O perigo de uma única mídia

Você provavelmente já se deparou com a palestra “The danger of a single story” (O perigo de uma única história) da Chimamanda Ngozi Adichie alguma vez. Talvez na faculdade, numa corrente de e-mail, no Whatsapp ou no próprio Facebook. E não é para menos: gravado em 2009, a palestra é uma aula sobre racismo estrutural, poder simbólico, representação e identidade. Dito isso, é com bastante peso na consciência – mas também com responsabilidade -que recorro a essa expressão para discutirmos sobre um perigo que já se instaurou e não tem previsão de recuar: o monopólio do Facebook no “mercado” de social media.

Não é de hoje que estudiosos e profissionais do mundo inteiro têm se preocupado com a popularidade do Facebook nos últimos anos. O próprio “pai da web”, Tim Berners-Lee, já criticou a plataforma de Mark Zuckerberg diversas vezes – veja aqui, aqui e aqui, para citar algumas. Sua principal crítica ao site de rede social é que há um esforço contínuo da empresa em – de forma simples – dominar a internet. Sua missão de “dar às pessoas o poder de compartilhar e fazer o mundo mais aberto e conectado” é uma falácia, já que seus últimos esforços enquanto negócio têm sido fechar (em todos os sentidos) a plataforma tanto para usuários continuarem em seu domínio quanto para pesquisadores e profissionais que poderiam usufruir de seus dados mas são barrados devido a interesses de negócios.

“We’ve had a year now in which the internet is regarded with a sort of weary cynicism by a lot of people, because Facebook are just locking you in, and others are using your data without you knowing it. Some people are enthusiastic about that, because they get really good services and they love it, but quite a lot of other people are either quite doubtful or outright sceptical”. – Trecho de matéria do The Guardian sobre mudanças na web

Seguindo para o cenário de quem trabalho com/nas mídias sociais, em 2014 Tarcízio Silva publicou em seu blog o texto “10 anos de Facebook, um ponto obrigatório de passagem” – que desencadeou ainda o ótimo “Sensores Humanos: 250 milhões de motivos para promover o Twitter” e foi compulsoriamente relembrado no “Mudanças no monitoramento de Facebook: prepare-se!”. O título surgiu de um pensamento do autor Bruno Latour que resume bem o que tem acontecido com a plataforma nos últimos anos: “podemos tentar nos tornar tão indispensáveis que ninguém pode agir sem nós, criando um monopólio sobre certo tipo de força. Se sucedermos nesta estratégia, nos tornamos um ‘ponto obrigatório de passagem’, um porto compulsório onde todos são forçados a negociar”.

Como já mencionei anteriormente, esse debate sobre a influência do Facebook já está sendo feito há pelo menos alguns anos em determinados campos. Na academia, pesquisadores do mundo inteiro têm discutido sobre as dificuldades – e os perigos – da concentração de dados na mão de uma corporação tão poderosa. No jornalismo e na política, a recente eleição de Donald Trump nos Estados Unidos jogou a luz sobre alguns “problemas” de negligência da plataforma quanto a usuários fascistas e principalmente quanto a proliferação de notícias falsas que dominaram os newsfeeds de usuários norte-americanos durante todo o período de campanha eleitoral no último ano. São vários problemas, entretanto, reforço que meu foco aqui é levantar questões quanto à publicidade no Facebook.

Para tal, é importante recapitular rapidamente o histórico da compra de mídia na plataforma nos últimos seis anos – quando o site de Zuckerberg superou o Orkut pela primeira vez e as pessoas começaram a migrar aos poucos para esse novo site de rede social. No início, tudo eram flores: as marcas postavam de tudo e os usuários recebiam de tudo. Iniciou-se uma corrida para, então, tornar-se a marca mais “curtida” dos usuários. Era importante montar uma base de fãs grande para que suas publicações chegassem ao maior número de pessoas possível. Foi também nesse momento que surgiram (pelo menos no Brasil) a necessidade de mensurar tudo. Se está no digital, é número e pode ser contabilizado. E a principal métrica era simples: seguidores.

Alguns anos depois, com um mercado mais maduro e já de olho em outras métricas mais importantes, o Facebook resolveu destruir todo o “império” que algumas páginas tinham criado quando anunciou a diminuição do alcance orgânico. A justificativa fazia sentido: com uma população de usuários cada vez maior, era impossível entregar todas as publicações (que eram feitas tanto por marcas quanto por amigos) a todos os usuários. Era também uma desculpa favorável à plataforma, que precisava – como qualquer outra empresa – aumentar seu faturamento como umas das principais mídias digitais da Internet. Desde então, reservar parte da verba para patrocinar posts no Facebook deixou de ser luxo para ser pré-requisito.

Uma pesquisa da IAB Brasil em parceria com a ComScore revelou que a previsão de investimento em mídia online para 2016 seria de 10,4 bilhões de reais – sendo a maioria para search, seguido de display + social ads e vídeo. Outra pesquisa, realizada pela agência Zenith nos Estados Unidos, mostrou que o Google já recebe o título de campeão de investimento em mídia, com o Facebook ocupando a quinta posição. Isso tudo serve para ilustrar que o investimento em mídia online não é uma novidade e não deve parar de crescer. O problema que eu quero apontar aqui é a centralidade, principalmente no Brasil devido à explosão de pequenas e médias empresas na última década, que o Facebook tem tido enquanto plataforma de mídia publicitária. Mas qual é o problema?

