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O papel da representação – em Cultura e representação, de Stuart Hall

Em março de 2017 publiquei aqui no blog a primeira parte do que prometi que seria uma série de três posts sobre o livro “Cultura e Representação” (Stuart Hall, 2016), organizado pela Editora PUC-Rio. A obra traz três textos independentes (produzidos originalmente para diferentes publicações), porém complementares: a Apresentação (introdução da coletânea Representation: Cultural Representation and Signifying Practices, de 1997), o Capítulo 1 – O papel da representação (o original, The Work of Representation) e o Capítulo 2 – O espetáculo do outro (o original, The Spectacle of the Other). Tendo mais de um ano do lançamento desta série, compartilho aqui – enfim – o segundo post sobre o livro, como uma espécie de resumo-comentado.

No texto “O papel da representação” (primeiro capítulo da obra), Hall se debruça com tremenda minúcia em alguns dos conceitos mais relevantes do seu trabalho: representação, sentido, linguagem e discurso. Extremamente metódico, o autor divide a leitura em cinco tópicos principais: 1. Representação, sentido e linguagem (no qual explica as principais teorias em torno de signos, significados e sentidos); 2. O legado de Saussure (no qual apresenta a “virada linguística” nos estudos sociais); 3. Da linguagem à cultura: da linguística à semiótica (no qual apresenta a abordagem da semiótica quanto à construção de sentido); 4. Discurso, poder e sujeito (no qual localiza a importância de Foucault para pensar poder/política/causa e efeito); e 5. Onde está o sujeito? (no qual toma para si a responsabilidade de localizar o sujeito na estrutura).

1. Representação, sentido e linguagem

Na primeira parte, o autor apresenta gradativamente os conceitos que serão trabalhados no texto, a começar por representação: um processo-chave do circuito cultural (significados produzidos e compartilhados) que conecta o sentido e a linguagem (signos e imagens que significam/representam objetos) à cultura. Em outras palavras (e de modo simples), representação seria a produção de sentido pela linguagem. E para explicar com mais detalhes sobre esse assunto, ele apresenta três abordagens/teorias principais: a Reflexiva, a Intencional e a Construtivista – esta última mais relevante (e atual), à qual o autor se filia e na qual desenvolve todo o seu pensamento -, a serem exploradas com mais detalhes logo mais.

Para facilitar a compreensão, colocaria que, fosse essa temática uma simples equação matemática, seria algo como: representação = sentido + linguagem. Ou seja, “é a conexão entre conceitos e linguagem que permite nos referirmos ao mundo ‘real’ dos objetos, sujeitos ou acontecimentos, ou ao mundo imaginário de objetos, sujeitos e acontecimentos fictícios” (p. 34). Nesse contexto, há o que o autor pontua didaticamente como dois processos (ou sistemas) complexos de representação: o primeiro, ligado aos conceitos sustentados pela construção metódica de sentido; e, o segundo, ligado ao uso da linguagem (enquanto instrumento comunicacional) para carregar consigo a função do primeiro.

Hall simplifica o primeiro sistema (bastante complexo, é bom ratificar) como “um conjunto de conceitos ou representações mentais que nós carregamos” relacionados a ordem de objetos, sujeitos e acontecimentos “que podem ‘representar’ ou ‘se colocar como’ o mundo” (p. 34). Diz respeito, portanto à nossa capacidade enquanto seres inteligíveis capazes de produzir e manter um sistema conceitual mental que nos permita julgar “o mundo de maneira relativamente similar”, podendo “construir uma cultura de sentidos compartilhada e, então, criar um mundo social que habitamos juntos” (p. 36). Talvez aqui seja difícil de compreender por se tratar de um processo bem abstrato, mas os exemplos que surgirão mais para frente devem ajudar.

Já o segundo sistema é relativamente mais simples (de compreender), já que se faz literalmente mais concreto no nosso cotidiano. É a linguagem esse “segundo sistema de representação envolvido no processo global de construção de sentido” (p. 36), sobre o qual os signos se organizam. Estes “indicam ou representam os conceitos e as relações entre eles que carregamos em nossa mente e […], juntos, constroem os sistemas de significado da nossa cultura” (p. 37). Ele chama atenção para o sentido mais amplo atribuído à linguagem (e, consequentemente, aos signos) nessa explicação, não se limitando à fala/escrita/etc., mas tudo que seja capaz “de carregar e expressar sentido”, organizado sistematicamente e se tornando, assim, “uma linguagem”.

No cerne do processo de significação na cultura surgem, então, dois “sistemas de representação” relacionados. O primeiro nos permite dar sentido ao mundo por meio da construção de um conjunto de correspondências, ou de uma cadeia de equivalências, entre as coisas, pessoas, objetos, acontecimentos, ideias abstratas etc. – e o nosso sistema de conceitos, os nossos mapas conceituais. O segundo depende da construção de um conjunto de correspondências entre esse nosso mapa conceitual e um conjunto de signos, dispostos organizados em diversas linguagens, que indicam ou representam aqueles conceitos. A relação entre “coisas”, conceitos e signos se situa, assim, no cerne da produção do sentido na linguagem, fazendo do processo que liga esses três elementos o que chamamos de “representação” (p. 38).

Todo esse “ciclo” da representação exige que as pessoas possuam minimamente “mapas conceituais” semelhantes, ou seja, maneiras parecidas de interpretas os signos de uma linguagem: “à medida que a relação entre o signo e o seu referente se torna menos clara, o sentido começa a deslizar e escapar de nós, caminhando para a incerteza” (p. 39). Essa condição (ou pré-requisito) é importante também para nos lembrar a arbitrariedade dessa relação entre signo, conceito e objeto; ou seja, a palavra “melancia” nos remete à fruta devido ao acordo que fizemos na sociedade brasileira/língua portuguesa quanto à referência entre signo e objeto real, mas poderia ser qualquer outra combinação de letras: “yulate” (ou “watermelon”, em inglês).

O sentido, portanto, não nasce com o signo, é incorporado a ele: “Somos nós quem fixamos o sentido tão firmemente que, depois de um tempo, ele parece natural e inevitável. […] Ele é construído e fixado pelo código, que estabelece a correlação entre o nosso sistema conceitual e nossa linguagem […]” (p. 42). Os códigos, portanto, possibilitam-nos a falar e ouvir inteligentemente ao fixar arbitrariamente as relações entre o nosso sistema conceitual e os nossos sistemas linguísticos, num processo de tradutibilidade em ambas direções. Crianças, por exemplo, aprendem o sistema de convenções sociais e representações (tanto na fala quanto na interpretação) para que passem a, gradativamente, atuar como sujeitos culturalmente competentes.

Uma implicação desse argumento sobre códigos culturais é que, se o sentido é o resultado não de algo fixo na natureza, mas de nossas convenções sociais, culturais e linguísticas, então o sentido não pode nunca ser finalmente fixado […]. Obviamente, deve haver alguma fixação do sentido na linguagem, ou nunca poderíamos entender uns aos outros […]. Convenções sociais e linguísticas mudam, sim, através do tempo […]. Códigos linguísticos variam significativamente entre uma língua e outra. […] O principal ponto é que o sentido não é inerente às coisas, ao mundo. Ele é construído, produzido. É o resultado de uma prática significante – uma prática que produz sentido, que faz os objetos significarem. (p. 46)

Para explicar como a representação do sentido pela linguagem funciona, Hall traz três enfoques das teorias já citadas: reflexiva, intencional a construtivista. Na primeira, “o sentido é pensado como repousando no objeto, pessoa, ideia ou evento no mundo real, e a linguagem funciona como um espelho, para refletir o sentido verdadeiro como ele já existe no mundo” (p. 47). O foco dessa teoria, portanto, está na mimesis (reflexão/imitação) do real – por isso também é comumente chamada de mimética. Já na segunda, o foco é o interlocutor: “as palavras significam o que o autor pretende que signifiquem” (p. 48). Seu caráter individualista, entretanto, esbarra na necessidade comunicacional que exige o conhecimento compartilhado dos signos e dos sentidos a eles atribuídos.

É sob o manto da teoria construtivista, entretanto, que o autor se deleita. Nela, nem o signo pelo signo nem o interlocutor pelo interlocutor basta, mas um jogo complexo entre todas as partes envolvidas: “Nem as coisas nelas mesmas, nem os usuários individuais podem fixar os significados na linguagem. As coisas não significam: nós construímos sentido, usando sistemas representacionais – conceitos e signos”. Em complemento, explica a dinâmica desse processo: “São os atores sociais que usam os sistemas conceituais, o linguístico e outros sistemas representacionais de sua cultura para construir sentido, para fazer com que o mundo seja compreensível e para comunicar sobre esse mundo, inteligivelmente, para outros” (p. 49).

Para explicar melhor a teoria construtivista (e o processo de representação como um todo), o autor utiliza o ótimo exemplo da linguagem dos semáforos. Primeiro, levemos em consideração as cores que conhecemos. Elas existem, obviamente, mas os nomes os quais as atribuímos foram definidos por nós mesmos: “usamos um modo de classificar o espectro colorido para criar cores que são diferentes umas das outras. Nós representamos ou simbolizamos as diversas cores e as classificamos de acordo com diferentes conceitos de cor” (p. 49-50). São, portanto, dois momentos (didáticos): aquele no qual nosso mapa mental compreende e distingue as cores umas das outras; e outro no qual associamos a essas cores, diferenciadas, signos e códigos linguísticos.

É óbvio que, na prática, esse processo é menos metódico e mais “bagunçado”, mas ele nos leva a três considerações relevantes: 1) nem o significado nem o signo existem sozinhos, são construídos socialmente; 2) uma vez que são construídos socialmente, poderiam ser qualquer coisa; 3) exatamente devido a essa possibilidade de ser qualquer coisa, mas tendo essa fixação social, há um duplo arbitrário em jogo. E é justamente em cima dessa arbitrariedade que os construtivistas vão argumentar de onde surge o sentido: “o que significa, o que carrega sentido, eles argumentam, não é cada cor por si mesma nem o conceito ou palavra para ela. É a diferença entre vermelho e verde que significa” (p. 53).

