Tag: identidade

Entre identidade e representação: uma análise exploratória da produção acadêmica sobre nordestinos

*Texto originalmente produzido para o XV ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, submetido e não aprovado para o GT de Culturas e Identidades.

Pedro Meirelles(1)

Nas últimas décadas, diversas produções acadêmicas têm se dedicado a compreender como a cultura nordestina tem sido (re)produzida em/para produtos culturais e midiáticos que (re)constroem os sentidos em torno do que significa Nordeste e ser nordestino. Esses trabalhos surgem como esforço coletivo para pensar sobre uma identidade conjugada na esfera cultural da sociedade brasileira que se formou de maneira muito específica, constantemente no lugar de oposição – não necessariamente de forma combativa, mas geralmente enquanto posição de alteridade.

Este artigo surge no contexto do projeto de pesquisa de mestrado desenvolvido pelo autor no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense, em que investiga as diferentes narrativas e produções de sentido criadas (e disputadas) em torno do Nordeste e dos nordestinos na internet. A partir do levantamento bibliográfico necessário para a pesquisa, percebeu-se a possibilidade de analisar de modo mais criterioso quais são os estudos desenvolvidos em âmbito científico, com recorte específico das Ciências Sociais e Humanas, sobre questões culturais das categorias simbólicas supracitadas.

O objetivo, portanto, é identificar as principais discussões referentes às noções teóricas de identidade e representação quanto ao Nordeste e aos nordestinos nas produções acadêmicas. Para responder a essa pergunta de pesquisa, foi feito um extenso levantamento de artigos, monografias, dissertações e teses cujo foco do trabalho se sustentava sob esses pilares fundamentais. Através de um processo de classificação e categorização sistemática das produções levantadas, além de um reforço técnico de análise textual e semântica (a ser apresentado e detalhado na metodologia), pretende-se descobrir as principais temáticas, enquadramentos e referenciais teóricos.

É importante ressaltar que, embora o artigo tenha uma proposta semelhante e até procedimentos metodológicos similares às pesquisas denominadas “estado da arte”(2) , não é a intenção do autor que esse seja interpretado de tal forma. A proposta aqui é de trabalhar o levantamento bibliográfico das pesquisas produzidas de modo exploratório, sem intenção alguma de se afirmar enquanto mapeamento totalizante. Ou seja, interessa-nos explorar o objetivo de pesquisa modo mais criativo e menos sistemático, a partir de diferentes técnicas de análise que podem oferecer insumos interessantes sobre os debates teóricos em relação principalmente às abordagens conceituais.

Antes de apresentarmos com mais detalhamento a metodologia e as questões de pesquisa, cabe introduzir uma discussão inicial sobre por que as questões sobre identidade e representação são relevantes para o projeto como um todo e, mais especificamente, como dialogam com a pauta nordestina. Na próxima seção, portanto, situamos o debate acerca da centralidade da cultura a partir principalmente da argumentação de Stuart Hall (1997; 2015; 2016), discutindo esse fenômeno sob a perspectiva dos processos indissociáveis de representação e identidade; e, por fim, identificando brevemente como a questão nordestina se encaixa nesse debate.

Identidade, representação e o circuito da cultura

Em mapeamento exploratório sobre estudos da cultura no Brasil, Pitombo et al. (2015), a partir de corpus específico dos trabalhos publicados no Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura – ENECULT, identifica o eixo temático “Narrativas e representações culturais” como um dos mais populares do evento. A categoria diz respeito a trabalhos que envolvem “a representação e as narrativas acerca da identidade cultural a partir da análise de produtos culturais (…) como programas de TV, músicas, obras literárias, filmes” (p. 12). Embora as autoras não explorem os motivos por trás desse resultado específico, toda a argumentação teórica do texto parte de um mesmo ponto de partida: o interesse crescente de pesquisadores de diferentes campos e áreas para com a centralidade da cultura.

Nesse contexto, o protagonismo da cultura parte de uma perspectiva epistemológica, “em relação às questões de conhecimento e conceitualização, em como a ‘cultura’ é usada para transformar nossa compreensão, explicação e modelos teóricos do mundo” (HALL, 1997, p. 16). Ainda que a cultura em seu sentido mais amplo e dentro do senso comum (produção de hábitos, valores, costumes, normas, tradições, etc. de determinados grupos sociais) tenha um repertório bem antigo, Hall (1997) sinaliza que é no século XX que ela se torna uma problemática para o homem ocidental, quando, principalmente por volta da década de 1950 e 1960, acontece uma espécie de “revolução cultural” que a materializa e a torna substancial tanto na esfera da sociedade(3) civil quanto especificamente para as Ciências Sociais.

A “virada cultural” está intimamente ligada a esta nova atitude em relação à linguagem, pois a cultura não é nada mais do que a soma de diferentes sistemas de classificação e diferentes formações discursivas aos quais a língua recorre a fim de dar significado às coisas. O próprio termo “discurso” refere-se a uma série de afirmações, em qualquer domínio, que fornece uma linguagem para se poder falar sobre um assunto e uma forma de produzir um tipo particular de conhecimento. O termo refere-se tanto à produção de conhecimento através da linguagem e da representação, quanto ao modo como o conhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e pondo novas práticas em funcionamento.

(id. Ibid, p. 29)

A “virada cultural” define a cultura “como um processo original e igualmente constitutivo, tão fundamental quanto a base econômica ou material para a configuração de sujeitos sociais e acontecimentos históricos” (HALL, 2016, p. 25-26). Epistemologicamente, portanto, a cultura passa a ser interpretada no contexto de outra virada – que Hall chama de “virada linguística” das Ciências Sociais e dos Estudos Culturais –, na qual “o sentido é visto como algo a ser produzido (grafo do autor) – construído – em vez de simplesmente ‘encontrado’” (p. 25). Esse sentido é fruto do que DuGay et al. (1997 apud WOODWARD, 2014) denominaram de “circuito da cultura”, que atravessa diversas áreas e processos/práticas da vida em sociedade.

O argumento desses autores é que “para se obter uma plena compreensão de um texto ou artefato cultural, é necessário analisar os processos de representação, identidade, produção, consumo e regulação” (WOODWARD, 2014, p. 16). Ainda que todos esses processos se atravessem e se influenciem concomitantemente (como melhor representado pelo esquema visual produzido), aqui nos interessa pensar especificamente identidade e representação devido à proposta do projeto, que trabalha com a ideia de disputas de significados e narrativas. Ou seja, voltamos o olhar para as produções de sentido constituintes do circuito cultural a partir da linguagem(4) como “um dos ‘meios’ privilegiados através do qual o sentido se vê elaborado e perpassado”.