São tantos erros da plataforma que há uma página inteira no reddit chamada “AntiFacebook” dedicada a denunciar todo o mal que a plataforma causa não apenas aos profissionais que trabalham com ela, mas à sociedade como um todo. Esses “erros” são frutos de uma dominância e influência digital de um verdadeiro gigante que não precisa dar satisfação a ninguém. Eles têm os usuários e as marcas precisam chegar neles, ou seja, resta pagar para isso. Enquanto isso, ficamos à mercê de suas jogadas – como disse o professor de marketing da NYU e fundador da L2 Inc, Scott Galloway, comentando uma das “falhas” do Facebook em erros de métricas, “if your mistakes are consistently in your favor, then they aren’t mistakes… they’re lies”.

Mas o cenário daqui em diante é otimista: em novembro do ano passado o Facebook anunciou (finalmente, depois de pelo menos 3 anos de investimento pesado) a abertura de seus dados para auditoria. Essa transparência que Zuckerberg prometeu aos anunciantes já é uma das maiores expectativas – e cobranças – para todo o contexto de marketing digital daqui pra frente. Como pontuou Marcos Malagris (Coca-Cola) no material “Tendências em digital e social media para 2017” do Quero Ser Social Media, “será um ano de questionamentos necessários para a evolução do nosso mercado”. Seguindo o mesmo raciocínio, Gabriel Ishida (Pernod Ricard) também prevê um mercado mais exigente:

“No nosso mercado de dados, creio que a principal tendência seja a maior cobrança e fiscalização dos anunciantes com as ferramentas de mensuração, incluindo mídias sociais proprietárias de dados, como o Facebook. Já vimos que muitas grandes marcas pressionam o Facebook por mais transparência dos dados e, principalmente, maior precisão, resultando em várias correções e anúncios por parte da rede.”

É extremamente importante que essa iniciativa de pressionar a plataforma tenha partido de grandes anunciantes – afinal, para uma empresa tão grande como o Facebook, as pequenas e médias empresas (em volume) são quem pagam as contas mas ninguém se importa com seus interesses (a não ser que sejam lucráveis). A maior dificuldade está em justamente apresentar a esses anunciantes uma possibilidade de investimento que não seja único ao site de Zuckerberg, que encontre – mesmo fora dos esforços de mídia – outras possibilidades de criar um ambiente de encontro com seus consumidores de uma maneira talvez não tão “empurrada” quanto a compra de publicidade online.

Levar as pessoas para fora do Facebook não pode ser uma tarefa das empresas, não é assim que funciona. Por isso esse texto abordou tanto questões para além do mercado, uma vez que a ameaça do Facebook é um dano muito maior à sociedade de usuários da internet do que às marcas em si. O que estas têm sofrido, no entanto, é – para além da necessidade de estar presente nesse ambiente digital tão populoso – consequência de uma “má acostumação” que depositou na plataforma sua mais propícia (e talvez única) forma de encontrar seus consumidores. Enquanto a Internet ainda for maior que o Facebook, há espaço para jogadas mais criativas e inteligentes.

E eu não estou falando de outras plataformas das quais a empresa também possui, como Instagram e Whatsapp. A primeira, aliás, que não tem medido esforços para descaradamente copiar diversas funções do Snapchat – e ainda sair triunfante, com uma vata gama de usuários deixando o fantasminha para retornar aos domínios de Zuckerberg. Particularmente fico perplexo com tamanha cara de pau e ainda fico triste por estarem conseguindo justamente o que eles querem: uma internet dominada pela própria corporação. Quem não gostar (ou não abaixar a cabeça, como fez o Snapchat), vai acabar sofrendo. Enquanto isso, só não têm forças para bater no Google.

Não sei qual é a solução, mas deve haver um caminho. Enquanto isso, o maior problema permanece: continuamos reféns do Facebook. Reféns de sua boa vontade, de sua honestidade, de seu compromisso com anunciantes e com a sociedade, do seu jogo para tornar seu nome um sinônimo da própria internet. Nesse cenário, o futuro não é próspero. Continuamos reféns de uma única mídia cada vez mais poderosa. Com tanto poder (e dados) nas mãos, não se assustem com um Mark Zuckerberg completando a profecia de George Orwell de fato em 2020.

3 comentários

  1. Um turbilhão de sentimentos (ruins) ao pensarmos no poder que o Facebook hoje tem em mãos. Seu algoritmo simplesmente ignora qualquer veracidade em nome dos cliques/compartilhamentos/divulgações de grandes farsas.

  2. Belo artigo com uma tese coerente e assustadora e factual…..1984 de Orwell…..estou iniciando nessa empreitada de Social Media e aprendo muito com opiniões criticas…parabens

    1. Obrigado pelo comentário e pelas palavras, Adriano! Abs

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