Em princípio, qualquer combinação de cores – como qualquer coleção de letras na linguagem escrita ou de sons na linguagem falada – funcionaria, dado que as cores fossem suficientemente diferentes para não serem confundidas. Os construtivistas expressam essa ideia dizendo que todos os signos são ‘arbitrários’. Esse termo significa que não existe nenhuma relação natural entre o signo e seu sentido ou conceito […]. É o código que fixa o sentido, não a cor por si própria. Isso também tem implicações mais amplas para a teoria da representação e sentido na linguagem, e significa que signos por eles mesmos não podem fixar sentido. Em vez disso, o sentido depende da relação entre um signo e um conceito, o que é fixado por um código. O significado, os construtivistas diriam, é ‘relativo’. (p. 52)

Em resumo, portanto, vale recapitular: representação é a produção do sentido pela linguagem“O sentido é produzido dentro da linguagem, dentro e por meio de vários sistemas representacionais que, por conveniência, nós chamamos de ‘linguagens’. O sentido é produzido pela prática, pelo trabalho, da representação. Ele é construído pela prática significante, isto é, aquele que produz sentidos” (p. 54). Como um ciclo da teoria construtivista, portanto, compreenderia-se: conceitos formados nas nossas mentes em sistemas classificatórios inteligíveis > signos que transportam os sentidos > tradução dos nossos conceitos em linguagem através de mapas de sentido compartilhados.

  • Teoria Reflexiva (Mimética): propõe uma relação direta e transparente de imitação ou reflexão entre as palavras (signos) e as coisas;
  • Teoria Intencional: reduz a representação às intenções do autor ou sujeito;
  • Teoria Construtivista: propõe uma relação complexa e mediada entre as coisas no mundo, os conceitos em nosso pensamento e a linguagem.

2. O legado de Saussure

A segunda parte do texto é completamente dedicada ao filósofo Ferdinand de Saussure, responsável pela “virada linguística” das Ciências Sociais (e, consequentemente, dos Estudos Culturais). A visão social-construtivista da linguagem ratifica a importância dos signos (sistema de sinais), porém somente num contexto de sistema de convenções compartilhadas. Deste modo, o significante (a palavra ou imagem de um objeto) se correlaciona com o conceito mental desse objeto parar gerar sentido, “mas é a relação entre eles, fixada pelo nosso código cultural e linguístico, que sustenta a representação” (p. 57). Novamente, para simplificar: signo = significante (forma que significa) + significado (ideia significada).

Embora essa primeira introdução ao autor possa indicar uma caminhada em direção à teoria reflexiva, Hall logo explica que é a natureza arbitrária do signo que fundamenta – para Saussure, assim como para os construtivistas – a construção de sentido pela linguagem: “Signos não possuem um sentido fixo ou essencial. […] Os signos, argumentou ele, ‘são membros de um sistema e definidos em relação a outros membros daquele sistema'” (p. 58). O filósofo, enfática e revolucionariamente, argumentou que “os significantes devem estar organizados em um ‘sistema de diferença'” para produzir sentido, pois “é a diferença entre os significantes que significa” (p. 59) – logo, a retomada ao signo não se refere a sua mimesis, mas a seu caráter social/cultural.

É aí que a teoria construtivista pesa em seu pensamento, quando ele localiza o signo (e o sentido) à história: “Os conceitos (significados) aos quais elas [as palavras] se referem também se modificam, historicamente, e toda transformação altera o mapa conceitual da cultura, levando diferentes culturas, em distintos momentos históricos, a classificar e pensar sobre o mundo de maneira diversa” (p. 59). Ou seja, não há como sustentar o significante e o significado sem compreender o processo histórico e cultural nos quais eles estão concebidos. Isso quebra “qualquer vínculo natural e inevitável” entre ambos, abrindo assim “a representação para o constante ‘jogo’ de deslizamento do sentido, para a constante produção de sentidos, novas interpretações” (p. 60).

O sentido deve ser ativamente ‘lido’ ou ‘interpretado’. Consequentemente, há uma imprecisão necessária e inevitável sobre a linguagem. O sentido que nós captamos, como espectadores, leitores ou público, nunca é exatamente o sentido que foi dado pelo interlocutor, escritor ou pelos outros espectadores. E, uma vez que, para dizer algo relevante, nós devemos ‘entrar na linguagem’, onde todos os tipos de sentidos que nos antecedem, que seria fazer uma triagem de todos os outros sentidos ocultos que podem modificar ou distorcer o que nós queremos dizer. […] Assim, a interpretação torna-se um aspecto essencial do processo pelo qual o sentido é dado e tomado. O leitor é tão importante quanto o escritor na produção do sentido. Todo significante dado ou codificado com significado tem que ser significativamente interpretado ou decodificado pelo receptor (Hall, 1980). Signos que não tenham sido inteligivelmente recebidos ou interpretados não são, em nenhum sentido útil, “significativos” (p. 60-61).

Um dos termos – conceitos – importantes de Saussure é o que ele chamou de langue (ou sistema de linguagens), que é basicamente a estrutura regrada que nos possibilita formar sentenças socialmente compreensíveis. Em complemento à langue, há a parole, reconhecida como “atos particulares de fala, escrita ou desenho que […] são produzidos por um interlocutor ou escritor real”. Em suma, a partir de Culler (1976), Hall explica: “A langue é o sistema da linguagem, a linguagem como um sistema de formas, enquanto a parole é a fala [ou escrita] real, os atos de fala que só são possíveis pela linguagem” (p. 61). Ou seja, o primeiro seria a base (cultural) na qual o segundo pode operar a partir de performances individuais.

Nosso autor destaca que, para Saussure, a langue, por se tratar de um sistema razoavelmente fechado/limitado de regras e códigos, poderia ser estudada cientificamente. Já a parole, por mais individual que seja (ela realmente é lida como a fala/linguagem de cada um de nós), precisa da langue para se sustentar: “Cada afirmação autoral só se torna possível porque o ‘autor’ compartilha com outros usuários da linguagem as regras e códigos comuns do sistema – a langue -, que permite que eles se comuniquem um com o outro significantemente” (p. 62). Essa argumentação é importante para fazer coro com o que já vimos anteriormente, sempre lembrando que 1) nada é natural e 2) tudo se constrói em sociedade, e não no vácuo.

O grande feito de Saussure foi nos forçar a prestar especial atenção na linguagem em si, como um fato social, no processo de representação em si, em como a linguagem realmente funciona e no papel que desempenha na produção do sentido. Ao fazer isso, Saussure salvou a linguagem do status de mero meio transparente entre coisas e sentido. Ele mostrou, em vez disso, que a representação é uma prática. No entanto, em seu próprio trabalho, Saussure tendeu a focar, quase exclusivamente, nos dois aspectos do signo – significante e significado. Deu pouca ou nenhuma atenção a como essa relação entre significante / significado poderia servir ao propósito do que nós previamente chamamos de referência – ou seja, nos referindo ao mundo das coisas, pessoas e eventos que estão fora da linguagem, no mundo ‘real’. (p. 63)

Ainda que seu trabalho tenha sido importantíssimo para as Ciências Sociais como um todo, a obsessão funcionalista pelo seu objeto de pesquisa o cegou de levar em consideração as “características mais interativas e dialógicas da linguagem – como é realmente usada, como funciona em situações reais, no diálogo entre diferentes tipos de locutores” (p. 64). Hall aponta que “teóricos culturais posteriores aprenderam com o ‘estruturalismo’ de Saussure, mas abandonaram sua premissa científica”, explicando que: “Como por vezes acontece, o sonho ‘científico’ que residia por trás do impulso estruturalista do seu trabalho (embora influente em nos alertar para certos aspectos de como a linguagem funciona) provou ser ilusório. A linguagem não é um objeto que possa ser estudado com a precisão de uma ciência” (p. 64).

E continua: “A linguagem permanece governada por regras, mas não é um sistema ‘fechado’ que pode ser reduzido aos seus elementos formais. Uma vez que está constantemente mudando, ela é, por definição, um conceito aberto. O sentido continua sendo produzido pela linguagem em formas que nunca podem ser previstas de antemão e o seu deslizamento, como nós descrevemos acima, não pode ser contido” (p. 64). Diante dessa crítica tão contundente, portanto, como se sobressai o legado de Saussure? O modo pelo qual ele deu atenção, pioneiramente, ao processo como o significante (código de linguagens) associa significados (conceitos mentais) produz signos linguísticos que se traduzem em sentidos referentes ao “mundo real”.

3. Da linguagem à cultura: da linguística à semiótica

O legado de Saussure é justamente o responsável pela fundação da semiótica. Matéria extremamente comum (e temida) nos cursos de Publicidade e Propaganda, continua tão relevante talvez por estarmos vivendo cada vez mais numa sociedade hiper-visual. Nessa terceira parte do texto, Hall apresenta – sem entrar em muitos detalhes, por estar menos interessado na poética e mais interessado nos efeitos de sentido – como podemos compreender a disciplina. Para aproximar o leitor do conteúdo, utiliza dois exemplos simples que explicam bem os conceitos: a linguagem da moda e o mito de Roland Barthes – o primeiro, num localizado principalmente num contexto da sociedade do consumo; e, o segundo, político-cultural.

Na abordagem semiótica, não apenas palavras e imagens, mas os próprios objetos podem funcionar como significantes na produção do sentido. Roupas, por exemplo, podem ter uma função física simples – cobrir e proteger o corpo do clima. Contudo, também se apresentam como signos. Elas constroem significados e carregam uma mensagem (p.68).

Ao abordar a “linguagem da moda”, é importante ter em mente que ele se refere a todo o espectro cultural de como nós, em sociedade, compreendemos nosso vestuário – não se trata apenas do mercado da moda. Lembrando que os signos são os produtos da junção de significantes com significados, ele aponta que “o código da moda nas culturas consumidoras ocidentais […] correlacionam tipos ou combinações particulares de roupas com certos conceitos”, denotando às roupas categorias de elegância, formalidade, casualidade, etc. Logo, as roupas são significantes que, convertidas em signos, podem ser lidos como uma linguagem – e, no contexto da moda, “são arranjados em certa sequência, em determinadas relações uns com os outros” (p. 69-70).

Talvez fique ainda mais fácil de entender se levarmos em consideração os vestidos de casamento. Todo o ritual em torno do casamento é extremamente simbólico, mas façamos um recorte apenas na vestimenta. Na prática, a roupa que a mulher usa é apenas um vestido de coloração branca. Essa interpretação Hall explica como denotativa, “o nível simples, básico, descritivo, em que o consenso é difundido e a maioria das pessoas concordaria no significado”. No entanto, ele é branco por um motivo: carrega um sentimento de pureza, angelical, etc. À nossa primeira leitura (um vestido branco), acrescenta-se um sentido mais amplo: “[A linguagem da moda] os conecta a sentidos e temas mais abrangentes, ligando-os ao que nós chamaremos de campos semânticos mais vastos de nossa cultura” (p. 71).

O argumento fundamental por trás da abordagem semiótica é que, uma vez que todos os objetos culturais expressam sentido, e todas as práticas culturais dependem do sentido, eles devem fazer uso dos signos; e na medida em que fazem, devem funcionar como a linguagem funciona e ser suscetíveis a uma análise que, basicamente, faz uso dos conceitos linguísticos de Saussure (ou seja, a distinção entre significante/significado e langue/parole, sua ideia de códigos e estruturas subjacentes e a natureza arbitrária do signo) (p. 67).

