Categoria: Textos acadêmicos

Cinco dimensões de personas online (para pensar a autoapresentação nas mídias sociais)

Um dos meus critérios para avaliar a qualidade/compatibilidade de um artigo acadêmico com os meus interesses de estudo é verificar as referências bibliográficas ao final do trabalho. Além de conseguir me localizar no debate que o texto se propõe a fazer (reconhecer autores e/ou obras citadas me deixa mais tranquilo/satisfeito), descobrir novos estudos que me parecem interessantes é sempre um acréscimo à minha lista de leituras. Foi assim que descobri o ensaio “Five Dimensions of Online Persona”, a partir do artigo ““Sabe o que Rola nessa Internet que Ninguém Fala?”: Rupturas de Performances Idealizadas da Maternidade no Facebook”, de Ana Souza e Beatriz Polivanov, sobre o qual falarei em outro post.

Capa do volume 3, edição nº 1 da revista Persona Studies

O texto faz parte da terceira edição da revista Persona Studies, um caderno acadêmico que “explora a construção do self público” onde “o conceito de persona é explorado em sua produção e performance numa variedade de contextos: cultura online, práticas profissionais, cultura política, cultura de celebridades, cultura de filmes/televisão/música popular, cultura de jogos/lazer e cultura cotidiana”. Seus autores, assim como principais membros do conselho editorial, são: Christopher Moore, da University of Wollongong Australia; Kim Barbour, da University of Adelaide; e Katja Lee, da McMaster University. Completa o time de editores (mas não é um dos autores) o consagrado pesquisador P. David Marshall, da Deakin University.

É importante conhecer os autores (e, neste caso, o conselho editorial) porque, como já mencionei em outras ocasiões, a pesquisa acadêmica – pelo menos na área de Humanas, até onde eu sei – é extremamente plural e, muitas vezes, interdisciplinar. Ou seja, o mesmo tema pode ser (e provavelmente é) estudado a partir de diferentes abordagens, com diferentes referenciais teóricos e levantando diferentes discussões sociais/culturais/éticas. Descobrir, portanto, quem são os pesquisadores por trás do texto, me fez entender quais são seus repertórios e ponto de partida para o projeto: todos têm como área de interesse em comum a “cultura da celebridade” – Marshall, que não é autor mas é bastante citado no texto, possui cinco livros sobre o assunto, com destaque para “Celebrity and power: fame in contemporary culture”.

Isso reflete diretamente na proposta teórico-metodológica que eles propõem para pesquisar e discutir academicamente sobre a construção de personas online – o que não invalida, de forma alguma, a perspectiva que eles trazem, só “justifica” a abordagem mais preocupada em midiatização/exposição e outros elementos que citarei mais adiante. Antes de entrar nesse mérito, entretanto, preciso ratificar que um dos grandes trunfos do texto é a revisão bibliográfica feita para “explorar a subjetividade e a apresentação pública do self através de tecnologias de rede”, apresentando as principais obras e autores que foram ou pioneiros nos estudos sobre identidade/self na internet ou tiveram, com seus trabalhos, maior impacto no universo acadêmico.

Dentre os principais, citam o trabalho de Harrison Rainie e Barry Wellman (2012), que reforça o argumento de que o aparato tecnológico (tecnologias da comunicação, plataformas de mídia e serviços digitais em geral) faz(em) parte também da construção identitária constantemente revisada, atualizada remendada conforme nos conectamos e trocamos informações com outras pessoas e sistemas. Acrescentando a esse argumento, citam o conceito de “networked self” de Zizi Papacharissi (2010), que se refere à “construção de uma performance subjetiva em várias plataformas e fluxo simultâneo de consciência social que expande autonomia, potencialmente reduz agenciamento e que requer constante auto-vigilância e monitoramento” (p. 1).

Outra referência muito interessante trazida pelos autores é o trabalho de Mark Hansen (2015), que argumenta que “em qualquer performance de subjetividade – humana ou não – há uma subjetividade generalizada inerente aos dados quantitativos” (p. 1), marco típico da caracterização elementar da mídia contemporânea. Sua linha argumentativa, a partir da filosofia especulativa de Alfred North Whitehead, “ajuda-nos a apreciar a dimensão sensorial irreduzível da experiência ‘dataficada'”, corroborando com a perspectiva da pesquisadora Helen Kennedy. Em termos simples, há uma concordância de que a subjetividade expansiva, plural e desafiadora dos seres humanos, quando traduzidas midiaticamente, tornam-se pontos de contato entre nós e as máquinas, tornando tudo (qualquer interação) quantificável.

