O “nordestino” no Twitter em fevereiro: entre a política, o sotaque e a identidade

Desde que finalizei, entreguei e apresentei meu TCC, no final do ano passado, tenho buscado alternativas para continuar com um possível projeto de mestrado que me permita ingressar numa pós-graduação com tema semelhante. Já tive algumas ideias (específicas, outras mais abrangentes), mas – por enquanto – não tenho nada definido. Nesse cenário confuso e incerto, uma das ideias que tive foi criar uma base de dados sobre nordestinos no Twitter para que pudesse, talvez, desenvolver algo em cima disso num futuro próximo. Mensalmente, portanto, devo compartilhar uma visão geral do que foi conversado/discutido e quem foram os atores que fomentaram essa discussão.

O primeiro post foi publicado no blog do IBPAD, colocando em foco como as funcionalidades de text analysis e network analysis da ferramenta Netlytic podem ser extremamente úteis para pesquisas acadêmicas. Quanto aos resultados, no mês de janeiro, cerca de 60% das 37.333 menções no Twitter sobre nordestinos foram retweets, destacando três assuntos principais: sotaque (além de um caso específico fruto da cultura de fãs, outros mais relacionados a produtos televisivos da Rede Globo), política (o julgamento do ex-presidente Lula) e futebol (parceria entre times/campeonatos nordestinos e emissoras de TV para direitos autorais de exibição). Em fevereiro, o cenário não mudou muito.

Desta vez, entretanto, pretendo seguir caminho inverso ao que fiz no primeiro post, apresentando inicialmente a rede composta pelos usuários para, em seguida, destrinchar os assuntos mais comentados. A lista de arestas gerada pela Netlytic resultou numa rede com 16.068 nós (usuários) e 17.270 arestas (conexões). Como, para essa primeira abordagem, o que me interessa é visualizar “the big picture”, utilizei a métrica de componentes conectados para filtrar apenas o grupo da rede com maior número de conexões entre si, o que resultou em 63,38% da rede: 10.283 nós e 12.980 arestas. No grafo abaixo você pode visualizar melhor a rede completa e, destacado em marrom, o maior componente conectado.

Direcionar o olhar para o grupo mais conectado é relevante pois é ali onde as discussões, embates e conversas em geral sobre a temática acontece mais calorosamente – o que não indica que todo o resto deve ser ignorado ou subestimado (retornaremos a ele mais adiante), mas que o processo de analisar a estrutura de conversações pode oferecer insumos gerais para a análise mais detalhada. Apresento, portanto, logo abaixo, a rede já com o filtro de componente conectado, os nós em menor proporção para destacar os agrupamentos e os principais clusters destacados com suas devidas cores. São eles, respectivamente: política-esquerda, com 2.717 nós (26%); cultura pop, com 2.462 nós (24%); futebol, com 1.225 nós (11%) e política-direita, com 771 nós (7%).

Cluster Azul – Política-Esquerda / Cluster Verde – Cultura Pop / Cluster Vermelho – Futebol / Cluster Marrom – Política-Direita

Além dos clusters, o grafo também permite perceber outro aspecto importante dessa rede: trata-se, mais uma vez, de uma rede bem dispersa e com baixo índice conversacional (usuários mencionando uns aos outros, como uma conversa). Assim como em janeiro, há vários agrupamentos do tipo broadcaster que indicam fontes de replicações de mensagens através de retweets – ou seja, em termos simples, são vários usuários dando “RT” em uma mensagem específica. Dos 26.002 tweets coletados, 12.971 são retweets (49%); na rede de maior componente conectado, essa porcentagem aumenta – já que a métrica foca justamente nas conversas com mais interações (menções e retweets): dos 13.317 tweets, 10.128 são retweets (76%).

Quem são, portanto, esses atores responsáveis pela mobilização de milhares de usuários quanto ao assunto “nordestino”? O maior cluster, que agrega usuários em torno do assunto política, é encabeçado por: @conversaafiada, @eduguim e @lulapelobrasil; logo em seguida, o cluster de cultura pop é liderado por @whomath e @bchartsnet; quando o assunto foi futebol, @brunoreis, @resenhabbmp e @ecvitoria comandaram a conversa; e, por fim, @lula_nacadeia e @rj_em_alerta são os principais mobilizadores no cluster razoavelmente heterogêneo (e bem disperso) da política-direita. No grafo abaixo (clique para ampliar) estão apresentados os usuários com maior grau de entrada, ou seja, que receberam mais menções ou retweets sobre o tema em fevereiro.

