais na perspectiva dos negócios

Depois de introduzir as mudanças de paradigmas e como as empresas têm encarado essa realidade nos dois primeiros capítulos, o foco do terceiro é começar a adubar terreno para entrar na disciplina de monitoramento. Para isso, entretanto, há um esforço perceptível – e justificável, levando em consideração um dos públicos esperados para a obra – dos autores em contextualizar a importância desse trabalho com a visão de negócios. A ideia de “ciclo”, no título, parte do conceito de aprendizado em circuito duplo proposto por Chris Argyris, professor de Harvard. De maneira simples, o argumento é que, quando há um problema, há duas formas de resolvê-lo: apagando o incêndio ou indo atrás do que o causou para que não aconteça nunca mais.

No contexto das mídias sociais, tal teoria ganha um novo impulso e se torna imperativo colocá-la em prática. Antes, com a publicidade tradicional, o foco das empresas era (e podia ser) em sua imagem. Isso porque a experiência real das pessoas com a marca não aparecia na mídia. Hoje, acontece o contrário. As experiências reais dos consumidores estão em evidência – e não as imagens criadas num estúdio a partir de um roteiro pensado pela empresa. Agora, as organizações precisam lidar mais com a realidade do que com a imagem que querem passar. […] A organização que trabalha com o conceito de circuito duplo melhora o negócio como um todo – e chega a uma solução duradoura. Quando a organização passa a ser gerida nesse modelo, todas as áreas e camadas hierárquicas valorizam as informações vindas das mídias sociais. Elas não só fazem esforços para usá-las, como demandam, de uma maneira pró-ativa, dados de monitoramento para tomar decisões. (pág. 65-66).

Um dos grandes méritos do livro está em, ainda que apresente os diferentes níveis de maturidade, sempre “recomendar” o direcionamento ao mais avançado. Nessa parte, por exemplo, a divisão entre ciclo virtuoso e vicioso nas mídias sociais argumenta pela inteligência (estratégica) para além da otimização (operacional) do monitoramento. Ou seja, por mais que admitam que há diferentes maneiras de atuação, (o SAC ser tratado apenas como resolução de problemas comunicacionais – levando em consideração o “momento” que a empresa se encontra em relação a sua atuação digital), o argumento preza sempre pela evolução e melhoria do negócio a partir dos dados das mídias sociais. No fim das contas, tudo depende de planejamento.

Todo processo dentro de uma organização passa por um ciclo, em que há: planejamento, implantação, acompanhamento e melhoria. É o ciclo do “agir”. Um projeto de mídias sociais de uma empresa conta com etapas que levam em consideração seu nível de maturidade no planejamento, como os dados serão capturados na implantação e assim por diante. Mas de pouco adianta ter um processo muito bem definido se os ganhos não se espalham pela empresa. Por isso, esse ciclo só é realmente efetivo se houver um segundo momento além do “agir”, o “difundir”. Esse momento se refere ao impacto mais intangível do processo nos negócios da empresa, o impacto cultural. É como o output desse trabalho será valorizado, entendido e usado por todos na empresa (pág. 69).

Este capítulo fecha com uma proposta de modelo de atuação nas mídias sociais (com foco principalmente no trabalho de monitoramento e dados em geral), levando em consideração principalmente quatro fases do SMC: 1) mensurar os objetivos de negócio e a maturidade da empresa internamente para; 2) capturar as informações e operacionalizar o fluxo de monitoramento como um todo e enfim; 3) analisar as informações para gerar conhecimento e e inteligência estratégica de negócios até; 4) disseminar as práticas por meio dos resultados das etapas anteriores com capacitação e informação. É importante manter em mente essas etapas porque elas serão retomadas ao longo do livro.

CAPÍTULO 4 – Monitoramento: o coração das mídias sociais

A proposta deste capítulo é destrinchar o ciclo apresentado anteriormente ainda com mais detalhes. Um grande defeito, entretanto, na minha opinião, é a união de ambas as disciplinas (monitoramento e métricas) em um grande processo. Eu entendo que houvesse uma necessidade de argumentar estrategicamente por ambos os trabalhos de maneira conjunta na época (afinal os dois lidam, essencialmente, com dados), mas achei irresponsável trazê-los sem uma distinção explícita logo de imediato – algo do tipo só acontece nos dois capítulos seguintes, mas ainda de maneira confusa.

Para o capítulo quatro, então, tomemos como saldo a proposta e argumentação operacional do Social Media Cycle, levando em consideração todas as etapas do trabalho que envolve desde coordenadores (para definir escopos e objetivos; dimensionar e estruturar equipes e processos), passando por analistas (para pensar métricas/KPIs, plano de classificação e keywords; e analisar em busca de melhorias), até gestores (para desenvolver todo o trabalho aculturamento da empresa com base nas análises).

CAPÍTULO 5 – Como definir métricas a partir dos objetivos de negócio

O quinto capítulo do livro é o maior e provavelmente o mais denso de todos em termos de informação a ser consumida – e assimilada – pelos mais variados tipos de leitores. Ele começa, mais uma vez, com uma proposta de exercício para localizar o nível de maturidade da sua empresa. Pode parecer cansativo, mas é importante bater nessa tecla para que o leitor, principalmente no caso de gestores ou empresários não familiarizados com o trabalho em mídias sociais, não queira dar um passo maior que a perna. É preciso, nesse cenário, levar em consideração: a disposição da empresa, o orçamento disponível, a visão de negócio, o tempo/prioridade da transformação digital e a preocupação dos superiores. A tabela abaixo serve como esquema didático para exemplificar as diferentes atividades de acordo com o nível de maturidade das organizações.

Após esse exercício, acontece (novamente) o problema que citei anteriormente: o nome do capítulo fala sobre métricas e o texto apresenta, quase sem contextualização, ensinamentos sobre o monitoramento de mídias sociais. Esse é um problema relevante, a meu ver, porque é uma constante no mercado a confusão entre monitoramento e métricas. Já vi a expressão “monitorar resultados” ser empregada várias vezes no sentido de “atividade de ficar de olho nas métricas”, ou seja, não se trata de um trabalho de monitoramento, mas um trabalho com métricas. É óbvio que é inevitável que essa expressão, em seu significado mais amplo, não acabe também se referindo ao trabalho com métricas, mas particularmente, tratando-se de fontes que entendem essa diferença, acho um pouco irresponsável não evidenciar essa distinção.

Feito esse adendo, posso continuar com o conteúdo apresentado no livro. São apresentados, então, três tipos de monitoramento: ouvir, contra-ação e tomada de decisão – todos estreitamente ligados aos níveis de maturidade apresentados no capítulo 2. Em seguida, explica-se que o monitoramento pode ser feito sobre uma marca, um evento ou um tema. Cada um desses cenários demandará um planejamento específico e dedicado ao projeto de monitoramento, para que sejam definidos os objetivos, as ferramentas que serão utilizadas, o set up necessário, a mão de obra de trabalho (e suas devidas funções), até análise e entrega final. Para quem tiver interesse específico, recomendo a série de posts que fiz sobre o material do curso de monitoramento de Tarcízio Silva aqui no blog.

A definição do que será medido num monitoramento de mídias sociais depende dos objetivos de cada departamento – e da empresa como um todo. Tendo em mente isso, os indicadores de negócio (métricas com um significado de negócio) serão estabelecidos. Eles são chamados de KPIs (Key Performance Indicators, na sigla em inglês) e representam as necessidades estratégicas da empresa. Dificilmente cada objetivo de negócio tem mais de três KPIs (pág. 92).

Na subseção “Escolhendo os ‘objetivos’ e métricas'”, as falas sobre os primeiros são certeiras: “como as mídias sociais refletem seres humanos, fica impossível determinar padrões aplicáveis a qualquer empresa” (pág. 94). Toda a sustentação do argumento – de que as métricas devem ser selecionadas a partir da sua máxima de valor para os objetivos de negócios – parte da famosa frase de Douglas Hubbard: “Mensuração é uma redução quantitativamente expressa de incerteza, baseada em uma ou mais observações”. Particularmente gostei bastante de outra ótima citação, da então coordenadora de BI da dp6, Luana Baio: “O estratégico não está relacionado à simplicidade ou à complexidade da métrica, mas sim ao valor da informação que ela traz consigo”.

Quando pensamos nos objetivos de negócio da empresa, não há certo nem errado. Não há nada de errado em usar uma métrica baseada na quantidade de compartilhamentos de uma mensagem como KPI quando se deseja medir o resultado de uma campanha de divulgação da marca (branding). Mas, se pensarmos na maturidade da empresa como um todo, veremos que há métricas mais evoluídas (pág. 95).

Infelizmente a confusão em torno de monitoramento e métricas volta logo em seguida, na tentativa de explicar os diferentes “tipos” de dados das mídias sociais. Na figura 5.7, logo abaixo, por exemplo, intitulada “Modelagem SMC de métricas em mídias sociais”, os dois primeiros tipos de dados (o quê e como) são frutos do trabalho de monitoramento enquanto os dois últimos (quem e quanto) podem ser tanto de monitoramento quanto de métricas, sendo apenas o último (onde) relacionado ao tracking de ações e, por tanto, exclusivo de métricas. O mesmo problema se repete na figura 5.8: opinião e público são referentes ao monitoramento; audiência, transacional e navegação são referentes às métricas; e relacional, demográfico e participação podem se referir a ambos.