Outras pesquisadoras relevantes, como Nancy Baym, examinou como as formas de comunicação interpessoal das mídias aceleram novas constituições de ‘conexão pessoal’ (2010, p.1). O trabalho de Baym quanto à identidade digital expande a noção útil de Donath (2007) sobre signalling, que funciona para localizar a posição social dentro de uma sociedade saturada de informação. Utilizando o Facebook e seus templates como estudo de caso, o trabalho de Laurie McNeill (2012) explorou a colaboração entre componentes humanos e não-humanos na produção de atos autobiográficos online. Anna Poletti e Julie Rak (2014) oferecem uma orientação similar de uma identidade conectada em estudos biográficos e autobiográficos em Identity Technologias: Constructing the Self online, uma coletânea que argumenta que tais tecnologias são parte fundamental do mundo online na contemporaneidade (p. 2).

Todos esses trabalhos citados – e outros que ainda virão – têm contribuído para uma discussão complexa, diversa e responsável da construção de identidades online nas últimas décadas: “eles começaram a examinar como o indivíduo é intimamente conectado à apresentação de seus selves públicos na cultura online, pelas conexões digitais até instituições sociais, e através das organizações conectadas da vida cotidiana que são fundamentalmente diferente do que já foram” (p. 2). A contribuição da revista, portanto, tem sido levantar uma discussão crítica sobre personas para compreender práticas e performances identitárias no contexto online. Nesse ensaio em específico, pretendem apresentar cinco dimensões importantes de uma persona online para compreender a sua configuração na contemporaneidade.

A DIMENSÃO PÚBLICA

A primeira dimensão que os autores apontam é a dimensão pública, que envolve duas questões relevantes: o “fim” do anonimato na internet e a publicização (POLIVANOV, 2012) do self. O primeiro dialoga diretamente com a noção da virada do milênio na qual o ciberespaço seria um não-lugar que ofereceria aos frequentadores possibilidades infinitas de construção de um (novo) ser. Eles citam, dentre os fenômenos que causaram essa mudança de paradigma: a obrigatoriedade dos nomes reais (no Facebook, por exemplo), os termos de compromissos de jogos online, de mídias sociais, e a onipresença de navegadores baseados em cookies, além das próprias medidas governamentais adotadas nos últimos anos para vigilância social.

Embora essa seja uma questão que tem se amplificado e até se consolidado mais recentemente (consigo entender a argumentação do início da década passada na qual havia maior “mobilidade” para a construção de personas “fictícias”), o declínio do anonimato já era um ponto levantado por Lemos (2003) ao falar sobre as novas dinâmicas da cibercultura. Já naquela época, ele declarava: “Obviamente que questões inéditas surgem comprovadas através de certo lastro empírico, mas as diferenças devem ser matizadas já que várias práticas guardam similitudes com as formas sociais e os papéis que desempenhamos no dia a dia fora da rede” (p. 6). Mais interessante, portanto, a meu ver, é a questão da “publicidade” (publicness) do self.

Os autores chamam a atenção para o espectro amplo de “publicidade” (publicness) de uma persona online, ratificando que “a cada ponto de sua travessia existe um potencial real de partir de um público pequeno de amigos próximos e íntimos a uma audiência global e massiva, possibilitada pelo ato de compartilhamento” (p. 3). Em outras palavras, trata-se da ideia de visibilidade que Polivanov (2012) cita a partir de boyd (2011) como elemento-chave dos sites de redes sociais: é o tornar público – não necessariamente o conteúdo em si, mas o ato de “publicizar” algum elemento (imagético, textual, etc.). Quando publicamos algo nas mídias sociais, muitas vezes esquecemos que estamos justamente tornando aquela mensagem pública – podendo ela ser inferida pela nossa rede de contatos ou por milhares de desconhecidos.