Um dos benefícios de trabalhar os dados para além da Netlytic está em poder manuseá-los com mais facilidade. Ao extrair a lista de arestas para elaboração da rede no Gephi e o arquivo .CSV com todas as menções coletadas, pude cruzar essas fontes de dados para descobrir quais eram os tweets da base de dados referentes a cada cluster. Ou seja, de maneira mais detalhada: 1) a partir da rede gerada (com o filtro de maior componente conectado), exportei uma planilha com as métricas referentes aos nós; 2) inseri essa base na planilha com os tweets coletados para que tudo se mantivesse num único arquivo; 3) utilizei a fórmula PROCV para, na base de tweets, criar uma coluna que indicasse a qual cluster aquela linha se referia.

Com esse processo, semelhante ao que fiz nessa outra análise também do Twitter, pude separar os tweets para que se tornasse mais fácil identificar o que cada grupo – levando também em consideração o volume considerável de retweets – estava mencionando sobre o tema. Desta forma, elaborei as nuvens de palavras abaixo a partir dos tweets de cada um dos cinco clusters destacados, respectivamente. No entanto, o que se pode perceber é que, como era de se esperar, os termos mais frequentes em cada grupo é referente principalmente às mensagens com maior número de retweets – o que acaba limitando um pouco a exploração dos dados.

A primeira nuvem de palavras, referente ao cluster de polícia voltada à esquerda, apresenta a maioria dos termos relacionados ao tweet de @conversaafiada, @bbcbrasil e @lulapelobrasil; a segunda nuvem, esverdeada, traz basicamente os termos referentes aos tweets populares de @whomath e @bchartsnet; no cluster de futebol, a nuvem de termos em vermelho representa em sua grande maioria os tweets mais populares do jornalista e comentarista esportivo @brunoreis; por fim, no grupo de política à direita, o tweet do usuário @Lula_nacadeia é o que mais reverbera na nuvem de palavras.

Tweets que movimentaram a conversa sobre nordestinos em fevereiro

  1. @whomath: “nayara falando de representatividade nordestina, nem parece que zoou a gleici dias desse pelo fato dela ser do acre kkk hipócrita #bbb18”
  2. @bchartsnet: “Uma rainha negra, gorda, da favela, empoderada. Outra rainha LGBT, nordestina e com visibilidade internacional. Ambas tendo destaque na maior festa popular do mundo juntas 💗! Vem, Beija-Flor! #globeleza”
  3. @conversaafiada: “Diálogo entre garçom nordestino e empresário coxinha em restaurante chic de SP. Empresário tentava provar a amigo rejeição do Lula entre os pobres: Empresário: em quem você vai votar para presidente? Garçom: no Lula Empresário: e se não for candidato? Garçom: em quem ele mandar”
  4. @eduguim: “Grande parte do eleitorado Nordestino, mais afinado com o PT, irá descobrir que não pode votar só quando chegar na urna em outubro, Denuncie armação do TSE para barrar a esquerda em 2018, sob a batuta de Luiz “mato no peito” Fux. Espalhem enquanto é tempo”
  5. @lulapelobrasil: “O povo nordestino deixou de ser tratado apenas pela fome, pela mortalidade infantil e pela evasão escolar e passou a ser considerado parte do Brasil. Eu tenho confiança de que podemos recuperar o Brasil.”
  6. @kaiooliveiras: “Um nordestino q não gosta de farofa tem q ser exilado do país.”
  7. @brunoreis: “Tenho dito, Matheus, atacante do ABC hoje é o melhor jogador do futebol nordestino. Tem 9 gols em 7 jogos no ano. Artilheiro do futebol brasileiro em 2018. Menino de personalidade. Clareou, chutou. Bem no estadual e no nordestão. Ano passado foi bem também. 19 anos apenas.” [tweet apagado]
  8. @priscilaevelynn: “amo comida nordestina aaaaaaaaaaa”
  9. @bbcbrasil: “#MaisVistos Família nordestina guardou séculos de romances medievais de mais de 700 anos na memória http://bbc.in/2GGQZp9”
  10. @lula_nacadeia: “Mas pra muitos ignorantes no nordeste, luladrão é o “pai dos pobres” povo burro! E antes que venham encher o saco, eu sou nordestino. @Isabellniky @BecaBrix @HumbertoReisJr @Henrietterrsa @iaragb @MsCMauro @wwrealist @SPD_33 @FUSSHIGHLANDER”

Embora a análise de redes seja uma metodologia extremamente útil para (literalmente) visualizar como as conversas aconteceram, uma vez que não é o meu objetivo principal focar na estrutura das interações para possivelmente encontrar grupos e/ou atores relevantes nesse cenário, é preciso também voltar o olhar para além da base mais popular/mobilizada. Como mencionei anteriormente, iniciar a análise voltando o olhar de rede para a parte mais conectada pode indicar temas relevantes para análises mais específicas – e assim conseguimos perceber discussões sobre política principalmente centrada no ex-presidente Lula, a “nordestinidade” como categoria compreendida pela cultura pop e o recorte regional nas disputas (simbólicas) esportivas.