Há até uma tentativa do autores de diferenciar métricas, dados e KPIs, no entanto, com exceção do último, o restante ainda aparece bastante confuso. Em suma, e desfazendo a confusão levantada até aqui, poderia dizer que métricas são, a grosso modo, indicadores. Isso significa que, no trabalho de monitoramento, é provável que métricas serão acionadas: quantas comentários positivos? quantos comentários sobre a campanha? quantos comentários mencionando o influenciador X?; no entanto, o trabalho com métricas de mídias sociais – comumente também chamado de social analytics (ou web analytics, para blogs) – envolve métricas (ou indicadores) já pré-dispostos nas plataformas: cliques, likes, bounce rate, etc.

Na prática, funciona mais ou menos assim: um analista de métricas (ou de BI/analytics) trabalha com indicadores já provenientes das mídias sociais, pois são “rastros digitais” deixados pelos usuários nas páginas/publicações; enquanto um analista de monitoramento trabalha com toda uma linha de pesquisa que envolve a estruturação de coleta e análise de comentários e/ou relacionado a indivíduos (como é o caso com o envolvimento de análise de redes) para gerar dados que podem ser quantificados como métricas/indicadores. Ambos trabalham com dados (de mídias sociais) e com a mesma finalidade: extrair inteligência estratégica deles, mas os meios para este mesmo fim são diferentes para cada cenário.

A seguinte diferenciação que os autores fazem entre dados, informação e conhecimento a partir do famoso esquema de David Sommerville devolve o conteúdo de volta aos trilhos, mas a insistência em classificar os dois últimos como “métricas” pode – novamente – confundir o leitor. Vale destacar aqui a apresentação de alguns KPIs famosos no mercado que ganharam força principalmente à época pela divulgação de um material da Altimeter. Esses são apresentados e ensinados até hoje em cursos de monitoramento de mídias sociais como algumas alternativas possíveis para análise de resultados:

  • Share of Voice: porcentagem de menções da marca comparado ao universo com os concorrentes, que pode ser cruzado com dados de sentimento/tema e avaliado temporalmente;
  • Taxa de sentimento: proporção de menções por sentimento em relação ao total;
  • Imagem: proporção de menções positivas e neutras em comparação ao total;
  • Advogados da marca ativos: proporção de usuários que geraram resultados positivos nos últimos 30 dias em comparação ao todo.

Ao tratar da relação entre métricas (que, aqui, são sempre referentes a indicadores do monitoramento) e os níveis de maturidade SMC, há uma proposta de contextualizar tudo isso com o esquema de funil de vendas de uma marca. O problema é que falar em funil de vendas na internet implica automaticamente levar em consideração a jornada do consumidor online, que – pelo menos na grande maioria das vezes – só pode ser avaliada a partir de métricas de tracking, ou seja, referentes a cliques e navegação (e não proveniente do monitoramento). Toda essa confusão continua no resumo do capítulo, que apresenta as métricas de cada nível num contexto de monitoramento: SMC1 – audiência e volume; SMC2 – quantidade e qualidade das interações; SMC3 – recomendações.

O cruzamento de métricas do tipo social com métricas on-line e off-line potencializa o valor da informação e se torna uma fonte riquíssima para a tomada de decisão. Apesar dos benefícios que pode trazer, esse tipo de cruzamento é raro. Primeiro, porque há barreiras tecnológicas. Integrar bases que estão em locais e sistemas diferentes não é fácil. Em segundo lugar, porque há uma barreira “política”. As informações estão espalhadas por departamentos estanques, agências e prestadores de serviço da empresa. Para conseguir superar esses descasos, é necessário um esforço muito grande dos tomadores de decisão da empresa. Há casos de empresas que obrigam seus fornecedores a trocarem informações como condição básica para prestarem serviços. Com o passar do tempo, as pessoas deixam de enxergar a troca de informações como uma obrigação e passam a fazê-lo de um jeito mais espontâneo e pró-ativo. Isso porque percebem os ganhos desse tipo de integração (pág. 106).

A excelência da obra retorna quando os autores entram no tópico Return of Investment, com uma explicação séria, densa e responsável sobre assunto tão polêmico. “Quem trabalha com mídias sociais costuma sofrer uma grande pressão para calcular o ROI e provar que vale investir nesse tipo de trabalho”, no entanto, tratando-se de uma nova área, a falta de segurança e clareza “pode prejudicar sua aplicação e aprendizado” (pág. 106). Sempre trazendo exemplos e aplicações reais, os autores conseguem demonstrar ao público empresarial que é preciso muita cautela quando falamos de ROI de mídias sociais – e ainda apresentam alguns exemplos de aportes metodológicos (figura 5.15).

Há uma discussão coerente sobre as limitações e dificuldades do cálculo de ROI nas mídias sociais, nas quais os autores citam a dificuldade de capturar dados, a escassez de tempo e energia nas empresas e a responsabilização totalitária (e única) de uma ação para provar o resultado. Isso tudo, entretanto, não deve banir o ROI de vez: “Uma visão mais ampla permite perceber que os impactos financeiros são causados tanto por ações recentes e tangíveis como distantes e intangíveis” (pág. 116), explicam. Os autores citam, então, o modelo Balanced Scorecard (BSC), que traz quatro perspectivas de indicadores de negócios: aprendizagem (conhecimentos e competências que os colaboradores possuem), processos internos (qualidade e produtividade), cliente (retenção e finanças (receitas/despesas).

Na Figura 5.17, vemos que em todas essas perspectivas há um lado transacional e outro de relacionamento. Numa organização eficiente, recebem valor igual, pois tanto um quanto o outro são importantes para perpetuar o negócio. Assim, na perspectiva de Aprendizagem, há tanto indicadores que geram um impacto claro, como funcionários saberem inglês para vender no mercado americano, quanto indiretos, no caso de um curso mostrando a importância de atender bem o cliente no pós-venda. O critério para investir nesse tipo de atividade é o quanto ela afeta o tipo e o posicionamento de negócio (pág. 117).

Quando, portanto, devemos nos preocupar com ROI nas mídias sociais? Segundo Monteiro e Azarite, quando “estamos diante de um processo em que a ação e o impacto nas vendas é próximo e tangível (transacional)” (pág. 118). Quando foco das ações e estratégias sejam resultados intangíveis a longo prazo, recomenda-se pensar em KPIs diferentes. Para finalizar, um conceito bem legal que os autores apresentam é o de “Teoria do Negócio”, de Peter Drucker, no qual, de maneira simples, há um diferença entre ser uma empresa eficaz (o que faz) e ser uma empresa eficiente (como faz): “Drucker atentou para o fato de que as empresas na atualidade eram muito boas em serem eficientes, ou seja, em ter processos enxutos e sistemas de controle de desempenho. Em contrapartida, elas se tornaram muito frágeis para perceber e mudar a rota do negócio ou para implantar o posicionamento no dia a dia junto com a eficiência dos processos” (pág. 120).

CAPÍTULO 6 – Classificar, capturar e analisar: como colocar em prática o planejamento

O sexto capítulo tem uma abordagem mais prática sobre o trabalho de monitoramento, dividido em três momentos: classificar, capturar e analisar. O primeiro ratifica a importância do plano de classificação, que fornecerá a estrutura estratégica para interpretar os dados. O segundo coloca em xeque algumas questões técnicas, como dimensionamento (volume de trabalho x equipe), estruturação (possibilidades de terceirização), softwares (objetivo x funcionalidade), equipe (maturidade), processo (atividades), keywords (escopo) e implatação/acompanhamento (testes). A tabela abaixo resume e organiza cada um desses aspectos, que devem ser pensados na etapa de planejamento do projeto.

O último momento, analisar, refere-se à prática de “transformar os dados capturados em informações de negócio”. Ou seja, “para que os dados se tornem importantes na tomada de decisão, eles precisam estar qualificados e relacionados de modo a ficarem em sintonia com uma análise de interesse – no caso, falando de acordo com as missões, valores e objetivos de negócio da empresa (p. 137)”. Não menos importante, o trabalho de comunicar esses resultados, informações e inteligência é essencial para todos os contextos nos quais ele será apresentado (seja para gestores, diretores, analistas, cliente, etc.). Por fim, o exercício de melhoria constante:  “fazer otimizações e melhorias em todo o projeto para evoluir o monitoramento, tornando-o cada vez mais eficiente e estratégico”.

CAPÍTULO 7 – Aculturar: espalhando a cultura social na empresa

A proposta do capítulo 7 é oferecer um panorama menos informal – mais “planejado” e “potencializado” – para o processo de aculturamento em relação ao trabalho de mídias sociais na empresa: “Para gerar uma cultura de mídias sociais, é importante saber quais são as áreas e respectivas pessoas-chave para o projeto de mídias sociais” (p. 143). Eles sugerem definir pontes de aprendizado que levarão a “cultura de mídias sociais” para cada uma das áreas da empresa, levando em conta seu potencial de uso e nível de maturidade – além de interesse (da área) e influência. Nesse cenário, são recomendadas três atividades para aculturar a empresa como um todo à (nova) realidade de trabalho dedicado às mídias sociais.