Abordamos a questão da identidade cultural, portanto, a partir da discussão em torno do seu caráter construtivo e descentralizado. Nesse cenário, ela é “fixada” através das construções de sentido nas quais “a cultura é usada para restringir ou manter a identidade dentro do grupo e sobre a diferença entre grupos” (HALL, 2016, p. 21-22). Ou seja, de modo simples, as identidades culturais se estabelecem em torno de “comunidades imaginadas” que supostamente compartilham dos mesmos valores, símbolos e mapas conceituais. No entanto, esses elementos não são inerentes às suas essências, mas construídos – e disputados – em diversas arenas culturais. Sobre o sentido de nacionalidade, Hall (2015, p. 31) explica que

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (…). As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.

A identidade nacional (tomada aqui como exemplo específico, mas correlata à noção mais ampla de identidade), portanto, surge “do diálogo entre os conceitos e definições que são representados para nós pelos discursos de uma cultura e pelo nosso desejo (…) de responder aos apelos feitos por estes significados” (HALL, 1997, p. 26). Ou seja, além da questão que envolve o “fazer parte” de um grupo, há uma segunda instância tão importante quanto que diz respeito aos processos de identificação – e, consequentemente, de construção/representação – de determinados valores simbólicos. O discurso de pertencimento nacional só se legitima através dos sistemas de “significação” que fornece aos indivíduos o mapa mental necessário para se perceber enquanto parte de determinada cultura (Hall, 2016).

Para que possamos pensar e discutir sobre identidade, portanto, temos também que falar sobre outro processo-chave do circuito cultural: a representação. É esta esfera que nos oferece tanto os signos quanto os significados necessários para que possamos nos posicionar, ou seja, “é por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos” (WOORDWARD, 2014, p. 18). Fica evidente, portanto, como todos esses referenciais teóricos – identidade, representação e cultura – devem ser observados, conforme nossa linha de argumento e filiação, sob uma perspectiva construtivista na qual há uma disputa constante pela produção – e identificação – de sentidos compartilhados.

O argumento que estarei considerando aqui é que, na verdade, as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser inglês” devido ao modo como a “inglesidade” (Englishness) veio a ser representada — como um conjunto de significados — pela cultura nacional inglesa. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos — um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional.

(HALL, 2015, p. 30)

É sob essa linha de pensamento teórico que vários trabalhos de produção acadêmica (artigos, monografias, dissertações e teses) têm feito um esforço para tentar compreender e discutir a identidade e a representação nordestina no âmbito da cultura nacional. Partindo tanto de pesquisas teóricas quanto de pesquisas empíricas e/ou estudos de caso, essas produções analisam – sob diferentes perspectivas – como o Nordeste “nasceu”, foi e continua sendo narrado na arena discursiva da sociedade brasileira. Ou seja, uma vez que a identidade é uma construção fruto dos processos de representação de uma cultura, esses estudos trazem à tona discussões sobre esse circuito para com as categorias “nordestinos” e “Nordeste”.

O que faz “ser” nordestino? Como se inventou o Nordeste? Como meios de comunicação de massa representaram e representam historicamente os nordestinos e o Nordeste? Como a literatura nacional ajudou na criação de uma imagem regionalista? Como as políticas de gestão federal influenciaram no jogo de articulações para a criação da região? Como a música, principalmente o forró, tornou-se um dos principais narradores da legítima experiência nordestina? Como o cinema nacional e as produções audiovisuais televisivas corroboraram em todo esse processo? Essas são algumas das perguntas que envolvem tanto identidade quanto representação e fazem parte do escopo teórico por trás das produções a serem analisadas.

Questões da pesquisa e metodologia

Tendo em vista a relevância – social e epistemológica – dos trabalhos sobre as narrativas e produções de sentido em torno do Nordeste e dos nordestinos enquanto categorias culturais, estabelecemos como objetivo principal e secundários deste trabalho, respectivamente, as seguintes questões:

  • Quais são as discussões e os debates em torno das questões de identidade e representação do Nordeste nas produções acadêmicas?
    • Quais são as categorias temáticas gerais (referentes ao objeto de pesquisa) dessas produções? Ex: Cinema, Música, etc.
    • Quais são as referências bibliográficas que se apresentam com maior frequência nesses recortes?

O primeiro passo para responder a esses questionamentos foi encontrar um corpus de análise minimamente significativo. Foi realizado, então, um levantamento de produções científicas a partir da plataforma de pesquisa acadêmica do Google(5) . Novamente, como o artigo não tem a ambição de fazer um mapeamento completo referente ao estado da arte da temática aqui abordada, esse processo foi mais exaustivo do que totalizante: foram selecionadas 165 produções acadêmicas(6) encontradas a partir da listagem ranqueada por ordem de relevância (segundo critérios da plataforma) que traziam discussões concomitantes sobre identidade, representação e Nordeste.

O segundo passo necessário, após o levantamento de essas produções, foi criar um aporte analítico capaz de nos fornecer as informações requisitadas referentes a cada uma das perguntas da pesquisa. Criamos, então, uma planilha(7) com as seguintes variáveis a serem preenchidas com os dados de cada produção encontrada: tema/área, título, autor(es/as), resumo, ano, bibliografia e tipo de trabalho. Essa categorização sistemática dos dados levantados permite que possamos começar a delinear as respostas que desejamos fornecer às questões deste trabalho. Na próxima seção, apresentamos como ficou a disposição de corpus e resultados da análise.

Resultados da análise exploratória

FIGURA 01 – Gráficos referente ao Tipo e Ano das publicações
FONTE – O autor

Dentre as produções acadêmicas mapeadas, a grande maioria foram do tipo Artigo (70%) – referentes a apresentações em eventos, anais de congressos, projetos científicos, etc.; seguido de Monografia (15%) e Dissertação (11%), com apenas quatro Teses (2%) encontradas. Quanto à época de produção dos trabalhos, há uma concentração relativamente estável sobretudo na última década (de 2009 em diante), com um pico considerável em 2014 – não há nenhuma novidade ou acontecimento explícito nos dados que provoque esse aumento repentino, visto que os trabalhos desse ano específico abordam temas antigos em geral (principalmente Literatura e Música).

É importante ratificar que essas informações não dizem respeito à toda produção acadêmica sobre identidade, representação e Nordeste/nordestinos, mas pode ser vista como indicativo para possíveis futuros mapeamentos mais aprofundados – e, principalmente, delimitam e apresentam o corpus de análise selecionado. É nesse mesmo contexto que apresentamos na Figura 02, na qual foram contabilizadas as Áreas/Temas dos trabalhos (referentes especificamente aos objetos de pesquisa e/ou discussão teórica). Foram identificadas em apenas um trabalho: Turismo, Teatro, Religião, Letras, Biblioteconomia, Política, Direito e Artes.