Embora considere essa dimensão extremamente relevante, não concordo muito com a fundamentação argumentativa dos autores – aqui, por exemplo, conhecer o repertório de quem escreveu faz toda a diferença. Eles argumentam que há uma trajetória quase que natural desse efeito de publicness, no qual estaríamos todos buscando constantemente uma audiência maior. “Celebridades agem como marcadores pedagógicos ao fornecerem frameworks replicáveis para a conduta da apresentação pública do self” (p. 3), argumentam. Embora concorde que temos historicamente a construção de personalidades midiáticas como referência para várias das ações que (inconscientemente) aplicamos hoje nas mídias sociais, esse argumento de busca irreversível pela popularidade me parece muito moralista.

A DIMENSÃO MIDIATIZADA

A segunda dimensão traz à tona o aspecto mais tecnológico da construção de uma persona online, sendo este o responsável – literalmente, já que é ele quem torna público – pela dimensão anterior. “Bilhões de usuários diários de mídias sociais no Facebook, WeChat, Twitter e Instagram demonstram um incomparável escopo de habilidades e grau de conforto com a midiatização pública e expressam níveis sem precedentes de exposição atual e em potencial” (p. 3), pontuam. Novamente, aqui, há um enfoque muito grande na comparação com a cultura das celebridades, que precisariam de “mídia” (exposição) para construírem suas carreiras – por isso fazem entrevistas, participam de programas de TV, posam para capas de revistas, etc.

Um apontamento interessante nesse contexto é a associação feita com a teoria narratológica de Gerard Genette sobre o conceito de paratextos: “são dispositivos ou convenções liminares (como poses no tapete vermelho, atributos faciais característicos, hábitos do Instagram ou páginas do Facebook) que formam um significado inicial entre texto e audiência” (p. 4). Trata-se, portanto, de práticas e discursos heterogêneos que acumulamos com o tempo em nossas identidades de persona online: “Esses paratextos circulam conforme performer utilizam suas identidades para converter a si mesmos e as produções das quais fazem parte, tornando-se visíveis enquanto figuras midiatizadas, através de canais de distribuição da mídia tradicional e plataformas de mídias sociais mais pessoais” (p. 4). No contexto das mídias sociais, eles citam likes, favoritos, compartilhamentos e retweets como paratextos.

Em resumo, portanto, a dimensão midiatizada aciona o nosso entendimento mais cotidiano de mídia: é o fazer midiático, que envolve diretamente as (novas) tecnologias de comunicação (e agenciamento) da modernidade digital. Aqui, vale novamente repensar a palavra mídia (como fizemos anteriormente com público),  para que possemos lembrar que vivemos a cultura da mídia (como diria Douglas Kellner) e, portanto, as nossas ações são interpeladas pelo fazer midiático e simultaneamente interpretadas a partir das configurações de entendimento do que aprendemos enquanto construção de personas nos meios de comunicação “tradicionais”. O nosso endosso também constrói quem somos (SCHAU e GILLY, 2003).

A DIMENSÃO PERFORMATIVA

A terceira dimensão é provavelmente uma das mais levadas em consideração na pesquisa acadêmica sobre identidade nas mídias sociais (cf. Polivanov, 2012, cap. 2). Amplamente baseada no trabalho de Erving Goffman, diz respeito ao modo ao qual nos apresentamos apropriadamente de acordo com o público que temos à nossa frente: “Goffman convencionou uma compreensão de grau na qual todos nós apresentamos ‘faces’ e agimos de acordo a depender de cada situação e suas expectativas” (p. 4) – dialogando também com a ideia de identidade fragmentada de Hall (2006) e de audiência imaginada de boyd (2011). De maneira simples, significa dizer que nossos atos performáticos condizem com o papel social que tomamos para si em cada situação: a mãe, a blogueira, a professora, a acadêmica, a militante, etc. – tudo isso em uma só persona.

Para apresentarmos uma persona mediada publicamente nós devemos performar nossa identidade, nossa profissão, nosso gênero; e efetuar nossos gostos, interesses, e redes de conexão através de atividades como comentários em posts, curtidas em contribuições de terceiros ou enquadramento de uma selfie. Essa identidade performativa não faz alegações sobre ser ‘verdadeira’, ou um self que é de alguma maneira menos produzido ou implementado ou mais completo de alguma forma subjacente. A performance pública do self não é nem inteiramente ‘real’ nem inteiramente ‘ficcional’. As conquistas da performatividade significa que uma persona conecta e enreda todas as várias características que são encenadas e apresentadas no cotidiano e intencionadas para interação com os outros (p. 4).