Em busca constante por melhorias, os autores recomendam ainda um planejamento pós-demandas para identificar como é possível avançar com o aculturamento. Seria trabalho de um gestor, portanto, conforme indicado na obra, listar quais serão as ações tomadas para seguir em frente; estas pensando um público-alvo específico, que podem ser referentes às áreas ou níveis hierárquicos; e definir quais serão essas ações visando os objetivos e a prioridade de cada uma delas no cenário macro da empresa.

CAPÍTULO 8 – A operação de mensurar os dados das mídias sociais

Os três últimos capítulos do livro retomam as fases do trabalho apontadas no capítulo 6 (classificar, capturar e analisar). Neste penúltimo capítulo, portanto, os autores apresentam direcionamentos operacionais para o trabalho de monitoramento: como organizar as menções, como elaborar um plano de classificação, como integrá-lo com objetivos estratégicos, etc. Quanto ao primeiro, apontam duas medidas analíticas: sentimento e conteúdo (categorização). Embora seja um pouco simplista, é geralmente – até hoje – o ponto de partida dos projetos de monitoramento. No entanto, é importante ratificar que essas categorias analíticas são exclusivas ao conteúdo, enquanto hoje podemos averiguar também usuários, localização, etc.

Ainda sobre o plano de classificação, os autores reforçam que ele parte de alguns pontos básicos, como o objetivo do projeto, o nível de maturidade da empresa, as métricas do trabalho e um fluxo de trabalho bem alinhado entre operação e gestão. A integração entre o “núcleo de mídias sociais” e outras partes da empresa é indispensável para alinhar os objetivos de mídias sociais com os objetivos estratégicos de negócio. Recomendam, portanto, a participação de analistas e gestores no briefing e validação do plano de classificação: “A presença dos gestores no processo de planejamento da classificação não é operacional, mas sim uma participação de supervisão que trabalha pelo alinhamento com objetivos da empresa” (pág. 154).

Outra questão muito importante é a complexidade da análise de sentimento. Ainda que esse critério tenha sido adotado pelo mercado de monitoramento de mídias sociais como padrão, há algumas nuances a serem consideradas na simples divisão negativo-neutro-positivo: “Em linhas gerais, toma-se um ponto com o qual a análise de sentimento será relacionada, uma referência específica que varia de acordo com o objetivo de negócio da empresa” (pág. 155), que pode ser a marca, o produto ou o processo de vendas como um todo. Por exemplo, quando trabalhei para o CRM da E.life/Coca-Cola, o sentimento de uma mesma menção poderia diferenciar quanto ao atendimento, quanto ao produto e quanto à campanha. Isso é mais comum, entretanto, em projetos/empresas com mais maturidade.

Uma boa prática para a análise de sentimento mais completa é criar uma régua de proximidade com o cliente progressiva, que conta com dois níveis (tanto para positivo quanto para negativo): um diz respeito a algo mais pontual, à percepção da marca (que não necessariamente leva à ação); o outro diz respeito a um sentimento mais duradouro, referindo-se ao engajamento, que por sua vez implica em uma ação de destruição ou defesa da marca. A análise de sentimento que usa essa régua, portanto, consegue descrever com maior riqueza qual é o tipo de relação que os clientes têm com uma marca e acompanha o engajamento verdadeiro, aquele que vai além da mera citação. Na metodologia SMC, essa régua é chamada de análise de sentimento por engajamento (p. 157).

Além da análise de sentimento, o tratamento mais comum aos dados de mídias sociais é a categorização – que pode, inclusive, conforme apontado pelos autores, ser cruzada também com o sentimento. Deste modo, “a classificação compreende motivações (categorização) e intensidades (análise de sentimento) da relação existente entre uma marca e um consumidor” (p. 158). Pensando novamente a metodologia SMC, os autores apontam três níveis de plano de categorização, que depende de variáveis como investimento e maturidade da empresa. Eles se relacionam com a complexidade do sentimento já apontada, conforme o direcionamento de interpretação (tema, produto/situação, momento) e de valor estratégico (conteúdos, oportunidades, associação).

Menos confuso e mais prático, o framework dos 5-Ws e 1-H (o que motivou? reparo? menção? intenção de compra? sugestão?; em que momento? pré-compra? compra? pós-venda?; quem falou? cliente? mídia? funcionário? imprensa?; de onde falou? loja física? e-commerce? site?) dá um direcionamento interessante para quem trabalha com monitoramento: “Esse modelo consegue exprimir com detalhes a relação que os diversos agentes têm com a marca monitorada” (p. 160). Como medida alternativa (ou acrescente), gosto bastante também da metodologia de decompor, responder, descobrir e implementar proposta por Tarcízio Silva, pois ultrapassa as limitações da primeira e pensa de modo inteligente como não partir do zero.

A estratégia de categorização comportamental consegue trazer um cenário mais fidedigno do momento em que os consumidores entram em contato com a marca. Como resultado, as estratégias de marketing – principalmente, as baseadas em relacionamento – passam a ser embasadas em premissas sociais bastante sólidas, que agregam com relevância e proximidade ao consumidor. O plano de classificação alinhado com todos os personagens presentes no processo consegue solucionar alguns problemas e mitigar alguns riscos (p. 161).

CAPÍTULO 9 – Capturar: Dimensionando o trabalho de mídias sociais

O capítulo 9 expande o trabalho de monitoramento/métricas em direção à generalização do trabalho de mídias sociais, (ainda que) com dicas valiosas sobre processos e gestão operacional. Os autores pontuam o que deve ser considerado ao dimensionar a equipe, por exemplo (volume de menções, capacidade máxima/profissional, saúde da marca, software disponível); e como estruturar um projeto terceirizado, destacando seus benefícios (liberdade de análise e inteligência externa/isenta, etc.) e problemáticas (melhor integração, mais visão de negócio e agilidade nos processos, etc). Sobre isso, recomendam levar em consideração fatores como mercado, recursos e importância estratégica.

Os autores seguem com orientações sobre software, perfil da equipe e relação com a metodologia SMC. Quanto ao primeiro, destacam como características a serem avaliadas: usabilidade, estabilidade, facilidade de diagnóstico, trial, tipo de diagnóstico, dados capturados, flexibilidade e confiança – ratificando, no fim, escolha por preço x funcionalidade x performance. Quanto ao segundo e terceiro, recomendam um perfil “mais broadcast, que tenha boa capacidade analítica e metas numéricas” no SMC 1; “mais interativo, que tenha boa capacidade de ativação e comunicação e lide com metas mais intangíveis – de salubilidade da marca” para SMC 2 e; “mais de negócio, com conhecimento de valores da empresa e metas referentes a engajamento” para SMC 3.

O planejamento do monitoramento criará as demandas das tarefas – que, consequentemente, criam demandas de competências. Deve-se fazer um balanço da listagem das demandas com as disponibilidades de equipe, estrutura e recursos de modo geral (financeiros, humanos, infra estrutura e etc.). A solução para a estruturação da equipe é definir tarefas diferentes para um mesmo profissional, por exemplo. A escolha por dedicar ou compartilhar as tarefas pode ser feita tomando como base uma tabela com vantagens e desvantagens de cada um dos cenários. No micro ambiente – ou seja, no núcleo de mídias sociais –, há profissionais específicos, com cargos criados nos primeiros anos de atuação em mídias sociais. No macro ambiente – ou seja, nas áreas mais gerenciais, diretivas e executivas –, há a necessidade de uma nova integração (p. 180).

Vale ratificar que aqui os autores trabalham com um cenário no qual há um “núcleo de mídias sociais”, que seria como um departamento dentro de uma empresa (ou agência) que atuasse direta e exclusivamente com essa vertente. Ainda que considere essa realidade um pouco ultrapassada (o que poderia ser facilmente justificado pela época que o livro foi lançado), o verdadeiro problema aqui, a meu ver, é – novamente – a confusão do “trabalho” de mídias sociais e “trabalho” de monitoramento. Em nenhum momento fica evidente que estão falando de um projeto/área de monitoramento, mas de mídias sociais como um todo. A descrição dos papeis da figura 9.8 deixa tudo ainda mais confuso, ajudando ainda mais a reforçar esse problema.

Logo em seguida, o capítulo aborda uma questão basilar do trabalho de monitoramento, a escolha das keywords. Quando falam sobre esse assunto, entretanto, fazem com propriedade – alertam para a atenção a erros de digitação, apelidos, nomes errados, frases correlatas, personagens, por exemplo. Também indicam testes constantes – com um possível piloto de semanas para auditoria – quanto ao plano do software de monitoramento, a variedade de menções, a buscas feitas, a processos definidos e a equipe dedicada. “Uma boa prática é agir de modo a saturar ou estressar a estrutura operacional ao extremo, para saber, de fato, se o planejado atende as expectativas, inclusive em cenários tidos como incomuns” (p. 185), explicam.