FIGURA 02 – Gráfico referente às Áreas/Temas dos trabalhos
FONTE – O autor

As produções sobre Cinema (20%), Música (20%) e Literatura (19%) somam juntas mais da metade do corpus de análise. São trabalhos que analisam especificamente ou de maneira mais abrangente como as produções culturais – filmes, canções, cantores(as), romances, cordel, etc. – dessas áreas atravessam, influenciam ou envolvem questões relacionadas à (construção da) identidade nordestina e da representação do Nordeste e do povo nordestino. Na Figura 03, três esquemas de nuvens de palavras (mais frequentes) foram produzidos 8 a partir dos títulos dos trabalhos para ilustrar alguns dos assuntos recorrentes em cada uma dessas categorias.

FIGURA 03 – Nuvens de palavras de termos mais frequentes nos títulos dos trabalhos por categoria
FONTE – O autor

Retomando a Figura 02, temos ainda vários trabalhos que foram classificados na categoria Geral. As produções aqui atribuídas trabalham as questões de identidade, representação e Nordeste sob uma perspectiva mais conceitual e teórica, sem um recorte específico de objeto de estudo e/ou análise. Já Pedagogia e Migração/Territorialidade apontam produções bem específicas, abordando, respectivamente, como o Nordeste é/pode ser visto em sala de aula (ou no processo de ensino e aprendizagem como um todo), e em estudos que discutem sobre a questão da migração nordestina em relação também a uma noção de territorialidade.

As produções sobre Internet são, em sua maioria, estudos de caso sobre páginas da web e/ou de mídias sociais nas quais a identidade nordestina é reconfigurada simbolicamente para o “ciberterritório”. Em Televisão, autores discutem sobre o modo como o Nordeste e os nordestinos são representados/retratados nas narrativas audiovisuais “fictícias”, assim como acontece nos trabalhos categorizados em Imprensa. Por fim, a categoria Gênero surge não necessariamente como uma temática, mas como uma área de pesquisa – que, aqui especificamente, discute principalmente as questões sobre a “masculinidade” nordestina.

Em sequência, interessa-nos também descobrir quais são os autores mais populares que embasam essas discussões. Para isso, foi desenvolvido um código em linguagem de programação R que contabilizou todos os termos em caixa alta (conforme padronização nos modelos da ABNT) das bibliografias mapeadas; em seguida, averiguou-se, a partir da listagem em ordem de maior frequência, quais eram referentes a autores (e excluídos termos como siglas de universidade, nomes de editoras, etc.); para finalizar, a verificação final foi feita com o software AntConc(9) . A listagem dos autores mais citados com o número de ocorrências está disposta a seguir:

AutoresFrequência Bibliográfica
Durval Muniz de Albuquerque182
Stuart Hall98
Michel Foucault62
Tomaz Tadeu da Silva47
Zygmunt Bauman43
Eni Pucicinelli Orlandi39
Mikhail Bakhtin39
Gilberto Freyre39
Néstor García Canclini36
Alfredo Bosi33
Pierre Bourdieu31
Luís da Câmara Cascudo31
Renato Ortiz30
Homi K. Bhabha25
Michel Pêcheux24
Antônio Cândido24
Euclides da Cunha22
Ariano Suassuna22
Patativa do Assaré21
Maria do Rosário Gregolin21
Ismail Xavier21
Maura Penna21
Michel de Certeau20
Luiz Paulo da Moita Lopes20
Roger Chartier19

Destaca-se evidentemente a relevância do autor Durval Muniz de Albuquerque Jr., que aparece com uma numeração superior à própria totalidade de artigos mapeados (165) devido à presença de citações a mais de um dos seus trabalhos num único artigo. Além de A invenção do Nordeste e outras artes (1999), sua produção mais popular, outras obras de sua autoria como Nordestino: uma invenção do falo: uma história de gênero masculino (2003) e Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia também receberam menções expressivas. O historiador, inquestionavelmente, é a principal referência sobre Nordeste e nordestinos na academia.

Stuart Hall é o segundo autor mais citado nos trabalhos, sobretudo por suas obras A identidade cultural na pós-modernidade (2006) e Da diáspora: identidades e mediações culturais (2003). Assim como Tomaz Tadeu da Silva – cuja publicação Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais (2005) também foi bastante referenciada e consta, inclusive, com um texto de autoria de Hall –, são os teóricos mais populares neste campo para discutir a questão da identidade. Ainda que Zygmunt Bauman também faça parte desse jogo, com Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi (2005), o filósofo recebe mais atenção quanto à questão da modernidade.

Outro nome também bastante conhecido da comunidade acadêmica, Michel Foucault acumula pontos de modo razoavelmente equilibrado entre suas obras: Arqueologia do saber (1969), A ordem do Discurso (1970) e Microfísica do Poder (1978). Há de ser feita uma investigação mais profunda sobre qual é o diálogo que os autores promovem com o filósofo, no entanto, a partir da leitura de alguns resumos que o citam de modo específico, pôde-se identificar sobretudo as questões que envolvem relações de poder e a ênfase na Análise do Discurso enquanto abordagem teórico- metodológica desenvolvida por vários trabalhos.

Esse campo também ganha corpo com a presença notória de nomes como Eni Pucicinelli Orlandi, Michel Pêcheux, Maria do Rosário Gregolin e Luiz Paulo da Moita Lopes. Os trabalhos desenvolvidos em diálogo com esses autores geralmente advêm da área de Comunicação, onde a Análise do Discurso é bastante popular para desenvolver pesquisa sobre produtos culturais/midiáticos. Por outro lado, sob uma perspectiva mais “culturalista”, autores como Mikhail Bakhtin, Néstor García Canclini, Homi Bhabha e Pierre Bourdieu oferecem os conceitos e um modo de pensar esses mesmos produtos a partir de contextualizações mais antropológicas e sociológicas.

Vale comentar ainda aqueles autores que oferecem o panorama teórico para discutir sobre a cultura brasileira e/ou nordestina de modo mais abrangente, liderados por Gilberto Freyre em suas diferentes publicações. Somam a essa lista Luís da Câmara Cascudo, Renato Ortiz, Antônio Cândido e Alfredo Bosi – esses últimos cujo trabalho se desenvolve bastante em cima da Literatura, área já referida como de bastante importância para as questões em cena aqui. Importante citar, nesse sentido, a presença de Euclides da Cunha, Ariano Suassuna e Patativa Assaré, que, assim como Freyre, são fontes e objetos de estudo dessas produções.

Considerações finais

A ideia do artigo surgiu a partir de uma demanda produtiva-pessoal do autor para com o desenvolvimento do seu projeto de mestrado. A proposta do trabalho foi realizar um levantamento exploratório das produções acadêmicas sobre o Nordeste e sobre os nordestinos quanto às questões de identidade e representação, de modo a esquematizar minimamente quais são as áreas e temáticas mais comuns para pensar – e teorizar – todas essas questões no ambiente acadêmico.