Para superar as barreiras dos tweets e clusters mais populares/mobilizados, criei uma nuvem de palavras somente com as menções coletadas que ficaram de fora da rede de maior componente conectado. No resultado, alguns assuntos já identificados continuaram presentes: lula, bb18, nayara, futebol, garçom, restaurante e empresário – todos termos já levantados nas nuvens de palavras dos clusters. No entanto, a palavra com mais destaque, que apareceu também em janeiro, mas ainda não havia aparecido nesta análise, é “sotaque” – que aparece em associação direta a outros termos também em evidência, como “amo”, “paulista”, “carioca”, “gosto” e “ouvir”. Na maioria dos tweets, aparece em tom de exaltação e também em comparativo com outros semelhantes.

Uma questão muito interessante a discutir sobre esse assunto é como parece haver um imaginário social do que seria o “sotaque nordestino”, como um representante único de nove estados distintos, enquanto outros…: “Qual é o seu sotaque favorito? — Carioca, gaúcho, Paulista, nordestino, ah todo”. Pensando o sotaque como uma representação exclusivamente oral, uma hipótese a ser levantada é que essa convenção do que seria um sotaque nordestino pode ter surgido a partir das representações do que seriam também personagens “nordestinos” na televisão e no cinema. Nesse contexto, a categoria “nordestino” é aplicada a um todo identitário muito maior que deve supostamente dar conta de milhões de pessoas com diferentes valores, tradições e referências – semelhante à discussão que travei também no meu TCC.

No mais, termos como “anos”, “sertão”, “chuva”, “romances” e “família” são referentes a dois tweets com certa repercussão relevante: “A chuva volta ao sertão nordestino após seis anos de seca. Agora o sertanejo espera a volta de Lula” e “Família nordestina guardou séculos de romances medievais de mais de 700 anos na memória https://t.co/JU57dnfUAj”. No entanto, o que mais tem me chamado a atenção, desde a primeira análise, é a presença de outras palavras como “gay”, “negro(a)” e “mulher”. Como aparece no tweet da @bchartsnet, um dos mais populares de fevereiro contendo o termo “nordestina”, esta categoria identitária aparece ao lado de outras muito mais consolidadas (e diria até, respaldadas) numa espécie de osmose interseccional das minorias.

Interseccionalidade é uma sensibilidade analítica, uma maneira de pensar sobre a identidade e sua relação com o poder. Articulada originalmente em favor das mulheres negras, o termo trouxe à luz a invisibilidade de muitos cidadãos dentro de grupos que os reivindicam como membros, mas que muitas vezes não conseguem representá-los. O apagamento interseccional não é exclusivo das mulheres negras. Pessoas negras ou de outras raças/etnias dentro dos movimentos LGBT; meninas negras ou de outras raças/etnias na luta contra o sistema que empurra os jovens da escola para a cadeia; mulheres nos movimentos de imigração; mulheres trans dentro dos movimentos feministas; e as pessoas com deficiência lutando contra o abuso policial — todas essas pessoas sofrem vulnerabilidades que refletem as interseções entre racismo, sexismo, opressão de classe, transfobia, capacitismo e muito mais. A interseccionalidade deu a muitas dessas pessoas uma forma de destacar as suas circunstâncias e lutar por sua visibilidade e inclusão.
Kimberlé Crenshaw

Este é um “fenômeno” que venho trabalhando desde a monografia e que está diretamente relacionado com o sentimento e a sensação de “orgulho” que costura todas as disputas simbólicas em torno do sentir-se (ou autointitular-se) nordestino. É interessante pensar sobre isso porque a interseccionalidade, como foi “criada”, nasceu nos Estados Unidos, portanto, discuti-la no contexto brasileiro deve levar em consideração várias outras instâncias históricas de poder e relações sociais. Além disso, há uma lacuna entre o sentimento de orgulho como resposta a ataques externos (que foi o que discuti no meu TCC) e classificar essa identidade como legítima da interseccionalidade no contexto brasileiro (que pode ser o meu projeto de mestrado, quem sabe?). Com a cabeça borbulhando mas ainda sem uma ideia definida, sigo acompanhando.

3 comentários

  1. Minority Report? Não, obrigado.

  2. muito bom esse site gostei bastante.Parabéns pelo conteúdo

  3. […] Além de ser o meu site de rede social favorito, é também o campo “oficial” da minha pesquisa acadêmica. Por mais que a Netlytic ainda seja a minha alternativa número um (pela praticidade em vários […]

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