O segundo exemplo que Hall utiliza para explicar a semiótica provavelmente já é de conhecimento a qualquer pessoa que teve uma aula sequer de semiótica (que não foi o meu caso): o mito de Barthes. Num dos ensaios mais famosos do linguista, ele escreve sobre uma capa de revista francesa a qual foi apresentado, que continha um adolescente negro fazendo continência para a bandeira francesa (à direita). A primeira interpretação que fazemos, denotativa, é justamente esta que escrevi – no entanto, semioticamente, é possível (e compreensível) fazer uma leitura muito mais densa do que vemos na capa da revista, conhecendo o histórico de colonização dos povos africanos – também em grande parte – pela França.

“O primeiro significado completo funciona como significante no segundo estágio do processo de representação e, quando ligado a um tema mais amplo pelo leitor, produz uma segunda mensagem, ou significado, mais elaborada e ideologicamente enquadrada”, explica Hall. Ou seja, é o primeiro significado (o signo de uma pessoa, um jovem negro, na capa de uma revista francesa, com roupas militares), que fundamenta a segunda interpretação – o militarismo/colonialismo francês sob povos africanos. “Barthes dá a esse segundo conceito ou tema um nome: ele o chama de ‘uma mistura a propósito do ‘imperialismo francês’ e do ‘militarismo’. Isto, diz ele, adiciona uma mensagem sobre o colonialismo francês e seus fiéis soldados filhos negros. Barthes chama esse segundo nível de significação de mito” (p. 72-73).

Seja lá o que pense sobre a “mensagem” real que Barthes ressalta, para uma análise semiótica ideal você deve ser capaz de delinear precisamente os diferentes passos pelos quais esse sentido mais amplo foi produzido. Barthes argumenta que, aqui, a representação acontece por dois processos independentes, porém ligados. No primeiro, os significantes (os elementos da imagem) e os significados (os conceitos – soldado, bandeira e assim por diante) se unem para formar um signo com uma simples mensagem denotada: um soldado negro está saudando a bandeira francesa. Em um segundo estágio, essa mensagem, ou signo completo, é ligada a outro conjunto de significados – um conteúdo amplo e ideológico sobre o colonialismo francês (p. 73).

4. Discurso, poder e o sujeito

Embora a semiótica tenha sido – e continue sendo – extremamente importante, o sentido jamais pode ser fixado, ou seja “interpretações nunca produzem um momento final de absoluta verdade”. Hall recorre mais uma vez a Derrida para argumentar que a diferença “nunca pode ser totalmente capturada por um sistema binário”, o que faz com que “qualquer noção de sentido final [seja] sempre infinitamente descartada, adiada” (p. 77). É aqui que entra, portanto, Michel Foucault, um para pensarmos a representação sob outra perspectiva para além do seu caráter poético – “sublinhando três de suas principais ideias: seu conceito de discurso, o problema do poder e conhecimento, a questão do sujeito” (p. 79).

Na abordagem semiótica, a representação foi entendida com base na forma como as palavras funcionam como signos dentro da linguagem. Contudo, em primeiro lugar temos que, em uma cultura, o sentido frequentemente depende de unidades maiores de análise […]. A semiótica parecia confinar o processo de representação à linguagem, e tratá-la como um sistema fechado, bastante estático. Desenvolvimentos posteriores se tornaram mais preocupados com a representação como uma fonte para a produção do entendimento social – um sistema mais aberto, conectado de maneira mais íntima às práticas sociais e às questões de poder. […] Mesmo que a linguagem, de algum jeito, ‘fale sobre nós’ (como Saussure tendia a argumentar), também é importante notar que em certos momentos históricos algumas pessoas têm mais poder para falar sobre determinados assuntos do que outros […]. Modelos de representação, argumentaram esses críticos, devem focar nesses aspectos mais amplos de conhecimento e poder (p. 77-78).

Uma das mudanças mais significativas (e simbólicas, de certa forma) que Foucault traz, no contexto da representação, é a troca do termo “linguagem” para o termo “discurso”. Pode parecer algo simples, mas é bastante valioso no pensamento do filósofo: “o que interessava a ele eram as regras e práticas que produziam pronunciamentos com sentido e os discursos regulados em diferentes períodos históricos” (p. 80). Ou seja, para ele, a produção do sentido pela linguagem – enquanto discurso“produz os objetos do nosso conhecimento, governa a forma com que o assunto pode ser significativamente falado e debatido, e também influencia como ideias são postas em prática e usadas para regular a conduta dos outros” (p. 80).

Já fica explícito aqui como – sob qual perspectiva – o autor pretende trabalhar representação, a partir do conceito de discurso, levando em consideração normas de conduta e campos institucionais da sociedade: “essa ideia de que coisas e ações físicas existem, mas somente ganham sentido e se tornam objetos de conhecimento dentro do discurso está no coração da teoria construtivista sobre o sentido e a representação”. Pode parecer confuso, mas o que ele quer dizer é que, no jogo do sentido (que é o mesmo da cultura e da representação), as coisas só existem a partir do discurso. Ou seja, “é o discurso – não as coisas por elas mesmas – que produz o conhecimento” (p. 83).

A ideia de que ‘o discurso produz os objetos do conhecimento’ e de que nada que tem sentido existe fora dele é, à primeira vista, uma proposição desconcertante, que parece correr contra o cerne do pensamento comum. […] O que realmente argumenta é que ‘nada tem nenhum sentido fora do discurso’ (Foucault, 2012). Como Laclau e Mouffe colocaram, ‘nós usamos [o termo discurso] para enfatizar o fato de que toda configuração social tem sentido’ (1990: 100). O conceito de discurso não é sobre se as coisas existem, mas sobre de onde vem o sentido das coisas (p. 81).

De certo modo, poderia-se dizer que Foucault historiciza a linguagem, elevando-a ao discurso e complexificando-a quanto à produção de conhecimento e ao regime da verdade (em comparação à “não-historicidade” da semiótica). “Ele se concentrou na relação entre conhecimento e poder, e em como este funcionava dentro do que o filósofo chamou de aparato institucional e suas tecnologias (técnicas)”, explica Hall. Ao enxergar “o conhecimento como inexoravelmente envolvido em relações de poder porque este sempre é aplicado à regulação da conduta social na prática (ou seja, a ‘corpo’ particulares)”, marcou um desenvolvimento significativo na abordagem construtivista recuperando “a representação das garras de uma teoria puramente formal e deu a ela um contexto operacional histórico, prático e ‘global'” (p. 85).

A perspectiva discursiva em sua contextualização histórica se assemelha à argumentação marxista na qual “as ideias refletiam a base econômica da sociedade e, então, as ‘ideias em vigor’ eram aquelas da classe dominante, que governa a economia capitalista; assim, o pensamento correspondia aos interesses dos dominadores”. Hall explica, entretanto, que Foucault se aproximava mais ao pensamento de Gramsci, uma vez que a teoria marxista clássica de ideologia “tendia a reduzir toda a relação entre conhecimento e poder à questão do poder da classe e seus interesses”. Para eles, “grupos sociais particulares estão em conflito de diversas formas, incluindo ideologicamente, para ganhar o consenso dos outros grupos e alcançar um tipo de ascendência sobre eles, na prática e no pensamento” (p. 87).

A noção de discurso em Foucault está muito associada também às suas outras concepções de poder, conhecimento e verdade, por isso o livro também aborda – tímida, mas suficientemente – essas outras questões. Hall explica que o conhecimento é uma forma de poder circunstancial, cuja efetividade é mais importante do que sua veracidade. “O conhecimento não opera no vácuo. Ele é posto ao trabalho, por certas tecnologias e estratégias de aplicação, em situações específicas, contextos históricos e regimes institucionais” (p. 89), explica. Foucault, para quem não conhece, desenvolvia trabalhos em torno de instituições onde o poder era uma questão central, como escola, prisões e hospícios, por isso sua preocupação com “regimes de verdade”.

A verdade não existe fora do poder ou sem poder (…) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele devido a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 1984: 10)

Além de historicizar a linguagem e, consequentemente, pensar o discurso enquanto disputa de sentido, Foucault também foi responsável por descentralizar o poder – muitas vezes interpretado de forma maniqueísta. “Relações de poder permeiam todos os níveis da existência social e podem, portanto, ser encontradas operando em todos os campos da vida social – nas esferas privadas da família e da sexualidade, tanto quanto nas esferas públicas da política, da economia e das leis”, explica Hall, parafraseando o autor. Para ele(s), o poder circula – é implantado e exercido – como em uma rede que penetra todo o corpo social, “atravessando e produzindo coisas, induzindo ao prazer, a formas do conhecimento, produzindo discurso” (p. 90).

É nesse contexto que Foucault conceitua “rituais meticulosos” ou a “microfísica do poder” (este último bastante popular até para além da academia), que seria basicamente – muito basicamente! – “os vários circuitos localizados, táticas, mecanismos e efeitos pelos quais o poder circula”. Ou seja, ele redireciona a fixação pela estrutura (simbolicamente, na figura do Estado, da lei, da classe privilegiada, etc.) detentora de grandes poderes para um olhar muito mais complexo. Essas relações de poder “conectam a maneira pela qual o poder opera de fato, do chão às grandes pirâmides de poder, por meio do que ele chama de movimento capilar (vasos capilares são aqueles que ajudam a troca de oxigênio entre sangue e os tecidos de nosso corpo)” (p. 90), explica Hall.

Essa perspectiva “revolucionária” de Foucault provocou uma ruptura muito representativa. Marxistas clássicos acusam-no de ser muito “pós-moderno”, responsabilizando-o pela invisibilização da consciência de classe. Essa é uma leitura rasa (e quase rancorosa, eu acrescentaria) do argumento do filósofo, conforme Hall também se propõe a explicar: “[não é que] o poder nesses níveis mais baixos meramente reflete ou ‘reproduz, no nível de indivíduos, corpos, gestos e comportamentos, a forma geral da lei ou do governo’ (Foucault, 2015)”, mas porque essa abordagem “‘enraíza [o poder] nas formas de comportamento, nos corpos e nas relações locais de poder que não deveriam, de forma alguma, ser vistas como uma simples projeção de um poder central’ (Foucault, 1980: 201)” (p. 91).

Embora sua obra seja claramente produzida na esteira da ‘virada da linguagem’ e profundamente influenciada por ela, um marco da abordagem construtivista da representação, a definição de discurso estabelecida por Foucault é bem mais ampla que a de linguagem. Ela inclui vários outros elementos da prática e da regulação institucional que a abordagem de Saussure, com seu foco linguístico, excluiu. Foucault é sempre mais historicizante, considerando formas de poder/conhecimento como enraizadas em contextos e histórias particulares. Acima de tudo, para Foucault, a produção do conhecimento é sempre atravessada por questões de poder e do corpo; e isso expande enormemente o escopo do que está envolvido na representação (p. 93).

