O Facebook divulgou na semana passada o relatório , desenvolvido a partir de um levantamento interno que analisou milhares de campanhas realizadas na plataforma entre 2017 e 2018. Produzido junto à consultoria 65 / 10, o documento une o discurso de responsabilidade social da publicidade à provocação da realidade baseada em dados para mostrar como as marcas devem tomar ação imediata para mudar o cenário atual, que reforça estereótipos e não corresponde com suas audiências.
“Nossa missão é incentivar e apoiar as empresas que se dispõem a trilhar esse percurso fornecendo ferramentas, melhores práticas e, é claro, dados valiosos. Para entender o contexto no qual o program age, analisamos milhares de campanhas veiculadas em nossas plataformas por toda a América Latina e esse processo nos mostrou quão distantes ainda estão esses dois pólos – a realidade da população versus aquilo que a publicidade nos conta”.
Para justificar a relevância da temática (e todo o argumento de acionável no qual se baseia), são apontados inicialmente alguns dados sobre a representatividade com recorte de gênero, raça e tipos de corpo de outra pesquisa semelhante: a TODXS – Uma análise da representatividade na publicidade brasileira, da Heads (já na sétima edição). Como cases que comprovam a eficácia de investir em diversidade, apresentam uma campanha da Jeep (no Brasil) e uma da Johnson’s Baby (na Argentina), com os números positivos que resultaram desse investimento.
O relatório também apresenta oficialmente a ferramenta Last 5 Ads, que convoca os anunciantes do Facebook a avaliarem o seu comprometimento com a diversidade. Talvez mais interessante do que a ferramenta (porque, convenhamos, quem anuncia sabe muito bem “quem” está anunciando), o documento “ADS 4 EQUALITY – Ciência e Dados trabalhando para promover diversidade na comunicação” encara o problema e aponta, de maneira coerente e lógica, como mensurar os resultados para comprovar a eficácia da preocupação com representações mais diversas.
O documento propõe um ciclo contínuo que envolve levantamento de hipóteses, teste, aprendizado e implementação. Para que a mensuração do impacto de uma comunicação mais representativa possa ser desenvolvida responsavelmente, elenca pilares fundamentais: pergunta de negócio, definição de métricas de sucesso, padrão de ação (o que fazer com as respostas em mãos), desenho do teste, planejamento e interpretação dos resultados. Há todo um destrinchamento desses pilares e já alguns moldes de plano de execução para testes, o que facilita bastante para que essa mudança seja colocada em prática.
Talvez o grande trunfo do relatório seja, na verdade, os 33 estereótipos que foram identificados a partir da análise de milhares de anúncios feitos diariamente na plataforma entre 2017 e 2018. É uma pena, entretanto, que não tenha sido divulgado o quanto essas “minorias” representam no total de anúncios (há somente o comparativo homens x mulheres por área da publicidade no início do relatório), pois seria importante para reforçar: essas pessoas já aparecem pouco e, quando aparecem, geralmente são retratadas pejorativamente das seguintes formas.
Os estereótipos foram mapeados dentro das cinco categorias: gênero (mulheres e homens), raça (negros, ameríndios e asiáticos), orientação sexual (gays e lésbicas), corpos dissidentes (pessoas com deficiências, pessoas gordas, pessoas transsexuais e pessoas idosas) e classe. Cada estereótipo identificado foi descrito como é geralmente apresentado nos anúncios e justificado sobre “por que fazer diferente”. Abaixo, listei todos os 33 que foram encontrados a partir das categorias propostas (para mais detalhes sobre cada um, é melhor conferir no relatório – ou o post ficaria muito extenso):
MULHER
- A mãe/esposa perfeita
- Supermulher (multitaskers)
- Corpo perfeito
- Objetificada
- Não sabe lidar com o dinheiro (ou shopaholics)
- Rivais
RAÇA: NEGROS
- Raivosos
- Subalternos
- Hipersexualizados
- Místicos
RAÇA: ASIÁTICOS
- Minoria modelo
- China doll, a mulher perfeita
ORIENTAÇÃO SEXUAL: GAYS
- O gay afeminado
- Promiscuidade x falta de família
CORPOS DISSIDENTES: PESSOAS GORDAS
- Antes-e-depois
- A gorda ninfomaníaca e a virgem
- O gordo engraçado
- A gorda hiperfeminina
CORPOS DISSIDENTES: PESSOAS IDOSAS
- A ranzinza e a gentil
- A aventureira
- Boa genética
HOMEM
- Superpai (e o herói que habita em todo homem)
- O provedor (moneymaker)
- Máquina de sexo
- O garoto e o velho
RAÇA: AMERÍNDIOS
- Preguiçosos
- Exóticas
- Inocentes (e não-civilizados)
ORIENTAÇÃO SEXUAL: LÉSBICAS
- Hipersexualizadas
- Masculinas
- Curiosa
CORPOS DISSIDENTES: PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
- Herói ou heroína: ser iluminado
- Garota-propaganda da superação
CORPOS DISSIDENTES: PESSOAS TRANSSEXUAIS
- A mulher trans: hiperfeminina
- O homem trans: invisibilizado
CLASSE
- Quer ser a classe A
- Só compra promoção
- Senso estético duvidoso
Embora a metodologia não tenha sido nem minimamente explicada (o que particularmente acho uma grande falha, visto se tratar de um tema tão delicado), supõe-se que a análise foi feita em diferentes tipos de mídia: texto, imagem e vídeo – este último principalmente, dado o detalhamento de alguns descritivos. Também não fica tão evidente se o recorte/escopo da análise foi voltada somente aos anúncios brasileiros ou se abraçou também outros países da América Latina, dada a presença de ameríndios em recorte de raça. Um exercício interessante seria tentar encontrar esses estereótipos em posts de marcas famosas no Facebook.