Sobre essa dimensão, os autores chamam atenção principalmente para quatro questões: primeiro, para a noção rotineira da performance discutida por Papacharissi (2010) – e que, de certa forma, dialoga bastante com o conceito de habitus de Pierre Bourdieu – na qual “qualquer interação entre um self performado e o self performado de outros pode rapidamente se tornar um padrão de ação que então se torna uma rotina”. O que envolve diretamente a segunda questão, que é a expectativa que criamos na lógica de coerência expressiva (SÁ e POLIVANOV, 2012) sobre como esperamos que as pessoas ajam frente às determinadas situações. Sobre isso, os autores mencionam também o trabalho de boyd (2010) para ratificar os conflitos geracionais quanto ao uso das mídias sociais, que “nos lembra que os métodos para performar o self não são fixos” (p. 5).

Os autores citam também a importância do trabalho de Judith Butler (1999) para o conceito de performatividade, no qual a autora argumenta que “a qualidade de apresentação da identidade (de gênero) não é nem determinada biologicamente nem produzida individualmente, mas possibilitada e coagida pelas instituições, tecnologias, redes e culturas nas quais o self público é montado e performado” (p. 5). Por fim, mas não menos importante, os autores acionam o conceito a interpretação de vivência mundana (lifeworld) de Habermas (1987) para citar como incorporamos diversos elementos de reprodução simbólica da sociedade – que engloba plataformas de mídia, tecnologias móveis, canais de comunicação múltiplos, etc. – “para gerenciar o self em diversas estruturas, instituições, performances técnicas, frames e palcos” (p. 5).

Um exemplo muito interessante que os autores apontam como “hábitos” que acabamos tomando como naturais na construção de identidades online é explorado no trabalho de Ken Hillis (2009) sobre o “pull-down menu”: “[o autor] nos lembra que a performance de gênero, peso, idade, profissão, localização, atitude e relacionamento para outros é puramente ritualizada como resultado da opções limitadas disponíveis para usuários nos sistemas” (p. 5). No entanto, argumentam os autores a partir de Marshall (2010), “é através da performatividade de apresentação midiática que indivíduos são encorajados, convocados e até mesmo ‘seduzidos’ a construções mais elaboradas da apresentação pública”. Essa construção performativa deve sempre estar de acordo com certa coerência narrativa através de um equilíbrio entre pessoal, profissional, sincero e autêntico.

A DIMENSÃO COLETIVA

A quarta dimensão apontada no texto se refere à noção de coletivo à qual fazemos parte numa rede de conexões: “O indivíduo está conectado a múltiplos públicos, tornando a dimensão coletiva de uma persona um complexo meta-coletivo” (p. 6). Aqui os autores acionam termos como “nós” e “redes” para ratificar a ideia de diferentes (e possivelmente sobrepostas) conexões entre os atores que possuem um ponto central: a persona do usuário. Não se trata (apenas) da noção de redes das quais fazemos parte no contexto de mídias sociais, mas também dos processos diversos – e em diferentes plataformas – que utilizamos para construir a nossa identidade online (você é sua conta no Instagram + Facebook + LinkedIn + Twitter, etc.).

Essa construção fragmentada do self implica uma audiência também fragmentada (porém razoavelmente imaginada), que traz à discussão o conceito de micro-publics. A primeira vez que vi esse termo num artigo foi no texto “Is Habermas on Twitter? Social Media and the Public Sphere”, de Axel Bruns e Tim Highfield, na qual os autores apresentam esses micro-públicos como constituintes plurais de uma (nova) esfera pública nas mídias sociais. No ensaio em questão, os autores apresentam o conceito também partindo de uma ideia de pequenos grupos de audiência que denominam certos valores e expectativas em comum frente à construção de uma persona: “A intercomunicação entre atividades de micro-público ocorre como parte da comunicação interpessoal do self, onde automediações estão ligadas diretamente a atividades de autopromoção em diversas plataformas, sites e serviços” (p. 6).