5. Onde está o “sujeito”?

O último capítulo (antes do resumo) do texto aborda criticamente a posição do sujeito principalmente no pensamento de Foucault, já que Saussure se absteve de falar sobre os indivíduos – vale lembrar que o foco de sua “ciência” é a langue, não a parole. Hall traz que o filósofo trabalha a questão do sujeito em seus trabalhos mais avançados, ainda que de maneira a romper com uma ideia ilusória de sujeito totalmente dotado de consciência/núcleo de si mesmo – para ele, o sujeito é produzido (e só existe) no discurso. “É o discurso, não os sujeitos que o falam, que produz o conhecimento. Sujeitos podem produzir textos particulares, mas eles estão operando dentro dos limites da episteme, da formação discursiva, do regime da verdade, de uma cultura e período particulares” (p. 99), explica.

O ‘sujeito’ de Foucault parece ser produzido por meio do discurso em dois sentidos ou lugares diferentes. Primeiro, o próprio discurso produz ‘sujeitos’ – figuras que personificam formas particulares de conhecimento que o discurso produz. Esses sujeitos têm os atributos que poderíamos esperar, como definidos pelo discurso: o homem louco, a mulher histérica, o homossexual, o criminoso individualizado, e assim por diante. Essas figuras são específicas para regimes discursivos e períodos históricos determinados. O discurso também produz um lugar para o sujeito (ou seja, o leitor ou espectador, que também está ‘sujeito ao’ discurso), onde seus significados e entendimentos específicos fazem sentido. Não é inevitável, nesse sentido, que todos os indivíduos em um dado período se tornem sujeitos de um discurso em especial, portadores de seu poder/conhecimento. Mas para que eles – nós – assim façam/façamos, é preciso se/nos colocar na posição da qual o discurso faz mais sentido, virando então seus ‘sujeitos’ ao ‘sujeitar’ nós mesmos aos seus significados, poder e regulação. Todos os discursos, assim, constroem posições de sujeito, das quais, sozinhos, eles fazem sentido. (p. 100)

Para explicar a complexidade do sujeito (e da representação em sentido mais amplo) no pensamento de Foucault, Hall traz a discussão em torno da pintura Las Meninas, de Diego Velázquez – sobre a qual o filósofo disserta na sua obra As palavras e as coisas (1999). É uma obra bem complexa, que merece um tempo de deslumbramento para tentar entender o que está acontecendo. “A representação e o sujeito são as mensagens por trás da pintura – o que ela quer dizer, seu subtexto […] É tão construída em torno daquilo que você não pode ver, quanto daquilo que pode observar”, explica. Segundo Foucault, o sentido da imagem é produzido “por meio dessa complexa interação entre presença (o que você vê, o visível) e ausência (o que você não pode ver, o que está deslocado no quadro)” (p. 105).

É uma questão de perspectiva: os autores apontam que há dois “centros” na pintura – a menina (ao meio) e o casal real (que não aparece explicitamente na obra a não ser no reflexo do espelho, mas cuja encenação nos permite concluir sua presença). Esse jogo de atenção suspensa sempre adia o sentido final, uma vez que “nós tomamos as posições indicadas pelo discurso, nos identificamos com elas, sujeitamos nós mesmos aos seus sentidos e nos tornamos ‘sujeitos'” (p. 106). A visão radical de Foucault argumenta que é o sujeito que sempre há de completar o sentido, pois “o discurso produz uma posição de sujeito para o espectador-sujeito”.

Para a pintura funcionar, o espectador, quem quer que ele ou ela seja, deve primeiro se sujeitar ao discurso dela e, dessa forma, tornar-se o espectador ideal da pintura, o produtor de seus sentidos – seu ‘sujeito’. Isso é o que significa quando é dito que o discurso constrói o espectador como um sujeito – pelo que queremos dizer que ele constrói um lugar para o sujeito-espectador que está olhando e produzindo um sentido para a cena. […] A representação, portanto, ocorre a partir de pelo menos três posições na pintura. A primeira somos todos nós, o espectador, cujo “olhar” coloca juntos e unifica os diferentes elementos e relações na imagem em um sentido geral. Esse sujeito deve estar lá para a pintura fazer sentido, mas ele/ela não está representado na tela. Em seguida, há o pintor que retratou a cena. Ele está “presente” em dois lugares de uma vez, uma vez que deve ter sentado onde nós estamos agora para pintar mas, então, colocou-se (representou a si próprio na) na imagem olhando para trás, em direção àquele ponto de vista onde nós, espectadores, tomamos seu lugar (p. 107).

6. Conclusão: representação, sentido e linguagem reconsiderados

Na conclusão do texto, Hall faz um resum(ã)o de tudo que foi apresentado/discutido, começando pela definição mais simples de representação: “trata-se do processo pelo qual membros de uma cultura usam a linguagem (amplamente definida como qualquer sistema que emprega signos, qualquer sistema significante) para produzir sentido”. Essa concepção já descarta, de certa forma, a teoria reflexiva, pois somos nós que atribuímos sentido às coisas. E se o sentido é atribuído pela sociedade, conforme mudanças ocorrem, eles também mudarão: “uma ideia importante sobre representação é a aceitação de um grau de relativismo cultural entre uma e outra cultura, certa falta de equivalência e a necessidade de tradução quando nos movemos de um universo mental ou conceitual de uma cultura para outro” (p. 108).

Essa abordagem construtivista, defendida pelo autor, aponta três “ordens” diferentes que envolvem o jogo da representação: o mundo das coisas/pessoas/eventos/experiências (o mundo físico); o mundo conceitual (nossos mapas mentais); e os signos, arranjados nas linguagens, que comunicam esses conceitos. A construção de sentido através da representação só se faz possível através do ciclo de codificação e decodificação dos significados, no entanto, conforme chama a atenção: “por estarem os sentidos sempre mudando e nos escapando, os códigos operam mais como convenções sociais do que como leis fixas ou regras inquebráveis”, ou seja, os códigos – e os sentidos – de uma cultura estão sempre em constante disputa.

“Nós olhamos para duas versões do construtivismo: aquela que se concentrou em como linguagem e significação (o uso de signos na linguagem) funcionam para produzir sentidos, que depois de Saussure e Barthes nós chamamos de semiótica; e aquela, seguindo Foucault, que se concentrou em como o discurso e as práticas discursivas produzem conhecimento”, relembra Hall. A semiótica destaca a importância do significante e do significado (langue e parole), demarcando sobretudo a diferença e estabelecendo oposições binárias para a produção do sentido. Já a abordagem discursiva leva mais em consideração o poder e o conhecimento em voga, que atuam sob regimes de verdade e cujo discurso produz os sujeitos definindo também suas posições (de onde o conhecimento procede).

Hall finaliza o texto ratificando que não defende uma teoria em subjugamento da outra, reiterando que tanto a semiótica de Saussure e Barthes têm muito a colaborar assim como os pensamentos de Foucault também são extremamente importantes para o contexto da representação. “O que nós oferecemos aqui é, esperamos, um balanço relativamente claro, embora experimental, de um conjunto de ideias complexas de um projeto não acabado” (p. 111), explica. O segundo texto da obra, “O espetáculo do outro”, é onde ele promete aplicar tudo que foi passado até aqui de maneira prática, colocando em prática a teoria mas não tomando-as como completamente verdadeiras.

O que faz ser nordestino no Facebook?

No dia 19 de dezembro de 2017, depois de quatro longos anos, apresentei no bloco A do campus Gragoatá da Universidade Federal Fluminense o meu trabalho de conclusão de curso na graduação em Estudos de Mídia. Com um misto de imensa gratidão e desconcertante despedida, defendi a minha monografia, “O que fazer ser Nordestino no Facebook: Escolhas da construção identitária nos sites de redes sociais”, frente à melhor banca que poderia ter escolhido para fechar esse ciclo com chave de ouro.

Quem me acompanha no Twitter sabe que não foi uma jornada fácil – e nem rápida, já que comecei a confabular a ideia para esse trabalho ainda no primeiro semestre de 2016. Com alguns tropeços (burocráticos e da vida mesmo) no caminho, a verdade é que eu só sentei para realmente escrever os capítulos no segundo semestre de 2017 – escrevendo o segundo e terceiro capítulo só em novembro, ou seja, em apenas algumas semanas. A minha sorte é que, embora tenha deixado a produção para a última hora, já tinha lido e catalogado a grande maioria das minhas referências meses antes.

Como comentei no Twitter, o sufoco para finalizar esse trabalho não se deu por falta de aptidão pelo tema, mas apenas pela irresponsabilidade cronológica das minhas obrigações. Garanto, no entanto, que foi o meu entusiasmo pelo tema – e pela ideia em geral – que me forneceu o combustível necessário para escrever mais de 60 páginas apenas em duas/três semanas. Poder levantar a discussão sobre identidade, cultura, representação, Nordeste, autoapresentação, performance e sites de redes sociais em um único trabalho fez com que a escrita saísse com suor, mas com um imenso sorriso no rosto.

Embora o tema – ou melhor, os temas – possam parecer óbvios para a minha pessoa, não foi fácil chegar nele(s). No quinto período, quando fiz a disciplina Metodologia de Pesquisa, foi realmente quando tive que colocar no papel as ideias que tive durante os três anos de graduação para elaborar um anteprojeto. Revirei minhas anotações, as disciplinas que fiz, tweets que publiquei… E cheguei à conclusão que queria falar de identidade e sites de redes sociais, só faltava um meio termo. Felizmente no mesmo período tinha feito um trabalho sobre a Brasileiríssimos que me orientou por onde deveria seguir, até que cheguei à Nordestinos.

A ideia inicial (do anteprojeto) era fazer uma análise da representação do Nordeste nessa página, mas descartei eventualmente essa proposta porque queria focar mais em identidade e menos em representação/análise do discurso (embora seja tudo muito imbricado). Isso porque era uma questão que me atravessava diretamente (saí de Aracaju com 17 anos para São Paulo e depois Rio de Janeiro, então a identidade nordestina era “percebida” pelos outros de forma constante na minha vida no Sudeste) e também devido à minha afiliação teórica com a discussão sobre identidade – e não tanto com análise do discurso (muito relevante para avaliar o conteúdo de uma página), por exemplo.