O capítulo termina com o argumento de que “o núcleo de mídias sociais atende a toda a empresa”, enquanto reafirma que “o objetivo desse capítulo é mostrar como integrar o núcleo de mídias sociais aos responsáveis pela empresa em sua perspectiva mais abrangente” (p. 186). Ainda que, reforçando também nessa parte, citem boas práticas para que essa integração ocorra, o – meu – problema é que a narrativa ficou confusa ao falar sobre trabalho de mídias sociais e não de monitoramento (ou métricas, como mencionamos anteriormente). Por fim, os autores trazem novamente a metodologia SMC para falar sobre as evoluções dos processos de mídias sociais em cada nível de maturidade: o 1 como reagente de crises/confrontos, o 2 como processual e estruturado, e o 3 como evolução fluida e autêntica.

CAPÍTULO 10 – Analisar: Transformando dados isolados e descontextualizados em informações relevantes

O último capítulo do livro apresenta diversos modelos de análise comuns no mercado de monitoramento de mídias sociais. Os autores chamam a atenção para as etapas de analisar (transformar os dados), comunicar (compartilhar a informação) e melhorar (usar o conhecimento), como um processo contínuo e constante em busca de resultados eficazes. Quanto à análise mais especificamente, montam a base do pensamento analítico a partir de três formatos padrões: absoluto, progressivo e comparativo. Pode parecer óbvio para quem já tem o mínimo de experiência, mas é um ótimo embasamento para quem nunca parou pensar de modo estruturado no trabalho de análise.

É a partir desses três pilares básicos que o livro aponta outros 10 modelos de análise comuns ao trabalho de monitoramento:

  1. Análise por temos mais citados: associação de citações e menções à marca (absoluto);
  2. Análise por sentimento: avaliação quantitativa das menções por parâmetros de sentimento (comparativo);
  3. Análise por categorização das menções: avaliação quantitativa das menções por parâmetros de categorização (comparativo)
  4. Análise por horários de menções: análise temporal para compreender o comportamento digital dos consumidores (comparativo)
  5. Análise por hypes nos gráficos: análise temporal para averiguar momentos que fogem do padrão (progressivo);
  6. Análise por sazonalidade: análise temporal para averiguar padrões temporais recorrentes de um meio externo (progressivo);
  7. Análise por mineração de dados (BI): avaliação comparativa com base de dados externas às mídias sociais (comparativo);
  8. Análise por concorrência: avaliação comparativa de métricas referentes aos concorrentes (absoluto);
  9. Análise por exposição x market share: avaliação do impacto das mídias sociais no negócio (absoluto);
  10. Análise por audiência e relevância de influenciadores: avaliação comparativa do poder de engajamento e influência dos usuários (absoluto).

Além de esse ótimo panorama de análises mais comuns no mercado, o livro também levanta outro ponto muito importante: o relatório (e sua função comunicacional). A partir da fala da então analista Pri Muniz, os autores apontam três pilares principais a serem levados em consideração na produção de um relatório: interesses do público-alvo (o que querem extrair desse material?), conhecimento do público-alvo (quem são e quais os conhecimentos dos leitores?), relação público-alvo x núcleo de mídias sociais (quais são as expectativas?). Por fim, ainda recomendam boas práticas como a utilização de gráficos, exemplos, didática, contextualização do negócio e inovação estratégica.

Depois de analisar e comunicar, ainda falta uma etapa: “Essa é uma fase de avaliação própria que busca alcançar melhores resultados e mais eficiência no processo como um todo” (p. 210). Como dois métodos possíveis para esse processo, recomendam a otimização de atividades e o brainstorm de sugestões. O primeiro se preocupa em encontrar, durante o processo, novas maneiras de torná-lo mais eficiente, com menos esforço e possivelmente mais rápido através de uma possível metrificação. O segundo volta o olhar para as pessoas da equipe, que fazem parte do processo, e propõe medidas criativas para que seja realizada uma otimização.

CONCLUSÃO – A cultura das mídias sociais

Vimos neste livro como o monitoramento das mídias sociais pode contribuir para todas as frentes de um negócio e como colocar isso em prática. Percebemos que fazer esse trabalho está longe de ser algo simples e trivial, mas os ganhos são compensadores. Este livro, mais que explorar o tema, traz uma metodologia de trabalho. Essa é a sua primeira versão e, com certeza, poderá ser evoluída junto com você (p. 216).

Talvez o principal problema da obra é querer abraçar o mundo e falar de tudo ao mesmo tempo – o que poderia até ser (novamente levando em consideração a época em que foi lançado) uma necessidade (ou um risco válido) para ajudar a avançar o mercado. Nesse sentido, a introdução e os três primeiros capítulos são extremamente didáticos e valiosos: destaco principalmente o uso de figuras/fluxogramas que são ótimos aportes de ensinamento/compreensão, os exemplos fictícios que dialogam sempre com questões reais e a constante preocupação em admitir níveis de maturidade ainda que sempre encorajando pelo avanço.

Os capítulos 4 e 5 serão avaliados de maneira completamente diferentes a depender do leitor: a meu ver, como analista, há vários problemas práticos principalmente na confusão monitoramento x métricas – que em nada (ou pouco) ajuda um estagiário querendo aprender sobre o assunto, por exemplo; para um gestor ou CEO, entretanto, as explicações podem fazer sentido na teoria e ajudarem na valorização/consolidação da cultura dos dados. Ratifico, também para esse personagem, a ótima discussão sobre ROI – com um olhar cirúrgico de quem trabalha com o assunto mas, ao mesmo tempo, uma perspectiva realista de quem entende as cobranças do mundo dos negócios.

A segunda e última parte do livro, que teoricamente seria destinada para analistas/estagiários, tem seus pontos altos e baixos. Os capítulos 6 e 7, embora simples e diretos, são certeiros nas explicações e linhas de argumentação. O capítulo 8, mais denso, oferece um ótimo panorama operacional para pensar um projeto de monitoramento; assim como o capítulo 10, que fecha o livro muito bem com frameworks factíveis ao mercado. O problema de “querer abraçar o mundo” só volta a ficar evidente no capítulo 9, quando não fica clara a distinção entre trabalho(s) nas mídias sociais e o que seria – pelo menos indicado pelo título do livro – um trabalho de monitoramento/métricas.

E então, vale a leitura? Sim. Ainda que tenha alguns probleminhas (nem tão diminutivos assim), é um clássico do mercado de monitoramento/métricas e de mídias sociais como um todo. Se eu fosse estagiário (eu era, quando aquiri), leria para começar a me familiarizar com termos, questões e processos do trabalho. Se fosse CEO, também leria me familiarizar com termos, questões e processos do trabalho. É um livro básico (nem tão básico assim) para quem trabalha e/ou deseja trabalhar com monitoramento/métricas e social media em geral. Ajudou a moldar todo um mercado e continua atual em vários sentidos.

MONTEIRO, Diego; AZARITE, Ricardo. Monitoramento e métrica de mídias sociais: do estagiário ao CEO – um modelo prático para toda empresa usar mídias sociais com eficiência e de forma estratégica. São Paulo: DVS Editora, 2012.

Cultura e representação, de Stuart Hall – Introdução (e a Skol, hein?)

Se você é um leitor minimamente assíduo deste blog (ou me segue no Twitter), deve estar ciente que este é o ano em que faço meu trabalho de conclusão do curso de Estudos de Mídia, da UFF – cujo assunto perpassa temáticas como identidade, representação e sites de redes sociais. Para que eu possa desenvolver um trabalho de qualidade, escolhi – além de diversos artigos – três livros (talvez quatro) que devem me ajudar a pensar melhor como por em prática todas as minhas ideias. E, como faço constantemente neste blog, a ideia é compartilhar um pouco do conhecimento adquirido e possivelmente trazer alguns desses temas para debate.

Para esse primeiro post, compartilho as ideias de Stuart Hall no livro “Cultura e Representação”. Este, na verdade, é apenas o primeiro texto de três que pretendo compartilhar sobre o livro, que é dividido em três “partes”: apresentação + introdução, capítulo 1 (“O papel da representação”) e capítulo 2 (“O espetáculo do ‘Outro'”). Hoje, compartilho aqui algumas ideias retiradas da primeira parte, apresentação e introdução, com o intuito de fazer uma relação com o debate sobre o novo posicionamento da Skol. Confesso que estava em dúvida se teria conteúdo suficiente para publicar apenas a primeira parte (tendo em mente que esta são cerca de 30 páginas e, as outras duas, mais de 100 cada), mas encontrei nesse debate uma forma de utilizar de forma prática alguns dos conceitos. Comecemos, então, por eles.

Antes, no entanto, conheçamos o autor: Stuart Hall foi professor na Universidade de Birmingham, na Inglaterra, com trabalhos importantíssimos para os estudos culturais a partir do fim dos anos 60. Foi responsável por analisar – sob uma viés diferente da semiótica – os efeitos da mídia nas sociedades, constituindo o termo “politics of the image” (política da imagem, em tradução livre), que seriam todos os embates, questionamentos e disputas a qual uma imagem representa. Para ele, “a mídia produz amplos efeitos na sociedade, relacionados a um determinado tipo de poder que se exerce no processo de administração da visibilidade pública midiático-imagética”. Ele estava interessado em analisar, portanto, não exatamente os “efeitos de sentido” do discurso midiático/imagético, mas suas consequências na sociedade.