Micro-públicos são micro não em termos de escala, mas em relação à natureza da rede que é regular e privadamente atualizada por uma identidade central. Um micropúblico está anexado à uma persona única que está pessoalmente produzindo, respondendo e transmitindo na tradição das instituições de mídia previamente dominantes, o que torna o micropúblico uma rede quasi-pública. Para lidar completamente com a emergência da persona online, nós observamos atentamente as conexões fortes entre indivíduos e as múltiplas sobreposições de micropúblicos aos quais eles são centrais (p. 6).

Essa dimensão retoma outros dois conceitos já citados neste post: a ideia de coerência expressiva e o conceito de gerenciamento de impressões. O primeiro, cunhado por Sá e Polivanov (2012), parte justamente da ideia de Goffman sobre como temos que criar uma narrativa bem amarrada e alinhada para os diferentes (micro)públicos. No texto, os autores citam duas complicações atuais para essa dimensão: “a relação de tornar-se amigo e tornar-se seguidor que amplica o laço afetivo entre autor e público […] que contribuiu com novas dimensões interpessoais de expressões culturais, governança e consumo”; e “a construção muito complexa de públicos como micropúblicos que intercepta sistemas de comunicação e mídia maiores e consolidados que produzem tropas culturais e contribui para uma nova orientação de valor e agenciamento” (p. 6).

A DIMENSÃO DE VALOR

A última dimensão coloca em pauta outra perspectiva bastante estudada sobre a midiatização do self online (principalmente se tratando de influenciadores/webcelebridades/produtores de conteúdo): agenciamento, reputação e prestígio. “O motivo para criar personas pode variar desde o pessoal e íntimo […] ao profissional […] ou o público […]. Personas não são fixas às suas motivações originais que levaram às suas criações, mas escorregam por registros da performance (Barbour, 2014), um processo que é facilitado pela natureza mediada e coletiva da produção de persona” (p. 7), explicam os autores. De certa forma, essa argumentação se assemelha com a visão weberiana sobre ações sociais, às quais trabalharíamos com a racionalidade, a afetividade e/ou a tradição para auxiliar nossas tomadas de decisões.

Nesse reconhecimento de intenção por trás da produção de persona está incorporado uma compreensão do agenciamento envolvido. Embora trabalhando dentro das possibilidades e restrições da tecnologia, estruturas de poder e normas sócioculturais, aqueles que constroem personas ainda estão tomando decisões ativas e importantes quanto ao modo que performam essa persona para seus micro-públicos. A máscara da persona é adotada durante sua performance e a persona pode então se tornar ‘algo’ pela qual outras ‘coisas’ são alcançadas. A produção de redes acontece pelas ações dos produtores da persona, e membros dessas redes podem igualmente contribuir para essa persona pelas suas escolhas e ações. Ações paratextuais como ‘curtir’ ou compartilhar conteúdos específicos são contribuições ativas para uma identidade pública ou semi-pública, e demonstra a importância das escolhas que fazemos em participação online (p. 7).

Quanto à reputação, os autores chamam a atenção dos trabalhos que têm investigado como a construção de personas online têm traduzido – até coercivamente – em mudanças de posturas da vida offline: “pesquisas sobre a natureza aspiracional das performances de identidade online […] parecem sustentar a ideia de que características aspiracionais são constantemente eventualmente incluídas e incorporadas numa persona offline” (p. 7). Em paralelo, a ideia de prestígio é relativizada: “O prestígio associado às personas – compreendido por aqueles que as criaram – é outorgado pelo micropúblico daquela persona”. Em outras palavras, é o intuito inicial da construção da persona que pode julgar e avaliar o sucesso do seu prestígio.

TRABALHOS NA EDIÇÃO

Como mencionei desde o início, o texto não se trata de um artigo, mas de um ensaio que introduz os trabalhos disponíveis no volume 3 no. 1 do Persona Studies. Os autores chamam atenção para o interesse desses artigos no papel de públicos conectados na construção de uma persona; a dinâmica interação entre públicos e atores para sua constituição; a relevância dos públicos nessa dinâmica constituinte; a sobreposição de públicos e trajetória transversal, dinâmica, móvel e flexível para a construção de personas em diferentes situações; e a responsabilidade da coerência expressiva (ou accountability) entre suas performances.