Por fim (e antes de finalizar com uma perspectiva mais pessoal/opinativa), o relatório ainda apresenta algumas práticas para repensar os processos: perguntar, conhecer, ampliar, pensar diferentes estratégias para diferentes públicos, ter um objetivo de negócio claro, convocar pessoas diversas na cadeia de produção da comunicação, verificar desastres, utilizar o Last5Ads e aprender com o passado. Ao final, ainda traz um mini-glossário com descrições simples de termos considerados importantes: colorismo, empoderamento, corpos dissidentes, protagonismo e cisgênero/transgênero.
Para enfim finalizar, queria deixar minha opinião sob duas perspectivas diferentes – e tentei ser o mais imparcial possível na descrição do relatório até aqui por entender justamente esse equilíbrio desses dois lugares que me atravessam. Primeiro, como profissional de comunicação/pesquisa, achei o relatório bem interessante, principalmente a lista dos estereótipos identificados (por mais que, novamente, a metodologia não tenha sido compartilhada – o que sempre me deixa com a pulga atrás da orelha) e a tentativa de argumentar entre a responsabilidade social e a coerência data-driven.
Acho que, inclusive, essa lista de 33 estereótipos pode (deveria) ir além do Facebook e ser trabalhada/pensada em diferentes áreas da comunicação como um todo – afinal, o Facebook é apenas o medium, mas a narrativa e todo seu aparato constitutivo se assemelha em diferentes meios (produção de texto, jornalismo, fotografia, cinema, etc.). No mais, também considero um material valiosíssimo para professores (de graduação a cursos livres) apresentarem aos alunos, mais uma vez tanto pela responsabilidade social quanto pelos argumentos responsáveis de negócio baseado em dados.
Agora, sendo um pouco mais crítico, é um material bem raso sobre diversidade e representação/diversidade. Tudo bem, é para gente do mercado, mas precisamos superar o TED da Chimamanda para falar sobre esse assunto. Precisamos aprofundar a discussão, complexificar, não somente reconhecer que é um problema estrutural, mas de fato apontar o que nos trouxe aqui e para onde deveríamos ir. O relatório só cita a contratação de pessoas “diversas” como solução para o problema no finalzinho, bem discretamente – e isso deveria ser o básico do básico.
É interessante de se perceber, por exemplo, como esse problema que reconhecem como estrutural age nas entrelinhas (de maneira explícita): o homem e a mulher são brancos, tanto nas imagens que utilizam como exemplo quanto na descrição dos estereótipos. Raça aparece de maneira extremamente superficial, quando, principalmente no Brasil, é a categoria “estereotipada” que mais atravessa diversas outras frentes da representação. Não obstante tivemos iniciativa como a do Desabafo Social, que mudou toda a estrutura de busca de um dos maiores banco de imagens do mundo.
No geral, valorizo o esforço do relatório e, ao menos, a iniciativa e proposta que já vem gerando mudanças – com o nascimento de bancos de imagens como o Nappy e o Tem Que Ter. No entanto, é preciso ser crítico para compreender que é apenas um projeto da maior empresa do mundo – acusada diversas vezes de validar discursos de ódio, reforçar opressões simbólicas e ser conivente com tais práticas. Não dá para esperar que a mudança venha (só) das empresas, porque, no fim do dia, elas se importam mais com o dinheiro entrando. Mas aqui já sou eu acadêmico falando.