Como resultado desse processo, foi possível identificar que trabalhos sobre Cinema, Música e Literatura são recorrentes nas discussões sobre produções de sentidos e significados em torno de Nordeste e nordestinos. Uma análise com mais afinco da bibliografia dos trabalhos mapeados permitiu também identificar que o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. é a autoridade no assunto, enquanto que teóricos como Stuart Hall, Michel Foucault, Tomaz Tadeu da Silva e Zygmunt Bauman fornecem o arcabouço conceitual para as discussões travadas.

Por fim, ressalta-se mais uma vez o caráter exploratório da pesquisa e as possibilidades de desdobramentos para um futuro trabalho. Expandindo a análise, seria possível pensar em investigar cada um dos campos/áreas temáticas principais, para identificar preferências teóricas ou de métodos; voltando o olhar para a bibliografia, seria possível também tensionar a lista de autores mais citados para discutir a popularidade de alguns específicos; ou, ainda, analisar o local da produção para pensar a relação autor-identidade-nordeste e a associação Nordeste x estados, para localizar os Nordestes sobre o qual estão discutindo.

Notas
  1. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (PPCULT/UFF).
  2. “Definidas como de caráter bibliográfico, elas parecem trazer em comum o desafio de mapear e de discutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento, tentando responder que aspectos e dimensões vêm sendo destacados e privilegiados em diferentes épocas e lugares, de que formas e em que condições têm sido produzidas certas dissertações de mestrado, teses de doutorado, publicações em periódicos e comunicações em anais de congressos e de seminários. Também são reconhecidas por realizarem uma metodologia de caráter inventariante e descritivo da produção acadêmica e científica sobre o tema que busca investigar, à luz de categorias e facetas que se caracterizam enquanto tais em cada trabalho e no conjunto deles, sob os quais o fenômeno passa a ser analisado.” (FERREIRA, 2002, p. 258)
  3. Além da dimensão epistemológica, Hall (1997, p. 27) cita quatro dimensões gerais para discutir a centralidade da cultura: “a ascensão dos novos domínios, instituições e tecnologias associadas às indústrias culturais que transformaram as esferas tradicionais da economia, indústria, sociedade e da cultura em si; a cultura vista como uma força de mudança histórica global; a transformação cultural do quotidiano; a centralidade da cultura na formação das identidades pessoais e sociais”.
  4. “Colocando em termos simples, cultura diz respeito a “significados compartilhados”. Ora, a linguagem nada mais é do que o meio privilegiado pelo qual “damos sentido” às coisas, onde o significado é produzido e intercambiado. Significados só podem ser compartilhados pelo acesso comum à linguagem. Assim, esta se torna fundamental para os sentidos e para a cultura e vem sendo invariavelmente considerada o repositório-chave de valores e significados culturais.” (HALL, 2016, p. 18)
  5. Google Scholar: https://scholar.google.com.br/
  6. A coleta foi feita a partir da query de busca “identidade nordestina” OR (identidade AND nordeste) OR (representação AND nordestinos) OR (representação AND nordestinas) entre março e abril de 2019; e o critério de recorte foi a presença dos termos identidade(s), representação(ões), narrativa(s), sentido(s) ou cultura(s) no título ou resumo do trabalho, em consonância com o enfoque quanto às categorias-mães Nordeste/nordestino(as) (não específicas aos estados); foram desconsiderados trabalhos que não continham resumo (capítulos de livro, ensaios, etc.).
  7. A planilha está disponível online e pode ser acessada no link: http://bit.ly/artigosnordestinos
  8. Os termos “nordeste”, “nordestino(a)” e “nordestino(as)” foram removidos para melhor visualização. Optou-se por manter “identidade” e “representação” para perceber como essas duas terminologias aparecem – ou não – em categorias específicas.
  9. Software de análise de texto: http://www.laurenceanthony.net/software/antconc/
Referências bibliográficas

FERREIRA, Norma. Pesquisas denominadas estado da arte: possibilidades e limites. Educação e Sociedade, Campinas, v. 1, n.79, p. 257-274, 2002.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & realidade, v. 22, n. 2, 1997.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2015.
HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2016.
PITOMBO, Mariella; RUBIM, Lindinalva; SOUZA, Delmira. ESTUDOS DA CULTURA NO BRASIL:
UMA ANÁLISE A PARTIR DO ENECULT. In: XI Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura – XI ENECULT, 2015, Salvador. Salvador: CULT, 2015. v. 1.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 7-72, 2014.

Cinco dimensões de personas online (para pensar a autoapresentação nas mídias sociais)

Um dos meus critérios para avaliar a qualidade/compatibilidade de um artigo acadêmico com os meus interesses de estudo é verificar as referências bibliográficas ao final do trabalho. Além de conseguir me localizar no debate que o texto se propõe a fazer (reconhecer autores e/ou obras citadas me deixa mais tranquilo/satisfeito), descobrir novos estudos que me parecem interessantes é sempre um acréscimo à minha lista de leituras. Foi assim que descobri o ensaio “Five Dimensions of Online Persona”, a partir do artigo ““Sabe o que Rola nessa Internet que Ninguém Fala?”: Rupturas de Performances Idealizadas da Maternidade no Facebook”, de Ana Souza e Beatriz Polivanov, sobre o qual falarei em outro post.

Capa do volume 3, edição nº 1 da revista Persona Studies

O texto faz parte da terceira edição da revista Persona Studies, um caderno acadêmico que “explora a construção do self público” onde “o conceito de persona é explorado em sua produção e performance numa variedade de contextos: cultura online, práticas profissionais, cultura política, cultura de celebridades, cultura de filmes/televisão/música popular, cultura de jogos/lazer e cultura cotidiana”. Seus autores, assim como principais membros do conselho editorial, são: Christopher Moore, da University of Wollongong Australia; Kim Barbour, da University of Adelaide; e Katja Lee, da McMaster University. Completa o time de editores (mas não é um dos autores) o consagrado pesquisador P. David Marshall, da Deakin University.

É importante conhecer os autores (e, neste caso, o conselho editorial) porque, como já mencionei em outras ocasiões, a pesquisa acadêmica – pelo menos na área de Humanas, até onde eu sei – é extremamente plural e, muitas vezes, interdisciplinar. Ou seja, o mesmo tema pode ser (e provavelmente é) estudado a partir de diferentes abordagens, com diferentes referenciais teóricos e levantando diferentes discussões sociais/culturais/éticas. Descobrir, portanto, quem são os pesquisadores por trás do texto, me fez entender quais são seus repertórios e ponto de partida para o projeto: todos têm como área de interesse em comum a “cultura da celebridade” – Marshall, que não é autor mas é bastante citado no texto, possui cinco livros sobre o assunto, com destaque para “Celebrity and power: fame in contemporary culture”.