“Como um construtivista, Stuart Hall viu o ‘real’ como uma ‘construção social’, amplamente marcada pela mídia e suas imagens nas sociedades contemporâneas. Como um teórico mais crítico, procurou, por meio de Foucault, entender como o poder se insere, se coloca ou que papel exerce nesse processo. […] Hall apresenta uma noção de representação como um ato criativo, que se refere ao que as pessoas pensam sobre o mundo, sobre o que ‘são’ nesse mundo e que mundo é esse, sobre a qual as pessoas estão se referindo, transformando essas ‘representações’ em objeto de análise crítica e científica do ‘real’.”

Arthur Ituassu, Professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio na Apresentação

Nesse contexto, conforme veremos mais adiante, Hall enxergava a representação com um teor político muito relevante: “em seu ato de representar, constitui não somente a identidade, mas a própria qualidade existencial, ou ‘realidade’ (ontologia), da comunidade política, sendo representada em seus valores, interesses, posicionamentos, prioridades, com seus membros (e não membros), suas regras e instituições”. Ituassu, professor responsável pela apresentação (ou prefácio da obra), sintetiza bem ao declarar que, diante esse cenário de representação como política: “não ter voz ou não se ver representado pode significar nada menos que opressão existencial” – a partir disso, com ou sem teoria, já é possível compreender mais ou menos sob qual argumento o debate da representatividade se alicerça atualmente.

Tendo conhecido minimamente o autor e um pouco dos seus pensamentos, podemos partir para o capítulo de introdução. Nele, Hall apresenta ao leitor suas principais ideias no que tange, principalmente, à noção de cultura – o que, em termos simples e em colocação própria, diz respeito a “significados compartilhados”. Nesse contexto, e conforme vai aprofundar a partir das ideias de Saussure nos próximos capítulos, a linguagem possui um papel fundamental (de “repositório-chave de valores e significados culturais”): “nada mais é do que o meio privilegiado pelo qual ‘damos sentido’ às coisas, onde o significado é produzido e intercambiado. Significados só podem ser compartilhados pelo acesso comum à linguagem”. Em outras palavras:

“A linguagem é capaz de fazer isso porque ela opera como um sistema representacional. Na linguagem, fazemos uso de signos e símbolos – sejam eles sonoros, escritos, imagens eletrônicas, notas musicais e até objetos – para significar ou representar para outros indivíduos nossos conceitos, ideias e sentimentos. A linguagem é um dos ‘meios’ através do qual pensamentos, ideias e sentimentos são representados numa cultura. A representação pela linguagem é, portanto, essencial aos processos pelos quais os significados são produzidos.”
Stuart Hall

Aqui, é imprescindível ter em mente que a cultura se faz (e se desfaz!) na linguagem. Não no sentido mais específico da linguagem, relacionado à fala e à língua oral ou escrita, mas no sentido mais amplo, que diz respeito ao “compartilhamento de significados” de um grupo ou sociedade. Hall ratifica que esse não é um indicativo de unidade, pelo contrário: é nesse cenário onde a pluralidade de sentidos torna conflituosa a relação entre os indivíduos, que atua tanto num nível micro quanto num nível macro. Ele explica que: “Acima de tudo, os significados culturais não estão somente na nossa cabeça – eles organizam e regulam práticas sociais, influenciam nossa conduta e consequentemente geram efeitos reais e práticos.”

“Membros da mesma cultura compartilham conjuntos de conceitos, imagens e ideias que lhes permitem sentir, refletir e, portanto, interpretar o mundo de forma semelhante. Eles devem compartilhar, em um sentido mais geral, os mesmos ‘códigos culturais’. Deste modo, pensar e sentir são em si mesmos ‘sistemas de representação’, nos quais nossos conceitos, imagens e emoções ‘dão sentido a’ ou representam – em nossa vida mental – objetos que estão, ou podem estar, ‘lá fora’ no mundo.”
Stuart Hall

É interessante fazer uma ponte da teoria construtivista com o que nós entendemos hoje como “ser desconstruído”. Embora essa noção não seja cotidianamente embasada na teoria, é evidentemente fundamentada no que estamos discutindo aqui: a não ser a própria natureza, tudo foi construído socialmente. De certa forma, a nossa própria interpretação da natureza é construção social. Hall explica que damos significados a objetos/pessoas/eventos “por meio de paradigmas de interpretação que levamos a eles”; em outra instância, “damos sentido às coisas pelo modo como as utilizamos ou as integramos em nossas práticas cotidianas”; e, por fim, “concedemos sentido às coisas pela maneira como as representamos”. Desconstruir, portanto, é questionar (e, preferencialmente, contestar) o modus operandi que nos foi programado.

“A cultura, podemos dizer, está envolvida em todas essas práticas que não são geneticamente programadas em nós […], mas que carregam sentido e valores para nós, que precisam ser significativamente interpretadas por outros, ou que dependem do sentido para seu efetivo funcionamento. […] Nesse sentido, o estudo da cultura ressalta o papel fundamental do domínio simbólico no centro da vida em sociedade.”
Stuart Hall

O autor atenta também para a relação entre sentido e identidade, sendo esse o responsável pelo cultivo da nossa noção do último. Uma vez que “o sentido é constantemente elaborado e compartilhado em cada interação pessoal e social da qual fazemos parte”, ele delimita as fronteiras sociais que estabelecemos: “se relaciona a questões sobre como a cultura é usada para restringir ou manter a identidade dentro do grupo e sobre a diferença entre grupos”. Talvez quem melhor explique essa questão – completamente influenciado por Hall – seja Tomaz Tadeu da Silva, em seu texto “A produção social da identidade e da diferença”, sobre o qual já falei um pouco em outro post. Para este texto, cabe direcionar nossa atenção ao que Hall entende como circuito cultural.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2016.

Para ele, a questão do sentido atravessa todas essas arenas institucionais do circuito cultural, mas é a linguagem – novamente, uma concepção mais ampla do termo – o “meio” privilegiado “através do qual o sentido se vê elaborado e perpassado”. É, portanto, uma prática significante que opera por meio de representação (sistemas de representação). “Essencialmente, podemos afirmar que essas práticas funcionam ‘como se fossem línguas’ não porque elas são escritas ou faladas (elas não são), mas sim porque todas se utilizam de algum componente para representar ou dar sentido àquilo que queremos dizer e para expressar ou transmitir um pensamento, um conceito, uma ideia, um sentimento”, explica. E complementa:

“Eles constroem significados e os transmitem. Eles significam, não possuem um sentido claro em si mesmos – ao contrário, eles são veículos ou meios que carregam sentido, pois funcionam como símbolos que representam ou conferem sentido (isto é, simbolizam) às ideias que desejamos transmitir. Para usar outra metáfora, eles operam como signos, que são representações de nossos conceitos, ideias e sentimentos que permitem aos outros ‘ler’, decodificar ou interpretar seus sentidos de maneira próxima à que fazemos.”
Stuart Hall

Retomando a atenção à imagem acima, percebemos como estão ligadas as questões mais amplas de representação e identidade (e, consequentemente, linguagem) com apropriações modernas dos nosso sistema sócio-econômico, de produção, regulação e consumo. Na leitura de Hall, compreendida como “abordagem social construtivista” ou “construtivismo social”, o sentido é uma produção social (até mesmo de interpretação). Daí, a representação serve como base constitutiva das coisas. Nisso, “a cultura é definida como um processo original e igualmente constitutivo, tão fundamental quanto a base econômica ou material para a configuração de sujeitos sociais e acontecimentos históricos – e não uma mera reflexão sobre a realidade depois do acontecimento.”

Ao final do texto, o autor introduz o conceito de discurso que será retomado com frequência nos dois capítulos seguintes. Compreende como “maneiras de se referir a um determinado tópico da prática ou sobre ele construir conhecimento: um conjunto (ou constituição) de ideias, imagens e práticas que suscitam variedades no falar, formas de conhecimento e condutas relacionadas a um tema particular, atividade social ou lugar institucional na sociedade”. Hall enxerga nas formações discursivas o aspecto “político” da linguagem, ou seja, são elas quem definem: “o que é ou não adequado em nosso enunciado sobre determinado tema ou área de atividade social”; “que tipo de conhecimento é considerado útil”; “que gênero de indivíduos ou ‘sujeitos’ personificam essas características”. Assim, explica, “‘discursiva’ se tornou o termo geral utilizado para fazer referência a qualquer abordagem em que o sentido, a representação e a cultura são elementos considerados constitutivos”.