Antes de começar a escrever o trabalho, meu orientador – Prof. Dr. Marildo Nercolini – orientou que eu produzisse, sem me preocupar com a burocracia das referências, um texto sobre o que eu tinha em mente. Deveria ter somente duas páginas, mas acabei escrevendo sete. Com o entusiasmo, cheguei a produzir um artigo para o XIII ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, que infelizmente não foi aceito. Fiquei bastante abatido na época, porque era uma das minhas metas de 2017, mas concordei com todos os apontamentos do avaliador. Embora tivesse uma boa base teórica, partiu de um texto na primeira pessoa e faltou uma análise mais densa.

Confesso que me desanimou um pouco, e talvez tenha sido esse o motivo pelo qual demorei tanto para começar a escrever o TCC. Fui negado em maio, escrevi o primeiro capítulo em julho e fui revisar só em setembro. Felizmente meu orientador não me abandou em nenhum momento e me deu todo o apoio necessário para que eu terminasse o trabalho em tempo recorde. E, finalmente, depois de tantos altos e baixos, consegui produzir algo do qual me orgulho muito e fiquei bastante feliz com o resultado. Independente da avaliação da banca, estava satisfeito com o meu trabalho. Sem mais delongas, portanto, compartilho aqui – para quem tiver interesse – a minha monografia:

Talvez eu deva começar explicando pelo título, que não foi bem aceito pela banca. A minha ideia inicial era seguir pelo óbvio “A identidade nordestina no Facebook”, mas não consegui encontrar um subtítulo que não repetisse a mesma ideia do título, complementando-o – como deveria ser. Foi somente nos últimos dias de produção que me veio o título final, no qual a proposta é fazer uma referência direta ao livro “O que fazer ser nordestino: identidades sociais, interesses e o ‘escândalo’ Erundina”, escrito por Maura Penna na década de 90 e uma das principais referências bibliográficas no meu trabalho. Reconheço, entretanto, que pode soar estranho para quem não conhece a obra – a grande maioria das pessoas.

Fora isso, o trabalho foi muito bem aceito pela banca que apontou apenas algumas (várias, na verdade: eu falei por 20 minutos e elas falaram por 2/3 horas) considerações de correção e/ou melhorias. Em suma, a proposta do TCC era responder à pergunta: por que as pessoas optam por acionar a identidade nordestina nos sites de redes sociais? Para isso, estruturei da seguinte forma: no primeiro capítulo, fiz um levantamento histórico-bibliográfico de como “surge” o Nordeste e o nordestino; em seguida, dedico todo o segundo capítulo à discussão sobre identidade, sob diferentes perspectivas: nacionais, regionais, fragmentadas e, finalmente, nos sites de redes sociais; finalizo o trabalho com as respostas ao questionário que apliquei com usuários do Nordeste.

Fiquei muito feliz que, nesta última etapa, encontrei uma solução metodológica utilizando a análise de redes. Explico: a minha pergunta principal parte do pressuposto de que há pessoas que acionam essa identidade nos sites de redes sociais, então, como posso encontrá-las? Poderia optar por simplesmente selecionar alguns amigos meus e pedir que respondessem ao questionário, mas achei que a análise de redes me ofereceria um critério “científico” muito mais válido. Aquele trabalho que publiquei aqui no post alguns meses atrás, do mapeamento do Nordeste no Facebook, portanto, serviu como base para que eu encontrasse as páginas mais “influentes” no contexto da minha pesquisa – a identidade nordestina. Com essa lista em mãos, utilizei como requisito básico para encontrar usuários aptos a responder o questionário.

Enfim, consegui colocar identidade, cultura, representação, Nordeste, sites de redes sociais, autoapresentação e análise de redes (que por tanto tempo fugi) num mesmo trabalho – e, portanto, repito: não poderia estar mais feliz com o resultado. A versão que trago acima já é corrigida após os apontamentos da banca, na medida do possível. Algumas considerações mais complexas (e foram muitas, o que me deixou muito animado) eu anotei como ideia para levar ao mestrado, a nova meta de 2018. Acho importante reconhecer, inclusive, uma limitação do projeto: o questionário em vez da entrevista, o que “limitou” as respostas dos informantes para averiguar com mais afinco a especificidade dessa construção identitária nos sites de redes sociais, como apontou Prof. Dra. Beatriz Polivanov.

Para finalizar, reconheço que não apenas a questão sob a viés dos sites de redes sociais pode ser um campo muito interessante a ser explorado num programa de pós-graduação em comunicação, mas diversas outras questões como estigma, preconceito, estereótipo, disputa, orgulho e diáspora. Dentre as falas da banca, uma das que mais me marcou foi da Prof. Dra. Ana Lúcia Enne: é difícil deslocar a identidade quando se ancora na natureza (como álibi climático comumente associado ao Norte), pois o significante é muito poderoso, o que dificulta destruir o estereótipo. Mais difícil do que mexer no significado, portanto, é disputar o significante. Sobre isso, compartilho o que escrevi nas considerações finais após essa consideração na defesa:

Nascido em Salvador, parti para Aracaju com apenas 5 anos e deixei a capital somente aos 17, quando fui para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro fazer faculdade. Como qualquer pessoa que sai do Nordeste em diração ao Sul, tive que lidar em algum (ou alguns momentos) com a diferenciação do “outro”, geralmente facilitada pelo conflito de sotaques. Desde então, a classificação “nordestino” atribuída a mim – e a outros milhões – sempre foi uma questão que me intrigava. Com as leituras que fiz no curso, a reflexão de anos ficou ainda mais complexa e, de certa forma, até mais complicada.

Essa dificuldade de lidar com a questão da autoatribuição nordestina pairou toda a escrita deste trabalho, uma vez que as reflexões sobre o “ser nordestino” após a minha migração já trazia uma leitura da identidade nordestina como representada nas obras de arte, como uma condição de sofrimento e adversidades. Se o texto parece impessoal, é somente devido a essa angústia que ainda me agonia. Ao tentar fugir do estereótipo, acabo negando-o e, ao mesmo tempo, legitimando-o. Afinal, “sou” nordestino, mas nunca passei por dificuldades (estruturais) na vida. Será que, então, poderia me identificar enquanto nordestino? Depois de tudo isso, acredito que sim.

Cultura e representação, de Stuart Hall – Introdução (e a Skol, hein?)

Se você é um leitor minimamente assíduo deste blog (ou me segue no Twitter), deve estar ciente que este é o ano em que faço meu trabalho de conclusão do curso de Estudos de Mídia, da UFF – cujo assunto perpassa temáticas como identidade, representação e sites de redes sociais. Para que eu possa desenvolver um trabalho de qualidade, escolhi – além de diversos artigos – três livros (talvez quatro) que devem me ajudar a pensar melhor como por em prática todas as minhas ideias. E, como faço constantemente neste blog, a ideia é compartilhar um pouco do conhecimento adquirido e possivelmente trazer alguns desses temas para debate.

Para esse primeiro post, compartilho as ideias de Stuart Hall no livro “Cultura e Representação”. Este, na verdade, é apenas o primeiro texto de três que pretendo compartilhar sobre o livro, que é dividido em três “partes”: apresentação + introdução, capítulo 1 (“O papel da representação”) e capítulo 2 (“O espetáculo do ‘Outro'”). Hoje, compartilho aqui algumas ideias retiradas da primeira parte, apresentação e introdução, com o intuito de fazer uma relação com o debate sobre o novo posicionamento da Skol. Confesso que estava em dúvida se teria conteúdo suficiente para publicar apenas a primeira parte (tendo em mente que esta são cerca de 30 páginas e, as outras duas, mais de 100 cada), mas encontrei nesse debate uma forma de utilizar de forma prática alguns dos conceitos. Comecemos, então, por eles.

Antes, no entanto, conheçamos o autor: Stuart Hall foi professor na Universidade de Birmingham, na Inglaterra, com trabalhos importantíssimos para os estudos culturais a partir do fim dos anos 60. Foi responsável por analisar – sob uma viés diferente da semiótica – os efeitos da mídia nas sociedades, constituindo o termo “politics of the image” (política da imagem, em tradução livre), que seriam todos os embates, questionamentos e disputas a qual uma imagem representa. Para ele, “a mídia produz amplos efeitos na sociedade, relacionados a um determinado tipo de poder que se exerce no processo de administração da visibilidade pública midiático-imagética”. Ele estava interessado em analisar, portanto, não exatamente os “efeitos de sentido” do discurso midiático/imagético, mas suas consequências na sociedade.

“Como um construtivista, Stuart Hall viu o ‘real’ como uma ‘construção social’, amplamente marcada pela mídia e suas imagens nas sociedades contemporâneas. Como um teórico mais crítico, procurou, por meio de Foucault, entender como o poder se insere, se coloca ou que papel exerce nesse processo. […] Hall apresenta uma noção de representação como um ato criativo, que se refere ao que as pessoas pensam sobre o mundo, sobre o que ‘são’ nesse mundo e que mundo é esse, sobre a qual as pessoas estão se referindo, transformando essas ‘representações’ em objeto de análise crítica e científica do ‘real’.”

Arthur Ituassu, Professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio na Apresentação

Nesse contexto, conforme veremos mais adiante, Hall enxergava a representação com um teor político muito relevante: “em seu ato de representar, constitui não somente a identidade, mas a própria qualidade existencial, ou ‘realidade’ (ontologia), da comunidade política, sendo representada em seus valores, interesses, posicionamentos, prioridades, com seus membros (e não membros), suas regras e instituições”. Ituassu, professor responsável pela apresentação (ou prefácio da obra), sintetiza bem ao declarar que, diante esse cenário de representação como política: “não ter voz ou não se ver representado pode significar nada menos que opressão existencial” – a partir disso, com ou sem teoria, já é possível compreender mais ou menos sob qual argumento o debate da representatividade se alicerça atualmente.

Tendo conhecido minimamente o autor e um pouco dos seus pensamentos, podemos partir para o capítulo de introdução. Nele, Hall apresenta ao leitor suas principais ideias no que tange, principalmente, à noção de cultura – o que, em termos simples e em colocação própria, diz respeito a “significados compartilhados”. Nesse contexto, e conforme vai aprofundar a partir das ideias de Saussure nos próximos capítulos, a linguagem possui um papel fundamental (de “repositório-chave de valores e significados culturais”): “nada mais é do que o meio privilegiado pelo qual ‘damos sentido’ às coisas, onde o significado é produzido e intercambiado. Significados só podem ser compartilhados pelo acesso comum à linguagem”. Em outras palavras:

“A linguagem é capaz de fazer isso porque ela opera como um sistema representacional. Na linguagem, fazemos uso de signos e símbolos – sejam eles sonoros, escritos, imagens eletrônicas, notas musicais e até objetos – para significar ou representar para outros indivíduos nossos conceitos, ideias e sentimentos. A linguagem é um dos ‘meios’ através do qual pensamentos, ideias e sentimentos são representados numa cultura. A representação pela linguagem é, portanto, essencial aos processos pelos quais os significados são produzidos.”
Stuart Hall

Aqui, é imprescindível ter em mente que a cultura se faz (e se desfaz!) na linguagem. Não no sentido mais específico da linguagem, relacionado à fala e à língua oral ou escrita, mas no sentido mais amplo, que diz respeito ao “compartilhamento de significados” de um grupo ou sociedade. Hall ratifica que esse não é um indicativo de unidade, pelo contrário: é nesse cenário onde a pluralidade de sentidos torna conflituosa a relação entre os indivíduos, que atua tanto num nível micro quanto num nível macro. Ele explica que: “Acima de tudo, os significados culturais não estão somente na nossa cabeça – eles organizam e regulam práticas sociais, influenciam nossa conduta e consequentemente geram efeitos reais e práticos.”