Isso reflete diretamente na proposta teórico-metodológica que eles propõem para pesquisar e discutir academicamente sobre a construção de personas online – o que não invalida, de forma alguma, a perspectiva que eles trazem, só “justifica” a abordagem mais preocupada em midiatização/exposição e outros elementos que citarei mais adiante. Antes de entrar nesse mérito, entretanto, preciso ratificar que um dos grandes trunfos do texto é a revisão bibliográfica feita para “explorar a subjetividade e a apresentação pública do self através de tecnologias de rede”, apresentando as principais obras e autores que foram ou pioneiros nos estudos sobre identidade/self na internet ou tiveram, com seus trabalhos, maior impacto no universo acadêmico.

Dentre os principais, citam o trabalho de Harrison Rainie e Barry Wellman (2012), que reforça o argumento de que o aparato tecnológico (tecnologias da comunicação, plataformas de mídia e serviços digitais em geral) faz(em) parte também da construção identitária constantemente revisada, atualizada remendada conforme nos conectamos e trocamos informações com outras pessoas e sistemas. Acrescentando a esse argumento, citam o conceito de “networked self” de Zizi Papacharissi (2010), que se refere à “construção de uma performance subjetiva em várias plataformas e fluxo simultâneo de consciência social que expande autonomia, potencialmente reduz agenciamento e que requer constante auto-vigilância e monitoramento” (p. 1).

Outra referência muito interessante trazida pelos autores é o trabalho de Mark Hansen (2015), que argumenta que “em qualquer performance de subjetividade – humana ou não – há uma subjetividade generalizada inerente aos dados quantitativos” (p. 1), marco típico da caracterização elementar da mídia contemporânea. Sua linha argumentativa, a partir da filosofia especulativa de Alfred North Whitehead, “ajuda-nos a apreciar a dimensão sensorial irreduzível da experiência ‘dataficada'”, corroborando com a perspectiva da pesquisadora Helen Kennedy. Em termos simples, há uma concordância de que a subjetividade expansiva, plural e desafiadora dos seres humanos, quando traduzidas midiaticamente, tornam-se pontos de contato entre nós e as máquinas, tornando tudo (qualquer interação) quantificável.

Outras pesquisadoras relevantes, como Nancy Baym, examinou como as formas de comunicação interpessoal das mídias aceleram novas constituições de ‘conexão pessoal’ (2010, p.1). O trabalho de Baym quanto à identidade digital expande a noção útil de Donath (2007) sobre signalling, que funciona para localizar a posição social dentro de uma sociedade saturada de informação. Utilizando o Facebook e seus templates como estudo de caso, o trabalho de Laurie McNeill (2012) explorou a colaboração entre componentes humanos e não-humanos na produção de atos autobiográficos online. Anna Poletti e Julie Rak (2014) oferecem uma orientação similar de uma identidade conectada em estudos biográficos e autobiográficos em Identity Technologias: Constructing the Self online, uma coletânea que argumenta que tais tecnologias são parte fundamental do mundo online na contemporaneidade (p. 2).

Todos esses trabalhos citados – e outros que ainda virão – têm contribuído para uma discussão complexa, diversa e responsável da construção de identidades online nas últimas décadas: “eles começaram a examinar como o indivíduo é intimamente conectado à apresentação de seus selves públicos na cultura online, pelas conexões digitais até instituições sociais, e através das organizações conectadas da vida cotidiana que são fundamentalmente diferente do que já foram” (p. 2). A contribuição da revista, portanto, tem sido levantar uma discussão crítica sobre personas para compreender práticas e performances identitárias no contexto online. Nesse ensaio em específico, pretendem apresentar cinco dimensões importantes de uma persona online para compreender a sua configuração na contemporaneidade.

A DIMENSÃO PÚBLICA

A primeira dimensão que os autores apontam é a dimensão pública, que envolve duas questões relevantes: o “fim” do anonimato na internet e a publicização (POLIVANOV, 2012) do self. O primeiro dialoga diretamente com a noção da virada do milênio na qual o ciberespaço seria um não-lugar que ofereceria aos frequentadores possibilidades infinitas de construção de um (novo) ser. Eles citam, dentre os fenômenos que causaram essa mudança de paradigma: a obrigatoriedade dos nomes reais (no Facebook, por exemplo), os termos de compromissos de jogos online, de mídias sociais, e a onipresença de navegadores baseados em cookies, além das próprias medidas governamentais adotadas nos últimos anos para vigilância social.

Embora essa seja uma questão que tem se amplificado e até se consolidado mais recentemente (consigo entender a argumentação do início da década passada na qual havia maior “mobilidade” para a construção de personas “fictícias”), o declínio do anonimato já era um ponto levantado por Lemos (2003) ao falar sobre as novas dinâmicas da cibercultura. Já naquela época, ele declarava: “Obviamente que questões inéditas surgem comprovadas através de certo lastro empírico, mas as diferenças devem ser matizadas já que várias práticas guardam similitudes com as formas sociais e os papéis que desempenhamos no dia a dia fora da rede” (p. 6). Mais interessante, portanto, a meu ver, é a questão da “publicidade” (publicness) do self.

Os autores chamam a atenção para o espectro amplo de “publicidade” (publicness) de uma persona online, ratificando que “a cada ponto de sua travessia existe um potencial real de partir de um público pequeno de amigos próximos e íntimos a uma audiência global e massiva, possibilitada pelo ato de compartilhamento” (p. 3). Em outras palavras, trata-se da ideia de visibilidade que Polivanov (2012) cita a partir de boyd (2011) como elemento-chave dos sites de redes sociais: é o tornar público – não necessariamente o conteúdo em si, mas o ato de “publicizar” algum elemento (imagético, textual, etc.). Quando publicamos algo nas mídias sociais, muitas vezes esquecemos que estamos justamente tornando aquela mensagem pública – podendo ela ser inferida pela nossa rede de contatos ou por milhares de desconhecidos.

Embora considere essa dimensão extremamente relevante, não concordo muito com a fundamentação argumentativa dos autores – aqui, por exemplo, conhecer o repertório de quem escreveu faz toda a diferença. Eles argumentam que há uma trajetória quase que natural desse efeito de publicness, no qual estaríamos todos buscando constantemente uma audiência maior. “Celebridades agem como marcadores pedagógicos ao fornecerem frameworks replicáveis para a conduta da apresentação pública do self” (p. 3), argumentam. Embora concorde que temos historicamente a construção de personalidades midiáticas como referência para várias das ações que (inconscientemente) aplicamos hoje nas mídias sociais, esse argumento de busca irreversível pela popularidade me parece muito moralista.