Quando levamos em consideração esses coletivos e redes e a interação que acontece entre e através deles; quando ficamos atento à performance, às mediações e aos mecanismos de adquirir e distribuir valor através de personas, como os artigos nessa edição consideram, é inevitável que consideremos também os componentes estruturais e estruturantes que condicionam e limitam a produção e performance de uma pessoa […]. As estruturas que condicionam personas são considerações cruciais, mas elas podem, se não formos cuidadosos, rapidamente esmagar coagir como fazemos sentidos de personas. Nós agora estamos, talvez, habituados às discussões sobre limitações e possibilidades das plataformas de tecnologia e mídias sociais na produção de identidades públicas digitais (p. 9).

Como mencionei no início do post, um dos grandes méritos do ensaio é construir uma tentativa de “estado da arte” do que tem sido referência e impactado diretamente no campo de pesquisa sobre identidades online no mundo todo. É evidente que a visão anglo-eurocêntrica impede que os autores australianos deem atenção à produção na América Latina, por isso fiz questão de citar alguns trabalhos também relevantes no contexto brasileiro – e que poderiam agregar ainda mais à discussão mundial, tivéssemos a mesma visibilidade dos norte-americanos. De qualquer modo, o a proposta das cinco dimensões para pensar personas online é muito bem construída, desenvolvida e argumentada – ainda que os próprios autores ratifiquem que não se trata de um framework totalitário, mas “úteis para considerar as relações entre tecnologia e identidades públicas digitais”.

Nessa edição da revista, estão presentes os artigos: “Get Off My Internets”: How Anti-Fans Deconstruct Lifestyle Bloggers’ Authenticity Work, de Sarah McRae; The persona in autobiographical game-making as a playful performance of the self, de Stefan Werning; Constructing the Antichrist as Superstar: Marilyn Manson and the Mechanics of Eschatological Narrative, de Patrick William Osborne; e The Hyphenated Persona: Aidan Quinn’s Irish-American Performances, de Loretta Goff. Vale também conferir, entretanto, a segunda edição de 2017, que traz mais textos sobre personas no contexto digital como Online Persona Research: An Instagram Case StudyTeenagers, Fandom and Identity, além do ótimo criativo User Personas and Social Media Profiles.

Referências bibliográficas

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Barbour, K 2014, Finding the Edge: Online persona creation by fringe artists, Doctoral Thesis, Deakin University, Australia.

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Lemos, A 2003, Cibercultura. Alguns pontos para entender nossa época. In: LEMOS, André; CUNHA, Paulo (orgs). Olhares sobre a Cibercultura. Porto Alegre: Sulina.

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McNeill, L 2012, ‘There is no “I” in network: social networking sites and posthuman auto/biography’, Biography, vol. 35, no. 1, pp. 65-82, doi: https://doi.org/10.1353/bio.2012.0009.

Papacharissi, Z 2010, A networked self: identity, community and culture on social network sites, Routledge, New York.

Poletti, A & Rak, J 2014, Identity technologies: Constructing the Self Online, University of Wisconsin Press, Madison.

Polivanov, B 2012, Dinâmicas de autoapresentação em sites de redes sociais: performance, autorreflexividade e sociabilidade em cenas de música eletrônica. Tese. (Doutorado em Comunicação). Universidade Federal Fluminense: Rio de Janeiro.

Rainie, L & Wellman, B 2012, Networked: The New Social Operating System, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts.

Schau, H & Gilly, M. We Are What We Post? Self-Presentation in Personal Web Space. Journal of Consumer Research, Inc., v. 30, 2003.

O que faz ser nordestino no Facebook?

No dia 19 de dezembro de 2017, depois de quatro longos anos, apresentei no bloco A do campus Gragoatá da Universidade Federal Fluminense o meu trabalho de conclusão de curso na graduação em Estudos de Mídia. Com um misto de imensa gratidão e desconcertante despedida, defendi a minha monografia, “O que fazer ser Nordestino no Facebook: Escolhas da construção identitária nos sites de redes sociais”, frente à melhor banca que poderia ter escolhido para fechar esse ciclo com chave de ouro.