“Membros da mesma cultura compartilham conjuntos de conceitos, imagens e ideias que lhes permitem sentir, refletir e, portanto, interpretar o mundo de forma semelhante. Eles devem compartilhar, em um sentido mais geral, os mesmos ‘códigos culturais’. Deste modo, pensar e sentir são em si mesmos ‘sistemas de representação’, nos quais nossos conceitos, imagens e emoções ‘dão sentido a’ ou representam – em nossa vida mental – objetos que estão, ou podem estar, ‘lá fora’ no mundo.”
Stuart Hall

É interessante fazer uma ponte da teoria construtivista com o que nós entendemos hoje como “ser desconstruído”. Embora essa noção não seja cotidianamente embasada na teoria, é evidentemente fundamentada no que estamos discutindo aqui: a não ser a própria natureza, tudo foi construído socialmente. De certa forma, a nossa própria interpretação da natureza é construção social. Hall explica que damos significados a objetos/pessoas/eventos “por meio de paradigmas de interpretação que levamos a eles”; em outra instância, “damos sentido às coisas pelo modo como as utilizamos ou as integramos em nossas práticas cotidianas”; e, por fim, “concedemos sentido às coisas pela maneira como as representamos”. Desconstruir, portanto, é questionar (e, preferencialmente, contestar) o modus operandi que nos foi programado.

“A cultura, podemos dizer, está envolvida em todas essas práticas que não são geneticamente programadas em nós […], mas que carregam sentido e valores para nós, que precisam ser significativamente interpretadas por outros, ou que dependem do sentido para seu efetivo funcionamento. […] Nesse sentido, o estudo da cultura ressalta o papel fundamental do domínio simbólico no centro da vida em sociedade.”
Stuart Hall

O autor atenta também para a relação entre sentido e identidade, sendo esse o responsável pelo cultivo da nossa noção do último. Uma vez que “o sentido é constantemente elaborado e compartilhado em cada interação pessoal e social da qual fazemos parte”, ele delimita as fronteiras sociais que estabelecemos: “se relaciona a questões sobre como a cultura é usada para restringir ou manter a identidade dentro do grupo e sobre a diferença entre grupos”. Talvez quem melhor explique essa questão – completamente influenciado por Hall – seja Tomaz Tadeu da Silva, em seu texto “A produção social da identidade e da diferença”, sobre o qual já falei um pouco em outro post. Para este texto, cabe direcionar nossa atenção ao que Hall entende como circuito cultural.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2016.

Para ele, a questão do sentido atravessa todas essas arenas institucionais do circuito cultural, mas é a linguagem – novamente, uma concepção mais ampla do termo – o “meio” privilegiado “através do qual o sentido se vê elaborado e perpassado”. É, portanto, uma prática significante que opera por meio de representação (sistemas de representação). “Essencialmente, podemos afirmar que essas práticas funcionam ‘como se fossem línguas’ não porque elas são escritas ou faladas (elas não são), mas sim porque todas se utilizam de algum componente para representar ou dar sentido àquilo que queremos dizer e para expressar ou transmitir um pensamento, um conceito, uma ideia, um sentimento”, explica. E complementa:

“Eles constroem significados e os transmitem. Eles significam, não possuem um sentido claro em si mesmos – ao contrário, eles são veículos ou meios que carregam sentido, pois funcionam como símbolos que representam ou conferem sentido (isto é, simbolizam) às ideias que desejamos transmitir. Para usar outra metáfora, eles operam como signos, que são representações de nossos conceitos, ideias e sentimentos que permitem aos outros ‘ler’, decodificar ou interpretar seus sentidos de maneira próxima à que fazemos.”
Stuart Hall

Retomando a atenção à imagem acima, percebemos como estão ligadas as questões mais amplas de representação e identidade (e, consequentemente, linguagem) com apropriações modernas dos nosso sistema sócio-econômico, de produção, regulação e consumo. Na leitura de Hall, compreendida como “abordagem social construtivista” ou “construtivismo social”, o sentido é uma produção social (até mesmo de interpretação). Daí, a representação serve como base constitutiva das coisas. Nisso, “a cultura é definida como um processo original e igualmente constitutivo, tão fundamental quanto a base econômica ou material para a configuração de sujeitos sociais e acontecimentos históricos – e não uma mera reflexão sobre a realidade depois do acontecimento.”

Ao final do texto, o autor introduz o conceito de discurso que será retomado com frequência nos dois capítulos seguintes. Compreende como “maneiras de se referir a um determinado tópico da prática ou sobre ele construir conhecimento: um conjunto (ou constituição) de ideias, imagens e práticas que suscitam variedades no falar, formas de conhecimento e condutas relacionadas a um tema particular, atividade social ou lugar institucional na sociedade”. Hall enxerga nas formações discursivas o aspecto “político” da linguagem, ou seja, são elas quem definem: “o que é ou não adequado em nosso enunciado sobre determinado tema ou área de atividade social”; “que tipo de conhecimento é considerado útil”; “que gênero de indivíduos ou ‘sujeitos’ personificam essas características”. Assim, explica, “‘discursiva’ se tornou o termo geral utilizado para fazer referência a qualquer abordagem em que o sentido, a representação e a cultura são elementos considerados constitutivos”.

“Uma diferença fundamental é que a abordagem semiótica se concentra em como a representação e a linguagem produzem sentido – o que tem sido chamado de ‘poética’ -, enquanto a abordagem discursiva se concentra mais nos efeitos e consequências da representação – isto é, sua política. […] [Examina] como o conhecimento elaborado por determinado discurso se relaciona com o poder, regula condutas, inventa ou constrói identidades e subjetividades e define o modo pelo qual certos objetos são representados, concebidos, experimentados e analisados. A ênfase da abordagem discursiva recai invariavelmente sobre a especificidade histórica de uma forma particular ou de um ‘regime’ de representação, e não sobre a ‘linguagem’ enquanto tema mais geral. Isto é, seu foco incide sobre linguagens ou significados e de que maneira eles são utilizados em um dado período ou local, apontando para uma grande especificidade histórica – a maneira como práticas representacionais operam em situações históricas concretas.”
Stuart Hall

E o que isso tudo tem a ver com a Skol? É muito provável que você tenha se deparado, na internet, com uma tentativa de reposicionamento da marca. O primeiro contato que eu tive com essa “nova” realidade, se não me engano, foi quando vi o patrocínio que cedeu a uma festa Batekoo (um evento feito pelo e para o público negro) em Salvador, talvez no ano passado. Aliás, minto: lembro de ter achado curioso o clipe “Tombei”, de Karol Conká, sendo divulgado pelo canal Skol Music. A rapper, coincidentemente, também era a atração principal do evento que acontecia na capital baiana.

Acredito (sem fundamento ou pesquisa alguma, vale pontuar) que esse reposicionamento da Skol começou com o lançamento da Skol Beats, uma bebida que surgiu para bater de frente com a líder Sminorff Ice. Desde então, a marca tem tentado encontrar no público jovem (que supostamente é mais “pra frentex”) consumidores que tinham perdido tanto pela cerveja quanto pelo seu histórico de marketing – vale conferir o artigo “Onde está o sense? Uma análise semiótica da campanha Skol Beats Senses”, de Daniela Mokva e Ciro Gusatti. Este ano, com ações no carnaval e no Dia das Mulheres, a estratégia se intensificou ainda mais e, consequentemente, fomentou o debate sobre o reposicionamento da marca – agora, já de olho no seu principal produto.

O que acontece: a marca, desde a década de 60, tem um histórico absurdo de campanhas extremamente machistas – há, inclusive, extensa produção acadêmica sobre o assunto, principalmente a partir da leitura publicitária e semiótica. O debate, portanto, se fundamenta nessa tentativa de reposicionamento da marca. É possível “esquecer” ou apagar esse legado histórico? Devemos comemorar essa nova estratégia? Parabenizamos a marca? Será esse novo contexto suficiente ou responsável para lidar com todo um passado sombrio? O que muda, de fato, na sociedade? As respostas para essas perguntas podem (e até devem, baseado na sua posição de fala) variar. No entanto, a minha proposta aqui é, a partir do texto proferido, tentar dar conta de pelo menos parte desses embates.

Parto de um ponto comum a todos: marcas precisam vender. Tomando como pressuposto que a Skol, antes de adotar esse novo posicionamento, fez um amplo trabalho de pesquisa de negócios, social e cultural, acredito que a justificação mínima a ser considerada é: “conseguiremos vender (mais)?”. Por mais que nas agências e empresas exista publicitários socialmente conscientes, na hora da prestação de contas, é essa resposta que os diretores precisam ouvir para dar o aval. A empresa precisa vender. Se há, nas entrelinhas, um ponto socialmente positivo para isso, ótimo. Aliás, levando em consideração uma pesquisa sócio-cultural, a justificativa a ser trabalhada pode, sim, ter embasamento em causas sociais – o que é ótimo, e fruto de um movimento que parte das próprias pessoas.

Ainda assim, por mais que o objetivo principal seja vender e gerar lucro, é inegável o poder midiático (discursivo) que grandes empresas possuem. Afinal, foi a mesma empresa que criou uma narrativa degradante para as mulheres que agora está tentando mudar (bem devagar) esse cenário. Se foi considerado relevante a influência discursiva de décadas, também deve ser considerado atualmente. Trazendo Hall para a discussão, uma vez que a cultura se faz no atravessamento da representação, linguagem e identidade, não há como negar a importância de um aparato midiático como o da publicidade na sociedade em que vivemos – aliás, nos próximos capítulos, ele traz exemplos de vários produtos midiáticos, inclusive publicitários.