A DIMENSÃO MIDIATIZADA

A segunda dimensão traz à tona o aspecto mais tecnológico da construção de uma persona online, sendo este o responsável – literalmente, já que é ele quem torna público – pela dimensão anterior. “Bilhões de usuários diários de mídias sociais no Facebook, WeChat, Twitter e Instagram demonstram um incomparável escopo de habilidades e grau de conforto com a midiatização pública e expressam níveis sem precedentes de exposição atual e em potencial” (p. 3), pontuam. Novamente, aqui, há um enfoque muito grande na comparação com a cultura das celebridades, que precisariam de “mídia” (exposição) para construírem suas carreiras – por isso fazem entrevistas, participam de programas de TV, posam para capas de revistas, etc.

Um apontamento interessante nesse contexto é a associação feita com a teoria narratológica de Gerard Genette sobre o conceito de paratextos: “são dispositivos ou convenções liminares (como poses no tapete vermelho, atributos faciais característicos, hábitos do Instagram ou páginas do Facebook) que formam um significado inicial entre texto e audiência” (p. 4). Trata-se, portanto, de práticas e discursos heterogêneos que acumulamos com o tempo em nossas identidades de persona online: “Esses paratextos circulam conforme performer utilizam suas identidades para converter a si mesmos e as produções das quais fazem parte, tornando-se visíveis enquanto figuras midiatizadas, através de canais de distribuição da mídia tradicional e plataformas de mídias sociais mais pessoais” (p. 4). No contexto das mídias sociais, eles citam likes, favoritos, compartilhamentos e retweets como paratextos.

Em resumo, portanto, a dimensão midiatizada aciona o nosso entendimento mais cotidiano de mídia: é o fazer midiático, que envolve diretamente as (novas) tecnologias de comunicação (e agenciamento) da modernidade digital. Aqui, vale novamente repensar a palavra mídia (como fizemos anteriormente com público),  para que possemos lembrar que vivemos a cultura da mídia (como diria Douglas Kellner) e, portanto, as nossas ações são interpeladas pelo fazer midiático e simultaneamente interpretadas a partir das configurações de entendimento do que aprendemos enquanto construção de personas nos meios de comunicação “tradicionais”. O nosso endosso também constrói quem somos (SCHAU e GILLY, 2003).

A DIMENSÃO PERFORMATIVA

A terceira dimensão é provavelmente uma das mais levadas em consideração na pesquisa acadêmica sobre identidade nas mídias sociais (cf. Polivanov, 2012, cap. 2). Amplamente baseada no trabalho de Erving Goffman, diz respeito ao modo ao qual nos apresentamos apropriadamente de acordo com o público que temos à nossa frente: “Goffman convencionou uma compreensão de grau na qual todos nós apresentamos ‘faces’ e agimos de acordo a depender de cada situação e suas expectativas” (p. 4) – dialogando também com a ideia de identidade fragmentada de Hall (2006) e de audiência imaginada de boyd (2011). De maneira simples, significa dizer que nossos atos performáticos condizem com o papel social que tomamos para si em cada situação: a mãe, a blogueira, a professora, a acadêmica, a militante, etc. – tudo isso em uma só persona.

Para apresentarmos uma persona mediada publicamente nós devemos performar nossa identidade, nossa profissão, nosso gênero; e efetuar nossos gostos, interesses, e redes de conexão através de atividades como comentários em posts, curtidas em contribuições de terceiros ou enquadramento de uma selfie. Essa identidade performativa não faz alegações sobre ser ‘verdadeira’, ou um self que é de alguma maneira menos produzido ou implementado ou mais completo de alguma forma subjacente. A performance pública do self não é nem inteiramente ‘real’ nem inteiramente ‘ficcional’. As conquistas da performatividade significa que uma persona conecta e enreda todas as várias características que são encenadas e apresentadas no cotidiano e intencionadas para interação com os outros (p. 4).

Sobre essa dimensão, os autores chamam atenção principalmente para quatro questões: primeiro, para a noção rotineira da performance discutida por Papacharissi (2010) – e que, de certa forma, dialoga bastante com o conceito de habitus de Pierre Bourdieu – na qual “qualquer interação entre um self performado e o self performado de outros pode rapidamente se tornar um padrão de ação que então se torna uma rotina”. O que envolve diretamente a segunda questão, que é a expectativa que criamos na lógica de coerência expressiva (SÁ e POLIVANOV, 2012) sobre como esperamos que as pessoas ajam frente às determinadas situações. Sobre isso, os autores mencionam também o trabalho de boyd (2010) para ratificar os conflitos geracionais quanto ao uso das mídias sociais, que “nos lembra que os métodos para performar o self não são fixos” (p. 5).

Os autores citam também a importância do trabalho de Judith Butler (1999) para o conceito de performatividade, no qual a autora argumenta que “a qualidade de apresentação da identidade (de gênero) não é nem determinada biologicamente nem produzida individualmente, mas possibilitada e coagida pelas instituições, tecnologias, redes e culturas nas quais o self público é montado e performado” (p. 5). Por fim, mas não menos importante, os autores acionam o conceito a interpretação de vivência mundana (lifeworld) de Habermas (1987) para citar como incorporamos diversos elementos de reprodução simbólica da sociedade – que engloba plataformas de mídia, tecnologias móveis, canais de comunicação múltiplos, etc. – “para gerenciar o self em diversas estruturas, instituições, performances técnicas, frames e palcos” (p. 5).

Um exemplo muito interessante que os autores apontam como “hábitos” que acabamos tomando como naturais na construção de identidades online é explorado no trabalho de Ken Hillis (2009) sobre o “pull-down menu”: “[o autor] nos lembra que a performance de gênero, peso, idade, profissão, localização, atitude e relacionamento para outros é puramente ritualizada como resultado da opções limitadas disponíveis para usuários nos sistemas” (p. 5). No entanto, argumentam os autores a partir de Marshall (2010), “é através da performatividade de apresentação midiática que indivíduos são encorajados, convocados e até mesmo ‘seduzidos’ a construções mais elaboradas da apresentação pública”. Essa construção performativa deve sempre estar de acordo com certa coerência narrativa através de um equilíbrio entre pessoal, profissional, sincero e autêntico.

A DIMENSÃO COLETIVA

A quarta dimensão apontada no texto se refere à noção de coletivo à qual fazemos parte numa rede de conexões: “O indivíduo está conectado a múltiplos públicos, tornando a dimensão coletiva de uma persona um complexo meta-coletivo” (p. 6). Aqui os autores acionam termos como “nós” e “redes” para ratificar a ideia de diferentes (e possivelmente sobrepostas) conexões entre os atores que possuem um ponto central: a persona do usuário. Não se trata (apenas) da noção de redes das quais fazemos parte no contexto de mídias sociais, mas também dos processos diversos – e em diferentes plataformas – que utilizamos para construir a nossa identidade online (você é sua conta no Instagram + Facebook + LinkedIn + Twitter, etc.).