“Uma diferença fundamental é que a abordagem semiótica se concentra em como a representação e a linguagem produzem sentido – o que tem sido chamado de ‘poética’ -, enquanto a abordagem discursiva se concentra mais nos efeitos e consequências da representação – isto é, sua política. […] [Examina] como o conhecimento elaborado por determinado discurso se relaciona com o poder, regula condutas, inventa ou constrói identidades e subjetividades e define o modo pelo qual certos objetos são representados, concebidos, experimentados e analisados. A ênfase da abordagem discursiva recai invariavelmente sobre a especificidade histórica de uma forma particular ou de um ‘regime’ de representação, e não sobre a ‘linguagem’ enquanto tema mais geral. Isto é, seu foco incide sobre linguagens ou significados e de que maneira eles são utilizados em um dado período ou local, apontando para uma grande especificidade histórica – a maneira como práticas representacionais operam em situações históricas concretas.”
Stuart Hall

E o que isso tudo tem a ver com a Skol? É muito provável que você tenha se deparado, na internet, com uma tentativa de reposicionamento da marca. O primeiro contato que eu tive com essa “nova” realidade, se não me engano, foi quando vi o patrocínio que cedeu a uma festa Batekoo (um evento feito pelo e para o público negro) em Salvador, talvez no ano passado. Aliás, minto: lembro de ter achado curioso o clipe “Tombei”, de Karol Conká, sendo divulgado pelo canal Skol Music. A rapper, coincidentemente, também era a atração principal do evento que acontecia na capital baiana.

Acredito (sem fundamento ou pesquisa alguma, vale pontuar) que esse reposicionamento da Skol começou com o lançamento da Skol Beats, uma bebida que surgiu para bater de frente com a líder Sminorff Ice. Desde então, a marca tem tentado encontrar no público jovem (que supostamente é mais “pra frentex”) consumidores que tinham perdido tanto pela cerveja quanto pelo seu histórico de marketing – vale conferir o artigo “Onde está o sense? Uma análise semiótica da campanha Skol Beats Senses”, de Daniela Mokva e Ciro Gusatti. Este ano, com ações no carnaval e no Dia das Mulheres, a estratégia se intensificou ainda mais e, consequentemente, fomentou o debate sobre o reposicionamento da marca – agora, já de olho no seu principal produto.

O que acontece: a marca, desde a década de 60, tem um histórico absurdo de campanhas extremamente machistas – há, inclusive, extensa produção acadêmica sobre o assunto, principalmente a partir da leitura publicitária e semiótica. O debate, portanto, se fundamenta nessa tentativa de reposicionamento da marca. É possível “esquecer” ou apagar esse legado histórico? Devemos comemorar essa nova estratégia? Parabenizamos a marca? Será esse novo contexto suficiente ou responsável para lidar com todo um passado sombrio? O que muda, de fato, na sociedade? As respostas para essas perguntas podem (e até devem, baseado na sua posição de fala) variar. No entanto, a minha proposta aqui é, a partir do texto proferido, tentar dar conta de pelo menos parte desses embates.

Parto de um ponto comum a todos: marcas precisam vender. Tomando como pressuposto que a Skol, antes de adotar esse novo posicionamento, fez um amplo trabalho de pesquisa de negócios, social e cultural, acredito que a justificação mínima a ser considerada é: “conseguiremos vender (mais)?”. Por mais que nas agências e empresas exista publicitários socialmente conscientes, na hora da prestação de contas, é essa resposta que os diretores precisam ouvir para dar o aval. A empresa precisa vender. Se há, nas entrelinhas, um ponto socialmente positivo para isso, ótimo. Aliás, levando em consideração uma pesquisa sócio-cultural, a justificativa a ser trabalhada pode, sim, ter embasamento em causas sociais – o que é ótimo, e fruto de um movimento que parte das próprias pessoas.

Ainda assim, por mais que o objetivo principal seja vender e gerar lucro, é inegável o poder midiático (discursivo) que grandes empresas possuem. Afinal, foi a mesma empresa que criou uma narrativa degradante para as mulheres que agora está tentando mudar (bem devagar) esse cenário. Se foi considerado relevante a influência discursiva de décadas, também deve ser considerado atualmente. Trazendo Hall para a discussão, uma vez que a cultura se faz no atravessamento da representação, linguagem e identidade, não há como negar a importância de um aparato midiático como o da publicidade na sociedade em que vivemos – aliás, nos próximos capítulos, ele traz exemplos de vários produtos midiáticos, inclusive publicitários.

Ou seja, é, sim, importante que as marcas – mesmo por motivos financeiros – optem por alterar seu discurso. A partir do momento que criamos nossa interpretação do mundo a partir de signos e símbolos discursivos (nesse caso específico, a objetificação das mulheres), é imprescindível que celebremos – mesmo que criteriosamente – uma narrativa que, como o próprio autor aponta, se materializa da maior forma possível (casos de agressão explícitos). O discurso se concretiza nas ações. Pelo menos nesse ponto, temos, acredito eu, sim, motivos para “comemorar”. No entanto, a nossa celebração não deve ser para com a marca, mas para com o movimento. Se a Skol mudou, é porque está ouvindo. A vitória é delas.

Etnografia e consumo midiático: novas tendências e desafios metodológicos

etnografia-consumoFoi lançado na semana passada, dia 25 de outubro, o livro “Etnografia e consumo midiático: novas tendências e desafios metodológicos”, organizado por Carla Barros e Bruno Campanella, ambos professores do PPGCOM e do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense. A coletânea reúne textos de palestrantes que participaram, em setembro de 2015, do Seminário Internacional Etnografia e Consumo Midiático: Novas Tendências e Desafios Metodológicos, e de outros autores com reconhecido interesse em discussões metodológicas relacionadas à pesquisa contemporânea de consumo midiático – dando, assim, continuidade aos debates iniciados naquele momento e expandindo algumas questões importantes ainda não trabalhadas.

“Os textos apresentados na presente coletânea são atravessados por reflexões acerca dessa crescente complexificação das práticas de consumo midiático, assim como das formas de estudá-lo que tomam como ponto de partida as abordagens etnográficas. […] Com o objetivo de enriquecer ainda mais o debate, a coletânea também traz propostas de abordagens metodológicas alternativas capazes de complementar a etnografia. Em suma, o livro busca lançar luz sobre os desafios, oportunidades e dificuldades da abordagem etnográfica na pesquisa dos meios de comunicação, em especial a internet.”

As minhas motivações para adquirir o livro foram três: 1) a organização realizada por dois professores cujo trabalho eu admiro muito (e gostaria que eles dessem mais aula para a graduação, caso venham a ler este post); 2) o assunto etnografia para pesquisa na internet (e em mídias ou sites de redes sociais), um debate que muito me interessa tanto acadêmica quanto profissionalmente; e, 3) a colaboração de Christine Hine, autora que conheci recentemente e que preciso ler mais, de Raquel Recuero, que fez uma proposta interessante para o capítulo que desenvolveu, e de Beatriz Polivanov, também professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídias (curso de Estudos de Mídia) cuja pesquisa eu já citei aqui no blog algumas vezes, com Deborah Santos. Para minha felicidade, ainda fui positivamente surpreendido por textos bem interessantes de outros autores/pesquisadores que não conhecia, superando as minhas expectativas.

A começar pela Introdução escrita pelos organizadores do livro, onde eles reconhecem as transformações sociais e tecnológicas que “criaram oportunidades e desafios na pesquisa da articulação entre meios de comunicação e cultura”, para então desenvolver uma breve – e importante, principalmente para leitores pouco habituados com as discussões da abordagem etnográfica para a internet, como eu – historicização do fenômeno do consumo midiático (“enquanto um sistema de valores”) e, principalmente, da constituição da etnografia na disciplina antropológica. Nesse contexto, ainda elucida a “evolução” dos estudos de comunicação mediada por novas tecnologias, posicionando-se criticamente a algumas leituras que, sob uma nova perspectiva, aparenta ser um pouco inadequada. Ainda assim, abrindo terreno para as contribuições (e discussões) dos colaboradores, reitera:

“Não se compartilha a mesma concepção do que seja a pesquisa realizada no âmbito da internet. Enquanto que para alguns autores a etnografia aparece como uma conjunção de técnicas específicas – primordialmente, a observação participante com a entrevista em profundidade – para outros ela não pode ser reduzida a um conjunto de técnicas, pois sua importância reside no fato de ela ser propriamente uma abordagem. A proposição de polissemia nas mensagens midiáticas encontrada nos estudos de recepção, especificamente, facilitou uma maior adesão às pesquisas de abordagem etnográfica. No entanto, nem todas as pesquisas autointituladas como de “recepção” atendiam aos princípios da etnografia, como a imersão prolongada em campo e a compreensão do contexto sociocultural mais amplo no qual as práticas midiáticas estavam inseridas.”

No capítulo “Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia”, Christine Hine apresenta algumas estratégias para a condução de estudos etnográficos da mídia na era digital. Para isso, ela introduz os novos contextos de formas de sociabilidade na internet (relacionando com a “proliferação de rastros do consumo midiático”) e retoma a discussão das fronteiras entre o on-line e o off-line, tanto sob a perspectiva do usuários quanto sob a perspectiva dos etnógrafos – e, consequentemente, seus desafios. Antes de entrar nessas questões, acho interessante compartilhar algumas considerações feitas pela autora sobre o papel do etnógrafo, principalmente levando em conta aqueles “novatos” na área:

  • “[O etnógrafo] procura alcançar um profundo engajamento com os detalhes confusos contidos naquilo que as pessoas realmente fazem com a mídia na prática”;
  • “seus interesses vão além de momentos de engajamento entre pessoas pré-selecionadas individualmente e textos midiáticos específicos”;
  • “o significado reside não no texto propriamente dito, mas em uma gama de relações sociais que antecedem e, ao mesmo tempo, resultam daqueles momentos de engajamento com o texto”.