Ou seja, é, sim, importante que as marcas – mesmo por motivos financeiros – optem por alterar seu discurso. A partir do momento que criamos nossa interpretação do mundo a partir de signos e símbolos discursivos (nesse caso específico, a objetificação das mulheres), é imprescindível que celebremos – mesmo que criteriosamente – uma narrativa que, como o próprio autor aponta, se materializa da maior forma possível (casos de agressão explícitos). O discurso se concretiza nas ações. Pelo menos nesse ponto, temos, acredito eu, sim, motivos para “comemorar”. No entanto, a nossa celebração não deve ser para com a marca, mas para com o movimento. Se a Skol mudou, é porque está ouvindo. A vitória é delas.

O que aprendi no curso Etnografia em Mídias Sociais, do IBPAD

Na primeira edição carioca do curso de Etnografia em Mídias Sociais, a profª Débora Zanini apresenta vantagens e desvantagens do método. Fonte: Facebook IBPAD
Na primeira edição carioca do curso de Etnografia em Mídias Sociais, a profª Débora Zanini apresenta vantagens e desvantagens do método. Fonte: Facebook IBPAD

Há pouco mais de um mês tive a honra de ser convidado para participar da primeira turma do curso Etnografia em Mídias Sociais do Instituto Brasileiro de Análise e Pesquisa de Dados (IBPAD) realizada no Rio de Janeiro. Ministrado por Débora Zanini e Tarcízio Silva, três turmas já foram formadas em São Paulo e em Brasília, cujo feedback positivo dos alunos instigou a criação de uma versão mais “avançada” do curso com uma carga-horária de 21 horas – até o momento, apenas para os paulistas, infelizmente. A primeira edição carioca aconteceu no dia 4 de junho e reuniu um público bem diverso, seja em idade, em interesses pessoais/de pesquisa e/ou em cargo profissional.

Eu estava muito ansioso para essa oportunidade porque o curso alinha os dois campos que eu, academicamente, mais me identifico: mídias sociais e sociologia/antropologia/estudos culturais. Como explico na página sobre mim aqui do blog, encontrei essa paixão pelo(s) assunto(s) graças ao curso de Estudos de Mídia (UFF) e é por onde pretendo me guiar nos próximos anos. Na universidade, percebi que muitas vezes esses dois “campos” de estudos não se tocam, embora caminhem paralelamente. Acredito que essas duas vertentes acadêmicas podem se complementar de maneira que seja possível construir uma visão mais completa (e complexa) desse novo ambiente que decidiram chamar de ciberespaço. Como já estou no sexto período da faculdade, aliás, vale pontuar também que a minha ideia para o trabalho de conclusão de curso permeia essas questões de cibercultura e estudos culturais – um dia escrevo sobre isso aqui. Voltando ao tópico do curso, recomendo, para início de conversa, a leitura desse breve post escrito pela profª Débora Zanini para o blog do IBPAD no qual ela explica, de forma simples, o que é a pesquisa etnográfica.

Etnografia: método das ciências sociais utilizado para o estudo da cultura de grupos específicos dentro da sociedade – Fonte: Débora Zanini, IBPAD

Antes de entrar no conteúdo visto em sala de aula, preciso fazer uma ponderação importante que gerou debate entre os próprios alunos. Como mencionei, a tentativa de conceituar cultura é uma problemática exaustivamente discutida dentro do curso de Estudos de Mídia – tanto em matérias obrigatórias quanto optativas. Hoje eu vou pedir licença (inclusive aos meus professores, de quem fui monitor) para não me obrigar a fazer referências “oficial” a nenhum autor (ou a nenhum autores), mas colocar na mesa onde está localizado o debate em torno da palavra dada a bibliografia que li durante todos esses anos. Entendo cultura como uma categoria polissêmica de um campo que envolve, principalmente, disputa(s). Gosto da fala de Certeau que diz que cultura é como uma espuma; quando tentamos pegá-la, escapa. No entanto, para fins didáticos, há de se retomar um dos conceitos do senso comum que entende cultura como uma gama de comportamentos, simbologias, hábitos, práticas sociais, códigos, valores, moral que atravessa uma pessoa ou um grupo de pessoas.

Atravessado esse desafio, podemos concluir que compreender uma “cultura” permite, no contexto comunicacional e mercadológico, desenvolver uma interação mais fácil entre locutor e receptor. Esse passo para trás possibilita que localizemos historicamente a antropologia clássica, a urbana e, finalmente, a digital. Digo que é um passo “para trás” porque, na minha opinião, revela um certo teor etnocêntrico que constituiu a fundação da própria Antropologia – como na experiência de Malinowski, por exemplo, nas Ilhas de Trobriand no início do séc. XX – mas que, por outro lado (e aqui estou tentando ser otimista), revela também que avançamos bastante (principalmente com os movimentos sociais das décadas de 50 e 60). Enfim, voltando ao assunto: o avanço das “novas” tecnologias contribuiu para a construção de um ciberespaço que desenvolveu sua própria cibercultura e permitiu novas perspectivas de análises etnográficas/antropológicas. Esse é definido como “forma de virtualização informacional em rede; por meio da tecnologia, os homens, mediados pelos computadores, passam a criar conexões e relacionamentos capazes de fundar um espaço de sociabilidade virtual”.

“O termo [ciberespaço] especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Quanto ao neologismo ‘cibercultura’, especifica aqui o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço.” – Pierre Lévy

Quem faz Comunicação Social, Publicidade e Propaganda ou Jornalismo e já teve alguma disciplina sobre mídias digitais, novas tecnologias, internet, etc., com certeza já se deparou com algum texto (ou citação, para ser mais humilde) do Pierre Lévy, Manuel Castells (também mencionado no curso) ou André Lemos. São autores centrais para pensar esse novo universo de possibilidades incorporado pela relação interpessoal mediada pelo computador que cada vez mais se consolida como a extensão do corpo proposta por Lévy. O ciberespaço criou “um novo espaço de sociabilidade que é não-presencial e que possui impactos importantes na produção de valor, nos conceitos éticos e morais e nas relações humanas”. Uma crítica humilde que tenho à abordagem desses autores, embora os reconheça como de extrema relevância para a discussão, é que as reflexões por muitas vezes acabam focando muito nas ferramentas/nos meios e menos (ou pouco) no indivíduo – mas isso é assunto para outro dia! O importante é ter em mente que a rede de computadores interligados gerou um novo ambiente de sociabilidade que tem sua própria lógica de construção e, por isso, corrobora com seu próprio estudo (ou estudo próprio).

Diversity of People Digital Communication Technology Concept

>> Leitura recomendada: Etnografia para Entender Culturas na Era da Informação, no blog do IBPAD

“A pesquisa etnográfica, constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do escutar (ouvir), impõe a pesquisadora ou ao pesquisador um deslocamento de sua própria cultura para se situar no interior do fenômeno por ela ou por ele observado através da sua participação efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada se apresenta.”

Bom, se temos um (novo) espaço e temos uma (nova) cultura, temos possibilidade de estudo. Embora eu ainda tenha um pé atrás com a teorização dessa tentativa de saída da “própria cultura” para imersão em “outra” a fim de compreendê-la (a meu ver, isso limita, e a espuma não consegue ser limitada), entendo como isso funciona na prática. Vale também ressaltar que por mais liberto de amarras sociais/culturais que seja o pesquisador, será impossível exteriorizar sua construção pessoal, histórica, social e cultural. O mito da alteridade me parece mais um código de conduta (ético) para tentar compreender o novo com o menor véu de ideologia possível – na verdade, dado que este não diminui, vale solicitá-lo enquanto olhar crítico para admitir que ele existe e deve atravessar as impressões primeiras do estudo a ser feito. É um desafio comum a todos os pesquisadores e que, a meu ver, precisa ser abordado de forma esclarecedora, e não tentando se colocar por fora. Dito isso (e reitero que todas as opiniões expressas aqui são pessoais e válidas de contestação), partimos para o que interessa: descobrir a pesquisa etnográfica enquanto método de análise para o ambiente digital.

Quadro representativo com algumas das variedades de métodos, técnicas e instrumentos disponíveis para se fazer pesquisas. Fonte: IBPAD
Quadro representativo com algumas das variedades de métodos, técnicas
e instrumentos disponíveis para se fazer pesquisas. Fonte: IBPAD

Talvez o meu interesse pelo trabalho de monitoramento esteja ancorado, também, nas semelhanças que ele apresenta com a estrutura dos trabalhos acadêmicos. No curso, aprendemos que o estudo visando o trabalho etnográfico deve ser bem definido nas frentes de metodologia, método científico, técnica e instrumento. Vou tentar passar por cada um deles com exemplos e conceitos trazidos em sala de aula, começando pela metodologia:

CONCEITO METODOLOGIA

Metodologia é a explicação minuciosa, detalhada, rigorosa e exata do conjunto de técnicas e procedimentos utilizados na pesquisa inteira. Ela é o caminho do pensamento.

Deve apresentar: tipo de pesquisa; técnicas utilizadas; instrumentos utilizados (questionário, entrevista, experimento, observação, etc); tempo de execução e etapas do trabalho; formas de tabulação e tratamento dos dados; análises dos dados/ informações (teorias, autor, etc).

Fonte: IBPAD

Quem já passou pela faculdade ou quem está com os preparativos prontos para começar a desenvolver o TCC, como é o meu caso, já tem uma ideia bem formado do que se trata a metodologia. Vale ressaltar que é uma prática que considero de extrema importância para qualquer pesquisa mas que raramente vejo bem “destrinchada” em relatórios de monitoramento – o que considero uma pena, pois, de certa forma, “diminui” o valor do monitoramento quando poderia muito bem agregar simbolicamente ao campo para uma ainda maior legitimação da técnica como instrumento legítimo de pesquisa.

CONCEITO MÉTODO CIENTÍFICO

Conjunto de regras e procedimentos adotados de um determinado método de pesquisa. É o regulamento prévio de uma série de operações que se devem realizar para se ter segurança dos dados e efetividade científica.

Fonte: IBPAD

O método científico é quase um modus operandi de qual referencial teórico será utilizado para designar a análise. Vale ressaltar que ele opera em duas instâncias: na coleta de dados e na sua análise/interpretação. É aqui que se localiza a pesquisa etnográfica, pensando principalmente esse primeiro momento de ir atrás das informações.

CONCEITO TÉCNICA E INSTRUMENTO

Técnica: procedimentos práticos que devem ser adotados para captação de dados.

Instrumento: o instrumento que de fato eu vou utilizar para coletar estes dados:

Fonte: IBPAD

Optei por juntas esses dois porque, na minha compreensão, eles se sobrepõem. A técnica e/ou o instrumento delimita, enquanto prática, após a definição do método científico, quais artifícios serão utilizados para alcançar a coleta necessária para análise; podem ser ferramentas como formulários/questionários mas também entrevistas (estruturadas, não estruturadas, etc.) ou observações (participante ou não participante) específicas, por exemplo.