Essa construção fragmentada do self implica uma audiência também fragmentada (porém razoavelmente imaginada), que traz à discussão o conceito de micro-publics. A primeira vez que vi esse termo num artigo foi no texto “Is Habermas on Twitter? Social Media and the Public Sphere”, de Axel Bruns e Tim Highfield, na qual os autores apresentam esses micro-públicos como constituintes plurais de uma (nova) esfera pública nas mídias sociais. No ensaio em questão, os autores apresentam o conceito também partindo de uma ideia de pequenos grupos de audiência que denominam certos valores e expectativas em comum frente à construção de uma persona: “A intercomunicação entre atividades de micro-público ocorre como parte da comunicação interpessoal do self, onde automediações estão ligadas diretamente a atividades de autopromoção em diversas plataformas, sites e serviços” (p. 6).

Micro-públicos são micro não em termos de escala, mas em relação à natureza da rede que é regular e privadamente atualizada por uma identidade central. Um micropúblico está anexado à uma persona única que está pessoalmente produzindo, respondendo e transmitindo na tradição das instituições de mídia previamente dominantes, o que torna o micropúblico uma rede quasi-pública. Para lidar completamente com a emergência da persona online, nós observamos atentamente as conexões fortes entre indivíduos e as múltiplas sobreposições de micropúblicos aos quais eles são centrais (p. 6).

Essa dimensão retoma outros dois conceitos já citados neste post: a ideia de coerência expressiva e o conceito de gerenciamento de impressões. O primeiro, cunhado por Sá e Polivanov (2012), parte justamente da ideia de Goffman sobre como temos que criar uma narrativa bem amarrada e alinhada para os diferentes (micro)públicos. No texto, os autores citam duas complicações atuais para essa dimensão: “a relação de tornar-se amigo e tornar-se seguidor que amplica o laço afetivo entre autor e público […] que contribuiu com novas dimensões interpessoais de expressões culturais, governança e consumo”; e “a construção muito complexa de públicos como micropúblicos que intercepta sistemas de comunicação e mídia maiores e consolidados que produzem tropas culturais e contribui para uma nova orientação de valor e agenciamento” (p. 6).

A DIMENSÃO DE VALOR

A última dimensão coloca em pauta outra perspectiva bastante estudada sobre a midiatização do self online (principalmente se tratando de influenciadores/webcelebridades/produtores de conteúdo): agenciamento, reputação e prestígio. “O motivo para criar personas pode variar desde o pessoal e íntimo […] ao profissional […] ou o público […]. Personas não são fixas às suas motivações originais que levaram às suas criações, mas escorregam por registros da performance (Barbour, 2014), um processo que é facilitado pela natureza mediada e coletiva da produção de persona” (p. 7), explicam os autores. De certa forma, essa argumentação se assemelha com a visão weberiana sobre ações sociais, às quais trabalharíamos com a racionalidade, a afetividade e/ou a tradição para auxiliar nossas tomadas de decisões.

Nesse reconhecimento de intenção por trás da produção de persona está incorporado uma compreensão do agenciamento envolvido. Embora trabalhando dentro das possibilidades e restrições da tecnologia, estruturas de poder e normas sócioculturais, aqueles que constroem personas ainda estão tomando decisões ativas e importantes quanto ao modo que performam essa persona para seus micro-públicos. A máscara da persona é adotada durante sua performance e a persona pode então se tornar ‘algo’ pela qual outras ‘coisas’ são alcançadas. A produção de redes acontece pelas ações dos produtores da persona, e membros dessas redes podem igualmente contribuir para essa persona pelas suas escolhas e ações. Ações paratextuais como ‘curtir’ ou compartilhar conteúdos específicos são contribuições ativas para uma identidade pública ou semi-pública, e demonstra a importância das escolhas que fazemos em participação online (p. 7).

Quanto à reputação, os autores chamam a atenção dos trabalhos que têm investigado como a construção de personas online têm traduzido – até coercivamente – em mudanças de posturas da vida offline: “pesquisas sobre a natureza aspiracional das performances de identidade online […] parecem sustentar a ideia de que características aspiracionais são constantemente eventualmente incluídas e incorporadas numa persona offline” (p. 7). Em paralelo, a ideia de prestígio é relativizada: “O prestígio associado às personas – compreendido por aqueles que as criaram – é outorgado pelo micropúblico daquela persona”. Em outras palavras, é o intuito inicial da construção da persona que pode julgar e avaliar o sucesso do seu prestígio.

TRABALHOS NA EDIÇÃO

Como mencionei desde o início, o texto não se trata de um artigo, mas de um ensaio que introduz os trabalhos disponíveis no volume 3 no. 1 do Persona Studies. Os autores chamam atenção para o interesse desses artigos no papel de públicos conectados na construção de uma persona; a dinâmica interação entre públicos e atores para sua constituição; a relevância dos públicos nessa dinâmica constituinte; a sobreposição de públicos e trajetória transversal, dinâmica, móvel e flexível para a construção de personas em diferentes situações; e a responsabilidade da coerência expressiva (ou accountability) entre suas performances.

Quando levamos em consideração esses coletivos e redes e a interação que acontece entre e através deles; quando ficamos atento à performance, às mediações e aos mecanismos de adquirir e distribuir valor através de personas, como os artigos nessa edição consideram, é inevitável que consideremos também os componentes estruturais e estruturantes que condicionam e limitam a produção e performance de uma pessoa […]. As estruturas que condicionam personas são considerações cruciais, mas elas podem, se não formos cuidadosos, rapidamente esmagar coagir como fazemos sentidos de personas. Nós agora estamos, talvez, habituados às discussões sobre limitações e possibilidades das plataformas de tecnologia e mídias sociais na produção de identidades públicas digitais (p. 9).

Como mencionei no início do post, um dos grandes méritos do ensaio é construir uma tentativa de “estado da arte” do que tem sido referência e impactado diretamente no campo de pesquisa sobre identidades online no mundo todo. É evidente que a visão anglo-eurocêntrica impede que os autores australianos deem atenção à produção na América Latina, por isso fiz questão de citar alguns trabalhos também relevantes no contexto brasileiro – e que poderiam agregar ainda mais à discussão mundial, tivéssemos a mesma visibilidade dos norte-americanos. De qualquer modo, o a proposta das cinco dimensões para pensar personas online é muito bem construída, desenvolvida e argumentada – ainda que os próprios autores ratifiquem que não se trata de um framework totalitário, mas “úteis para considerar as relações entre tecnologia e identidades públicas digitais”.