Feita essa introdução do contexto e da pesquisa/do pesquisador, ela apresenta o que chama de qualidades da internet nos dias atuais para discutir “três tipos de estratégias que ajudam um etnógrafo a lidar com essas qualidades: abordagens móveis, multilocalizadas e conectivas ao campo; mapeamento, visualização e associação; e uso dos insights autoetnográficos a fim de maximizar a compreensão da internet como um fenômeno sensorial”. Antes, no entanto, ela apresenta uma discussão conhecida de seu trabalho, sobre a internet incorporada, corporificada, cotidiana (embedded, embodied and everyday) – na qual argumenta que não falamos mais em “ficar on-line”, mas vivemos online, incorporamos a internet em “em múltiplas estruturas de construção de significado”. Diz ela:

“Qualquer fragmento individual dos dados derivados da internet é, por isso, passível de ser interpretado de uma série de formas, dependendo dos contextos em que se incorpora e adquire significado […]. Isso apresenta desafios metodológicos significativos para um etnógrafo que deseja descobrir o significado de determinado aspecto da internet para um grupo específico de pessoas. Podemos começar com um foco particular ou uma questão intrigante em mente, mas a imprevisibilidade e caráter escorregadio dessa internet incorporada, corporificada e cotidiana torna muito difícil resolver onde ir para encontrar as respostas e como trazer questões interessantes à luz.”

Hine argumenta que, para que o etnógrafo “desenvolva insights e teste teorias em desenvolvimento através da interação”, seu trabalho não deve ser distante, como um observador que apenas coleta e processa dados de ambientes virtuais, mas participante e engajado com seu foco de pesquisa. “Ser ativo no ambiente permite que o etnógrafo aprenda com a imersão e o questionamento criterioso que encoraja as pessoas a refletirem, em voz alta, sobre suas experiências”, argumenta. À diante, apresenta como as características da internet nos dias atuais pode ser apropriada estrategicamente por pesquisadores para dar conta dos desafios e oportunidades que são enfrentados no trabalho etnográfico. Pensando a “volatilidade” dos grupos sociais online, a massividade de dados à disposição e os processos sensoriais da internet, ela apresenta as seguintes perspectivas:

  • Multilocalizada, móvel e conectiva: o campo de pesquisa é uma construção arbitrária, pré-existente, “construído a partir de uma rede complexa e contingente de interconexões possíveis entre diferentes localidades, e estendida em diversas mídias e formas de interação”; logo, “podemos esperar que o etnógrafo aceite a responsabilidade por construir um estudo que se encaixe em um conjunto particular de interesses estratégicos [para pensar novas comunidades virtuais].”
  • Mapeando, visualizando e associando: uma das principais dificuldades enfrentadas pela etnografia na internet é a abundância de dados; além de delimitar os estudos numa localidade e num período de tempo específicos, a autora propõe defende que “uma visualização ou mapeamento de atividades on-line pode ser muito útil no direcionamento da atenção do etnógrafo para locais de interesse, utilizando técnicas de associação para realizar a ‘topografia de campo’ antes de decidir no que focar em profundidade”.
  • Percebendo, sentindo e refletindo: uma vez que a experiência da internet é um processo bastante individual, o etnógrafo precisa reconhecer as limitações subjetivas da compreensão das diferentes experiências dos indivíduos, no entanto, é possível “tirar vantagem da nossa imersão no campo para refletir sobre o que contém e o que possibilita seus movimentos particulares e suas formas de compreensão”, enfrentando “qualquer tendência residual que tenhamos para tratar o campo como se simplesmente o tivéssemos encontrado e descrito como ele era”.

Na conclusão, admite (e reitera) as dificuldades e os desafios que a prática etnográfica enfrenta e continuará enfrentando com o desenvolvimento das novas tecnologias. Afirma que “não será impossível, mas envolverá um esforço maior na obtenção de dados, construindo e desenvolvendo relações de confiança com os participantes-chave a partir de práticas reminiscentes das etnografias dos tempos pré-internet”. Nesse sentido, compreende que “novas formas de etnografia realizadas tecnologicamente irão inevitavelmente continuar a emergir mas, espero, continuarão em diálogo com os princípios estabelecidos do etnógrafo como uma forma de produção de conhecimento aprofundada, imersiva e criticamente engajada”.

O capítulo “Métodos mistos: combinando etnografia e análise de redes sociais em estudos de mídia social”, de Raquel Recuero, é bem interessante pois discute a aproximação (ou melhor, combinação) de duas abordagens essencialmente distintas para o estudo de objetos decorrentes de mídias sociais, levantando também as vantagens e desvantagens desses métodos mistos. Ao introduzir a análise de redes sociais (ARS), a autora destaca a popularização dessa abordagem no campo dos estudos de cibercultura no Brasil e a justifica pela facilidade de acesso aos dados e pelo próprio caráter estrutural prolífico dos sites de redes sociais, o que favorece uma abordagem na qual as relações interacionais dos atores entre si e com a plataforma são o centro da análise. Explica:

“A análise de redes sociais é uma perspectiva cujo foco pode ser compreendi- do como teórico e metodológico (Wasserman e Faust, 1994). Enquanto a ARS busca estudar os padrões das interações e laços sociais (Wellman, 2001), ela também busca modos de medir esses padrões (Degenne e Forsé, 1999) e visualizá-los (Freeman, 2001). […] Desse modo, a análise de redes sociais constitui-se em uma abordagem relacional, cujo foco é construído nas relações entre os atores, na sua medida e exploração estrutural, a partir de perspectivas interdisciplinares.”

Destrinchando as raízes e premissas básicas da ARS, ela passa rapidamente por algumas questões – e aspectos – importantes desse método de análise: “O grafo é uma representação das relações e da estrutura da rede, que é construído através de algoritmos específicos e em cima de dados obtidos em campo”. Ela explica que, para que seja feita as visualizações das estruturas que auxilia a percepção visual das relações entre os atores, há a aplicação de alguns cálculos matemáticos (métricas de nó e métricas de rede) para avaliar a centralidade dos atores na rede e a estrutura da rede em geral. Nesse contexto, citando Linton C. Freeman, ela destaca quatro elementos que devem aparecer em conjunto na organização da análise estrutural: a intuição estrutural, ou seja, focada nos laços que conectam os atores; a construção sobre dados empíricos coletados de modo sistemático; a base em gráficos e imagens que representam os dados da pesquisa; e a utilização de modelos computacionais ou matemáticos.

Não entrarei em detalhes sobre o que a autora discorre sobre a etnografia virtual porque acredito que a introdução do capítulo de Hine já ilustra muito bem como ocorre, quais são as premissas, dificuldades e vantagens da abordagem etnográfica na internet. Destaco, no entanto, a citação de Gemma Edwards apresentada pela autora, na qual ela explica que as abordagens quantitativas “mapeiam e medem as redes através da simplificação das relações sociais em dados numéricos, onde os laços são ausentes ou presentes”, enquanto as abordagens qualitativas “permitem aos analistas considerar elementos relativos à construção, reprodução, variabilidade e dinâmicas dos laços sociais complexos”. Chegamos, então, à ideia principal de Recuero:

“A ideia é trabalhar com perspectivas metodológicas distintas, tanto quantitativas quanto qualitativas, combinadas de modo a dar conta de um determinado problema de pesquisa. Métodos qualitativos, grosso modo, tendem a focar mais em palavras como elementos descritivos, enquanto os quantitativos, em números; bem como pesquisas mais qualitativas focam perguntas mais abertas, pesquisas quantitativas focam questões fechadas; além disso, pesquisas qualitativas tendem a focar na interpretação dos dados coletados, geralmente no ambiente dos participantes, enquanto as quantitativas tendem a focar em medidas, variáveis e procedimentos numéricos (Creswell, 2014, p. 12). […] Os métodos mistos, por outro lado, constituem ‘uma abordagem para a pesquisa envolvendo a coleta de dados qualitativa e quantitativa, integrando as duas formas de dados e usando desenhos de pesquisa que possam envolver questões filosóficas e abordagens mais teóricas’ (Creswell, 2014, p. 4).”

Para compor sua proposta, a autora apresente algumas questões importantes de aplicação e alguns exemplos de objetos que se encaixem num contexto de pesquisa adequada aos métodos mistos. Para tanto, esses objetos precisam ter: questões de pesquisa relacionais (análise de estrutura das conexões da rede + componente cultural dentro da estrutura); dados passíveis de coleta/captura para análise de rede de forma manual ou automática; questões apropriadas para atender a objetivos da ARS e da etnografia. “Enquanto a análise de redes se ocuparia com a estrutura do grupo, a etnografia focaria as práticas culturais emergentes dessa estrutura”, explica, trazendo como exemplos: grupos sociais determinados e suas interações on-line, grupos sociais constituídos diante de discursos/conversações específicas e estudos sobre informação e difusão de práticas culturais. Em seguida, ela apresenta alguns modelos mais comuns de uso de métodos mistos, elencados:

  • Métodos mistos convergentes e paralelos: “os dados são coletados de modo qualitativo e quantitativo geralmente ao mesmo tempo e convergem ou são misturados na análise”; o objetivo é a complementariedade dos dados para a análise.
  • Métodos mistos explanatórios sequenciais: “há primeiro a condução de uma pesquisa quantitativa, cujos resultados servem de base para uma pesquisa qualitativa”; o trabalho qualitativo expande e aprofunda as questões do trabalho quantitativo.
  • Métodos mistos exploratórios e sequenciais: “a abordagem qualitativa vem primeiro e, nessa primeira fase, são constituídos elementos que servem de base para a abordagem quantitativa posterior”; útil quando as variáreis mais importantes para análise são desconhecidas.