Quadro representativo com algumas das variedades de método, técnica e instrumentos disponíveis para se fazer pesquisas. Fonte: IBPAD
Quadro representativo com algumas das variedades de método, técnica e
instrumentos disponíveis para se fazer pesquisas. Fonte: IBPAD

Antes de entrar nas “regras de conduta” da pesquisa etnográfica enquanto método de pesquisa, vale ressaltar alguns princípios importantes relacionado à etnografia que foram levantados no curso: 1) é um método conduzido no local onde tudo está acontecendo (em outras palavras, é uma pesquisa de campo), dentro de um contexto específico e “espontâneo”; 2) é completamente personalizado (esse nem precisava comentar, mas é bom falar): cada caso é um caso, não existe uma cartela a ser seguida e preenchida; 3) é altamente recomendado que a coleta de dados seja feito com duas técnicas diferentes, o que permitirá uma conclusão baseada na triangulação de dois caminhos e convergem de alguma forma; 4) é um método demorado – e extremamente trabalhoso, o que exige um compromisso de longo prazo; 5) exige, como já comentado anteriormente no texto, o máximo de crítica consciente para a análise e hipóteses que serão elaboradas (não é um teste, é uma compreensão); 6) permite o diálogo das conclusões e interpretações com os indivíduos conforme elas se formem; 7) deve ser uma pesquisa holística, que tente a todo momento mapear um retrato geral (completo) do grupo estudado.

Feita essa introdução timidamente densa da etnografia e algumas questões que a atravessa, chegamos finalmente ao método etnográfico para mídias sociais. Seguimos, a partir daqui, as etapas propostas no curso que serão destrinchadas pouco a pouco mas que se apresentam da seguinte maneira: 1. selecionar um projeto etnográfico; 2. desenhar mapas descritivos; 3. coletas e estruturar os dados; 4. analisar os dados; 5. registro etnográfico.

SELECIONANDO UM PROJETO ETNOGRÁFICO

O primeiro passo é a escolha do objeto de estudo (ou do projeto como um todo). No entanto, é importante ressaltar que não se trata de uma escolha aleatória e/ou arbitrária, pelo contrário, há alguns critérios fundamentais para que seja feita uma escolha coerente e responsável. Guiando-se pelos objetivos principais da pesquisa, é necessário analisar:

  • Ambiente digital escolhido: garantir que o espaço do ciberespaço possibilita a abordagem etnográfica para o tema proposto (é possível fazer a avaliação/coleta/análise dos dados?). Aqui vale relembrar os conceitos, também abordados no curso, que diferenciam redes sociais, mídias sociais e sites de redes sociais, os quais já mencionei nesse outro post.
  • Propriedades do ambiente: garantir que o espaço tenha tamanho, população e complexidade suficientes para que seja feita uma análise rica. Nesse ponto também é valido o texto da Raquel Recuero, que acabei de indicar no outro post, para buscar compreender como cada mídia ou site de rede social se estrutura pensando a sociabilidade. Em outras palavras, um heavy user consegue deduzir que o Twitter é um bom espaço para fazer um estudo sobre fandoms, por exemplo, mas não é o ideal para pesquisar sobre professores da rede pública em São Paulo.
  • Propriedades do pesquisador: garantir que há tempo, recurso financeiro e habilidade acadêmica/profissional para a execução da pesquisa.

>> Leitura recomendada: Quais tipos de grupos eu posso estudar com etnografia em mídias sociais?, no blog do IBPAD

DESENHANDO MAPAS DESCRITIVOS

Essa etapa é importante porque ajuda a organizar os dados. Não são ideias fixas, mas são formas de organizar o pensamento para a análise que vem a seguir. Como foi explicado no curso, a elaboração desses mapas ajuda a “clarear quais técnicas etnográficas de coletas de dados são mais apropriadas e qual a melhor forma de organizar/estruturar os dados para analisar posteriormente”. A proposta aqui é que seja feito o mapeamento em três frentes diferentes dentro do cenário geral:

  • Mapa social: quantidade de perfis daquele ambiente; quais perfis identificados; grandes temas debatidos / conversados; hierarquização dos perfis (se existe ou não); gêneros, características, idades; tipo de interação entre perfis.
  • Mapa espacial: quais os tipos / formatos de interação naquela rede (texto / imagens / curtidas / retweets e etc); descrição do tipo de ambiente (aberto / fechado / fórum / Fanpage e etc).
  • Mapa temporal: fluxo de perfis; rotinas de discussões / postagens; histórico (contexto); idade do ambiente.

Fonte: IBPAD

COLETANDO DADOS

Por mais irônico que pareça, essa talvez seja uma das partes mais complicadas do exercício. Isso acontece porque, nos últimos anos, cada vez mais os sites de redes sociais têm fechado as portas para coletas “automáticas” de ferramentas e sistemas que antes dispunham desses dados livremente para análise, a exemplo do Facebook. Ainda que o debate permaneça em alta para o campo de monitoramento, existe inúmeras possibilidades de coleta apresentadas por programas comerciais e acadêmicos. Quando falamos de etnografia, então, em que os primórdios eram na base do caderninho, a humildade bate na porta e avisa que, às vezes, os instrumentos necessários estão nas palmas das mãos. Mesmo no ambiente digital, em que o número de dados é geralmente bem maior (“Social data is not quantitative data, rather qualitative data on a quantitative scale”), há a necessidade de uma filtragem qualificada até para a estruturação dos dados.

O ideal é trabalhar quantitativamente para busca e qualitativamente para filtragem. As ferramentas de monitoramento são ótimas aliadas para fazer esse primeiro contato com o tema e a coleta manual baseada na técnica de Time Space Samplig / Time Location Sampling (“estratégia para montar amostra estatisticamente relevante para populações escondidas dentro da sociedade; hard-to-reach populations”), para um segundo momento. Como exemplo dessa estratégia – que não se propôs exatamente a fazer uma pesquisa etnográfica em termos técnicos, mas que usou desse apoio entre as duas frentes para a análise – temos o relatório da Ana Cláudia Zandavalle sobre acne em que ela utilizou-se das ferramentas de monitoramento como instrumentos para primeiro contato com os produtos de análise e, tendo feito esse mapeamento, completou o estudo através de uma coleta e análise manual trabalhada de forma mais qualitativa.

Algumas possibilidades consagradas para coleta de dados na etnografia também aplicáveis para o universo digital são:

  • Relatos escritos e orais: dentro das redes sociais as pessoas podem ter uma série de comportamentos – postar (em texto, vídeo, imagem); interagir (em texto, video, imagem, curtida, retuíte, compartilhamento); observar; fazer parte de grupos e comunidades.
  • Entrevistas semi-estruturadas (conversas cordiais)/histórias de vida: baseia-se apenas em uma ou poucas questões/guias, quase sempre abertas feitas num ambiente privado. Nem todas as perguntas elaboradas são utilizadas. Durante a realização da entrevista pode-se introduzir outras questões que surgem de acordo com o que acontece no processo em relação às informações que se deseja obter.
  • Observação: principal técnica etnográfica de coleta de dados, é feita enquanto o acontecimento se desenvolve; pode ser participante, consiste na participação real do pesquisador com a comunidade ou grupo; participante natural, o observador pertence à mesma comunidade ou grupo que investiga; ou participante artificial, o observador integra-se ao grupo com a finalidade de obter informações; ou, ainda, não-participante: o observador toma contato com a comunidade, grupo ou realidade estudada, mas sem integrar-se a ela.

Fonte: IBPAD

Vale reforçar que o processo de observação deve tentar compreender a prática descritiva dentro do contexto espaço-temporal da coleta – isso garante mais assertividade. Quanto à estruturação dos dados, ela se sustenta nos objetivos do estudo – pensando o armazenamento e a organização dos dados. A análise de redes sociais, por exemplo, feitas por programas como Gephi e NodeXL, permite uma visualização mais bem estruturada que pode acrescentar à análise mais minuciosa e “interna”.

ANALISANDO OS DADOS

A análise de dados é o processo de formação de sentido além dos dados, e esta formação se dá consolidando, limitando e interpretando o que as pessoas disseram e o que o pesquisador viu e leu, isto é, o processo de formação de significado.

Fonte: IBPAD

Nessa etapa, mais uma vez, o campo acadêmico e de monitoramento parecem convergir: enquanto há a coleta e estruturação dos dados, a análise já está sendo feita. O objetivo aqui é “identificar dimensões, categorias, tendências, padrões, relações, desvendando-lhes o significado”, ou seja, organizar as hipóteses fundamentadas no que foi relatado. Para uma análise quantitativa aplicada aos dados, há as possibilidades de: modelagens matemáticas, aplicações estatísticas e análises de volumes; para qualitativa: análises do conteúdo, análise das relações, análise de mudanças e ator, interpretação do comportamento. Uma questão que ainda me traz dúvidas mas que o curso sinalizou uma orientação para conclusão é a validação da amostragem: a “decisão para finalizar o processo pode estar fundada nos seguintes critérios: esgotamento de fontes; saturação de categorias; aparecimento de regularidades”.

CRIANDO O REGISTRO ETNOGRÁFICO

Por final, a proposta do registro etnográfico é endossada desde o começo: a elaboração de um registro completo das observações do pesquisador, finalmente dispondo de opiniões pessoais e conclusões interpretativas.

Quem tiver interesse em se aprofundar no assunto, sugiro a leitura desse post: “Etnografia x Etnografia Digital” no blog da própria profª Débora Zanini onde ela aborda várias questões discutidas no curso e, consequentemente, também aqui no post. Há ainda essa apresentação (Slideshare) feita por ela no Social Analytics Summit 2015, onde apresenta algumas técnicas etnográficas e discute a questão das pesquisas qualitativas serem vistas erroneamente como etnografia dentro de agências de publicidade. Por fim, gostaria de falar brevemente sobre o case muito interessante apresentado pelo segundo professor do curso, Tarcízio Silva.

>> Leitura recomendada: Fotografia nas mídias sociais como recurso etnográfico, no blog do IBPAD

Ele apresentou um estudo muito interessante que realizou para um programa de TV cuja emissora gostaria de “entender o público de um seriado televisivo voltado a adolescentes”. Foi feito um trabalho denso de pesquisa envolvendo monitoramento, análise de comportamento dos usuários, referências bibliográficas e acadêmicas que resultou num relatório de mais de 100 páginas onde o público foi localizado e identificado conforme todo o registro etnográfico aplicado. Quem quiser conhecer mais à fundo (e eu recomendo que conheça!) vai ter que fazer o curso do IBPAD, que vale muito a pena. Se você tem interesse em monitoramento, comportamento do consumidor/usuário e/ou etnografia/antropologia, esse é o curso para você. Agora é torcer para que a versão avançada chegue logo ao Rio de Janeiro!