Quem me acompanha no Twitter sabe que não foi uma jornada fácil – e nem rápida, já que comecei a confabular a ideia para esse trabalho ainda no primeiro semestre de 2016. Com alguns tropeços (burocráticos e da vida mesmo) no caminho, a verdade é que eu só sentei para realmente escrever os capítulos no segundo semestre de 2017 – escrevendo o segundo e terceiro capítulo só em novembro, ou seja, em apenas algumas semanas. A minha sorte é que, embora tenha deixado a produção para a última hora, já tinha lido e catalogado a grande maioria das minhas referências meses antes.

Como comentei no Twitter, o sufoco para finalizar esse trabalho não se deu por falta de aptidão pelo tema, mas apenas pela irresponsabilidade cronológica das minhas obrigações. Garanto, no entanto, que foi o meu entusiasmo pelo tema – e pela ideia em geral – que me forneceu o combustível necessário para escrever mais de 60 páginas apenas em duas/três semanas. Poder levantar a discussão sobre identidade, cultura, representação, Nordeste, autoapresentação, performance e sites de redes sociais em um único trabalho fez com que a escrita saísse com suor, mas com um imenso sorriso no rosto.

Embora o tema – ou melhor, os temas – possam parecer óbvios para a minha pessoa, não foi fácil chegar nele(s). No quinto período, quando fiz a disciplina Metodologia de Pesquisa, foi realmente quando tive que colocar no papel as ideias que tive durante os três anos de graduação para elaborar um anteprojeto. Revirei minhas anotações, as disciplinas que fiz, tweets que publiquei… E cheguei à conclusão que queria falar de identidade e sites de redes sociais, só faltava um meio termo. Felizmente no mesmo período tinha feito um trabalho sobre a Brasileiríssimos que me orientou por onde deveria seguir, até que cheguei à Nordestinos.

A ideia inicial (do anteprojeto) era fazer uma análise da representação do Nordeste nessa página, mas descartei eventualmente essa proposta porque queria focar mais em identidade e menos em representação/análise do discurso (embora seja tudo muito imbricado). Isso porque era uma questão que me atravessava diretamente (saí de Aracaju com 17 anos para São Paulo e depois Rio de Janeiro, então a identidade nordestina era “percebida” pelos outros de forma constante na minha vida no Sudeste) e também devido à minha afiliação teórica com a discussão sobre identidade – e não tanto com análise do discurso (muito relevante para avaliar o conteúdo de uma página), por exemplo.

Antes de começar a escrever o trabalho, meu orientador – Prof. Dr. Marildo Nercolini – orientou que eu produzisse, sem me preocupar com a burocracia das referências, um texto sobre o que eu tinha em mente. Deveria ter somente duas páginas, mas acabei escrevendo sete. Com o entusiasmo, cheguei a produzir um artigo para o XIII ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, que infelizmente não foi aceito. Fiquei bastante abatido na época, porque era uma das minhas metas de 2017, mas concordei com todos os apontamentos do avaliador. Embora tivesse uma boa base teórica, partiu de um texto na primeira pessoa e faltou uma análise mais densa.

Confesso que me desanimou um pouco, e talvez tenha sido esse o motivo pelo qual demorei tanto para começar a escrever o TCC. Fui negado em maio, escrevi o primeiro capítulo em julho e fui revisar só em setembro. Felizmente meu orientador não me abandou em nenhum momento e me deu todo o apoio necessário para que eu terminasse o trabalho em tempo recorde. E, finalmente, depois de tantos altos e baixos, consegui produzir algo do qual me orgulho muito e fiquei bastante feliz com o resultado. Independente da avaliação da banca, estava satisfeito com o meu trabalho. Sem mais delongas, portanto, compartilho aqui – para quem tiver interesse – a minha monografia:

Talvez eu deva começar explicando pelo título, que não foi bem aceito pela banca. A minha ideia inicial era seguir pelo óbvio “A identidade nordestina no Facebook”, mas não consegui encontrar um subtítulo que não repetisse a mesma ideia do título, complementando-o – como deveria ser. Foi somente nos últimos dias de produção que me veio o título final, no qual a proposta é fazer uma referência direta ao livro “O que fazer ser nordestino: identidades sociais, interesses e o ‘escândalo’ Erundina”, escrito por Maura Penna na década de 90 e uma das principais referências bibliográficas no meu trabalho. Reconheço, entretanto, que pode soar estranho para quem não conhece a obra – a grande maioria das pessoas.