Nas considerações finais, Recuero ratifica que, dentre os benefícios da adoção de métodos mistos, “está primeiramente a complementariedade dos dados e das análises e a possibilidade de explorar fenômenos mais complexos do que com apenas um dos métodos”. E complementa: “Em termos de mídia social, onde os dados são bastante distanciados dos grupos sociais, a combinação desses métodos pode ser extremamente vantajosa, justamente por permitir compreender o fenômeno em sua abordagem mais ampla”. No entanto, a autora faz questão de pontuar alguns desafios importantes para o pesquisador: o uso mútuo e compreensível de ambas abordagens de forma coerente/coesa, a discussão de limitações e vantagens da coleta de dados e as questões éticas da pesquisa em canais supostamente públicos.

“A ARS dá à etnografia uma possibilidade de mais abrangência e maior fundamentação em dados, ao mesmo tempo que lhe rouba parte da subjetividade que lhe é característica. Já a etnografia, por sua vez, complementa a ARS com uma visão contextual, mas pode também lhe conferir um caráter subjetivo e interpretativo que pode trazer uma certa instabilidade ao estudo quantitativo. […] Assim, os dados de uma devem servir à outra e devem ser ambos compreendidos em sua totalidade pelo pesquisador. A perspectiva de métodos mistos é uma combinação do desenho metodológico, onde o pesquisador precisa compreender ambos e não apenas utilizar um método como suporte e outro apenas para agregar os dados sem analisá-los.”

Para finalizar, trago alguns apontamentos do capítulo “Términos de relacionamentos e Facebook: desafios da pesquisa etnográfica em sites de redes sociais”, escrito por Beatriz Polivanov e Deborah Santos. Gostei muito do capítulo porque ele dialoga com os outros dois supracitados, principalmente (por questões óbvias) com o de Hine, ainda que haja uma “menção honrosa” a proposta de Recuero, lá no final do texto, não descartam que “abordagens mistas, que lidam com grandes e “pequenos” dados, possam ser enriquecedoras”. Para além disso, gostei muito da contribuição das autoras porque há fundamentação teórica, discussão metodológica e – principalmente – inquietações empíricas de uma pesquisa ainda em andamento. Ao final, elas apresentam cinco eixos que esperam servir como “pequenos guias norteadores” para outras pesquisas.

Uma vez que o objetivo das autoras é “chamar atenção para desafios específicos” de sua pesquisa, não entrarei a fundo na fundamentação teórica (muito bem) apresentada no texto – embora recomende veemente a todos interessados na discussão sobre as diferentes etnografias (“tradicional” e virtual) e construção de identidade on-line que assim o façam. Trago, portanto, apenas os cinco eixos de desafios metodológicos que têm tensionado a atuação das pesquisadoras no estudo sobre “sujeitos que passaram por um final de relacionamento amoroso e como essa sua performance de si se dá no Facebook em um momento pós-término”, discutindo se há alteração em suas performances e quais tipos de narrativas são acionadas para se adequar a imperativo da felicidade.

“Entendemos, assim, que, de um modo geral, busca-se manter certa coerência expressiva entre os selves off-line e nos sites de redes sociais. Isto é, nesses ambientes – e em especial no Facebook, nosso objeto de estudo – os atores sociais tendem a querer mostrar traços identitários que consideram “reais”, como nome, local onde trabalham/estudam, gostos relacionados à indústria cultural, pessoas com as quais se relacionam, locais que frequen- tam etc., ainda que possa haver rupturas e desencaixes nessa construção por uma série de razões (intencionais ou não).”

Embora eu tenha optado por atropelar as discussões teóricas que precedem a discussão metodológica (apenas por motivos práticos), acho importante lembrar que alguns dos “problemas” levantados pelas autoras estão em total consonância com aspectos específicos da problematização da etnografia (virtual), da identidade on-line, etc. – ou seja, de certa forma, essas questões atravessarão os desafios metodológicos da pesquisa em sites de redes sociais apresentados a seguir:

a) Investigação sobre indivíduos e/ou casais

Um dos motivos pelo qual me interesso bastante pelo trabalho de Polivanov é que suas pesquisas geralmente focam em aspectos identitários “isolados”, como seu trabalho com participantes de cenas de música eletrônica no Facebook. Isso foge um pouco da prática comum da etnografia para internet (e mídias sociais) de estudar grupos ou comunidades específicas – como ela reitera, no atual trabalho “estamos mais interessadas, em nossa pesquisa, em conhecer em profundidade experiências particulares do que em estudar as dinâmicas de um grupo ou um número maior de casos”. Entretanto, isso se torna um problema primário à pesquisa uma vez que precisa-se fazer um recorte e delimitar o campo do objeto de estudo. “Mas como selecioná-los?”

b) Escolha e interpelação dos sujeitos de pesquisa

“A partir de um processo de conversas informais – on e off-line – com conhecidos de nossas redes de contatos e a partir da técnica da ‘bola de neve’ (Weiss, 1994), conseguimos sugestões de possíveis informantes que atendessem nossos critérios. Para além daqueles que fizessem parte de nossas redes, a escolha da parte da amostra de “desconhecidos” foi feita a partir da procura de grupos temáticos, conforme apontado acima, focando desse modo nosso olhar a pessoas que atravessaram algum conflito amoroso e usaram (usam) a rede e o suporte (semi)público para lidar com situações dessa natureza, sendo nosso interesse conhecer como se dá essa relação de “desabafo” entre o sujeito e a plataforma, no caso, o Facebook.”

c) Grau de inserção do(a) pesquisador(a)

“Aqui valeria a pena nos perguntar até que ponto esse tipo de aproximação, sem aviso aos informantes de que estão sendo observados, é eticamente correta. Além disso, seria apenas a observação, participante ou não, suficiente para entender as dinâmicas e discursos dos sujeitos ou necessariamente de- vem ser realizadas entrevistas? […] Nossa proposta metodológica entende que somente a observação dos sujeitos analisados não seria suficiente para responder as questões de pesquisa, sendo necessária uma aproximação direta e privada (ainda que virtual) com os mesmos que outorgue integralidade à pesquisa. Para isso é nosso propósito entrar em contato com cada um dos sujeitos escolhidos como amostra e realizar entrevistas, tanto on quanto off-line com eles, que complementem os dados obtidos na etapa de observação, tentando fugir assim dessa posição um tanto voyeurística e procurando vias diferentes de acesso à informação.”

d) Recorte temporal da pesquisa e da coleta de dados

Esse item é bem interessante porque elas tratam duas questões: primeiro, a problemática de delimitação de tempo de uma pesquisa empírica. Em resposta, defendem que “a observação sistemática dos acontecimentos e a coleta de dados deve ocorrer até atingir determinado ponto de saturação, isto é, até que não seja possível – seja por um limite de tempo, verba ou do próprio corpus – obter dados categoricamente novos”. Segundo, porque, citando Markham, as autoras “desmitificam” o véu de imparcialidade do etnógrafo, explicando que “os pesquisadores sempre interferiram no contexto de algum modo enquanto conduzem suas pesquisas” e que “em diferentes medidas, as noções de sujeito/objeto, pesquisador/pesquisado não devem ser tomadas como instâncias separadas, mas ao contrário, como afetações mútuas”.

e) Pesquisa de campo ou campos de pesquisa no Facebook

“Cabe, assim, a cada pesquisador(a) determinar o recorte do corpus que irá analisar e que ferramentas irá utilizar para tal. Em nosso percurso até o momento temos optado por dar especial atenção aos campos da seção “Sobre” e das postagens diversas feitas pelos sujeitos em suas linhas do tempo, buscando analisá-las não em grupos definidos quanto ao seu tipo de linguagem, mas sim enquanto unidades materiais-discursivas multissemióticas que devem ser entendidas principalmente a partir do momento e da intencionalidade de publicação, elementos que só podemos investigar a partir da realização de entrevistas direcionadas.”

A ideia de Polivanov e Santos foi justamente trazer alguns desafios e questões (tanto teóricas quando metodológicas) que têm atravessado seu trabalho de pesquisa no Facebook. Ao final, não apresentam soluções, mas “inquietações ainda em pleno processo de digestão”, o que considerei extremamente poético, coerente e justo por parte das autoras. Essa é a ideia do livro, levantar tensões e tentar travar um diálogo com acadêmicos, estudiosos e pesquisadores de forma geral sobre o espaço multidisciplinar que é a internet corporificada. Ainda há capítulos enriquecedores de Jair de Souza Ramos, sobre o modo como as discussões teóricas podem orientar a observação e a análise para etnógrafos, e de Laura Graziela Gomes, a pesquisa própria do meio digital (cibercultura).