Fora isso, o trabalho foi muito bem aceito pela banca que apontou apenas algumas (várias, na verdade: eu falei por 20 minutos e elas falaram por 2/3 horas) considerações de correção e/ou melhorias. Em suma, a proposta do TCC era responder à pergunta: por que as pessoas optam por acionar a identidade nordestina nos sites de redes sociais? Para isso, estruturei da seguinte forma: no primeiro capítulo, fiz um levantamento histórico-bibliográfico de como “surge” o Nordeste e o nordestino; em seguida, dedico todo o segundo capítulo à discussão sobre identidade, sob diferentes perspectivas: nacionais, regionais, fragmentadas e, finalmente, nos sites de redes sociais; finalizo o trabalho com as respostas ao questionário que apliquei com usuários do Nordeste.

Fiquei muito feliz que, nesta última etapa, encontrei uma solução metodológica utilizando a análise de redes. Explico: a minha pergunta principal parte do pressuposto de que há pessoas que acionam essa identidade nos sites de redes sociais, então, como posso encontrá-las? Poderia optar por simplesmente selecionar alguns amigos meus e pedir que respondessem ao questionário, mas achei que a análise de redes me ofereceria um critério “científico” muito mais válido. Aquele trabalho que publiquei aqui no post alguns meses atrás, do mapeamento do Nordeste no Facebook, portanto, serviu como base para que eu encontrasse as páginas mais “influentes” no contexto da minha pesquisa – a identidade nordestina. Com essa lista em mãos, utilizei como requisito básico para encontrar usuários aptos a responder o questionário.

Enfim, consegui colocar identidade, cultura, representação, Nordeste, sites de redes sociais, autoapresentação e análise de redes (que por tanto tempo fugi) num mesmo trabalho – e, portanto, repito: não poderia estar mais feliz com o resultado. A versão que trago acima já é corrigida após os apontamentos da banca, na medida do possível. Algumas considerações mais complexas (e foram muitas, o que me deixou muito animado) eu anotei como ideia para levar ao mestrado, a nova meta de 2018. Acho importante reconhecer, inclusive, uma limitação do projeto: o questionário em vez da entrevista, o que “limitou” as respostas dos informantes para averiguar com mais afinco a especificidade dessa construção identitária nos sites de redes sociais, como apontou Prof. Dra. Beatriz Polivanov.

Para finalizar, reconheço que não apenas a questão sob a viés dos sites de redes sociais pode ser um campo muito interessante a ser explorado num programa de pós-graduação em comunicação, mas diversas outras questões como estigma, preconceito, estereótipo, disputa, orgulho e diáspora. Dentre as falas da banca, uma das que mais me marcou foi da Prof. Dra. Ana Lúcia Enne: é difícil deslocar a identidade quando se ancora na natureza (como álibi climático comumente associado ao Norte), pois o significante é muito poderoso, o que dificulta destruir o estereótipo. Mais difícil do que mexer no significado, portanto, é disputar o significante. Sobre isso, compartilho o que escrevi nas considerações finais após essa consideração na defesa:

Nascido em Salvador, parti para Aracaju com apenas 5 anos e deixei a capital somente aos 17, quando fui para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro fazer faculdade. Como qualquer pessoa que sai do Nordeste em diração ao Sul, tive que lidar em algum (ou alguns momentos) com a diferenciação do “outro”, geralmente facilitada pelo conflito de sotaques. Desde então, a classificação “nordestino” atribuída a mim – e a outros milhões – sempre foi uma questão que me intrigava. Com as leituras que fiz no curso, a reflexão de anos ficou ainda mais complexa e, de certa forma, até mais complicada.

Essa dificuldade de lidar com a questão da autoatribuição nordestina pairou toda a escrita deste trabalho, uma vez que as reflexões sobre o “ser nordestino” após a minha migração já trazia uma leitura da identidade nordestina como representada nas obras de arte, como uma condição de sofrimento e adversidades. Se o texto parece impessoal, é somente devido a essa angústia que ainda me agonia. Ao tentar fugir do estereótipo, acabo negando-o e, ao mesmo tempo, legitimando-o. Afinal, “sou” nordestino, mas nunca passei por dificuldades (estruturais) na vida. Será que, então, poderia me identificar enquanto nordestino? Depois de tudo isso, acredito que sim.