Nessa edição da revista, estão presentes os artigos: “Get Off My Internets”: How Anti-Fans Deconstruct Lifestyle Bloggers’ Authenticity Work, de Sarah McRae; The persona in autobiographical game-making as a playful performance of the self, de Stefan Werning; Constructing the Antichrist as Superstar: Marilyn Manson and the Mechanics of Eschatological Narrative, de Patrick William Osborne; e The Hyphenated Persona: Aidan Quinn’s Irish-American Performances, de Loretta Goff. Vale também conferir, entretanto, a segunda edição de 2017, que traz mais textos sobre personas no contexto digital como Online Persona Research: An Instagram Case StudyTeenagers, Fandom and Identity, além do ótimo criativo User Personas and Social Media Profiles.

Referências bibliográficas

MOORE, C.; BARBOUR, K.; LEE, K. Five Dimensions of Online Persona. Persona Studies, vol. 3, no. 1, 2017.

boyd, d 2011, Social Network Sites as networked publics: Affordances, Dynamics, and implications. In: PAPACHARISSI, Zizi (Ed.). A Networked Self: Identity, Community and Culture on Social Network Sites.

Barbour, K 2014, Finding the Edge: Online persona creation by fringe artists, Doctoral Thesis, Deakin University, Australia.

Baym, NK 2010 Personal Connections in the Digital Age, Polity, Cambridge.

Butler, J 1999, Gender Trouble, 2nd edn, Taylor and Francis, Hoboken.

Donath, J (2007) ‘Signals in social supernets’, Journal of Computer Mediated Communication, vol. 13, no. 1, pp. 231-251.

Genette, G 1997, Paratexts: Thresholds of Interpretation, Cambridge University Press, Melbourne.

Habermas, J 1987 Theory of Communicative Action, Volume 2: Life-World and System: A Critique of Functionalist Reason, translated by Thomas McCarthy, Beacon Press, Boston.

Hall, S 2006, A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora.

Hansen, MB 2015, Feed-forward: On the Future of Twenty-first-century Media, University of Chicago Press, Chicago.

Hillis, K 2009, Online a lot of the time: Ritual, Fetish, Sign, Duke University Press, Durham.

Lemos, A 2003, Cibercultura. Alguns pontos para entender nossa época. In: LEMOS, André; CUNHA, Paulo (orgs). Olhares sobre a Cibercultura. Porto Alegre: Sulina.

Marshall, PD 2010, ‘Persona Studies: Mapping the Proliferation of the Public Self’, International Conference on Celebrity and News, 13-15 September, Geneva, Switzerland.

Marwick, AE & boyd, d 2011, ‘I tweet honestly, I tweet passionately: Twitter users, context collapse, and the imagined audience’, New Media & Society, vol. 13, no. 1, pp. 114–133, doi:10.1177/1461444810365313.

McNeill, L 2012, ‘There is no “I” in network: social networking sites and posthuman auto/biography’, Biography, vol. 35, no. 1, pp. 65-82, doi: https://doi.org/10.1353/bio.2012.0009.

Papacharissi, Z 2010, A networked self: identity, community and culture on social network sites, Routledge, New York.

Poletti, A & Rak, J 2014, Identity technologies: Constructing the Self Online, University of Wisconsin Press, Madison.

Polivanov, B 2012, Dinâmicas de autoapresentação em sites de redes sociais: performance, autorreflexividade e sociabilidade em cenas de música eletrônica. Tese. (Doutorado em Comunicação). Universidade Federal Fluminense: Rio de Janeiro.

Rainie, L & Wellman, B 2012, Networked: The New Social Operating System, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts.

Schau, H & Gilly, M. We Are What We Post? Self-Presentation in Personal Web Space. Journal of Consumer Research, Inc., v. 30, 2003.

O “nordestino” no Twitter em fevereiro: entre a política, o sotaque e a identidade

Desde que finalizei, entreguei e apresentei meu TCC, no final do ano passado, tenho buscado alternativas para continuar com um possível projeto de mestrado que me permita ingressar numa pós-graduação com tema semelhante. Já tive algumas ideias (específicas, outras mais abrangentes), mas – por enquanto – não tenho nada definido. Nesse cenário confuso e incerto, uma das ideias que tive foi criar uma base de dados sobre nordestinos no Twitter para que pudesse, talvez, desenvolver algo em cima disso num futuro próximo. Mensalmente, portanto, devo compartilhar uma visão geral do que foi conversado/discutido e quem foram os atores que fomentaram essa discussão.

O primeiro post foi publicado no blog do IBPAD, colocando em foco como as funcionalidades de text analysis e network analysis da ferramenta Netlytic podem ser extremamente úteis para pesquisas acadêmicas. Quanto aos resultados, no mês de janeiro, cerca de 60% das 37.333 menções no Twitter sobre nordestinos foram retweets, destacando três assuntos principais: sotaque (além de um caso específico fruto da cultura de fãs, outros mais relacionados a produtos televisivos da Rede Globo), política (o julgamento do ex-presidente Lula) e futebol (parceria entre times/campeonatos nordestinos e emissoras de TV para direitos autorais de exibição). Em fevereiro, o cenário não mudou muito.

Desta vez, entretanto, pretendo seguir caminho inverso ao que fiz no primeiro post, apresentando inicialmente a rede composta pelos usuários para, em seguida, destrinchar os assuntos mais comentados. A lista de arestas gerada pela Netlytic resultou numa rede com 16.068 nós (usuários) e 17.270 arestas (conexões). Como, para essa primeira abordagem, o que me interessa é visualizar “the big picture”, utilizei a métrica de componentes conectados para filtrar apenas o grupo da rede com maior número de conexões entre si, o que resultou em 63,38% da rede: 10.283 nós e 12.980 arestas. No grafo abaixo você pode visualizar melhor a rede completa e, destacado em marrom, o maior componente conectado.

Direcionar o olhar para o grupo mais conectado é relevante pois é ali onde as discussões, embates e conversas em geral sobre a temática acontece mais calorosamente – o que não indica que todo o resto deve ser ignorado ou subestimado (retornaremos a ele mais adiante), mas que o processo de analisar a estrutura de conversações pode oferecer insumos gerais para a análise mais detalhada. Apresento, portanto, logo abaixo, a rede já com o filtro de componente conectado, os nós em menor proporção para destacar os agrupamentos e os principais clusters destacados com suas devidas cores. São eles, respectivamente: política-esquerda, com 2.717 nós (26%); cultura pop, com 2.462 nós (24%); futebol, com 1.225 nós (11%) e política-direita, com 771 nós (7%).

Cluster Azul – Política-Esquerda / Cluster Verde – Cultura Pop / Cluster Vermelho – Futebol / Cluster Marrom – Política-Direita

Além dos clusters, o grafo também permite perceber outro aspecto importante dessa rede: trata-se, mais uma vez, de uma rede bem dispersa e com baixo índice conversacional (usuários mencionando uns aos outros, como uma conversa). Assim como em janeiro, há vários agrupamentos do tipo broadcaster que indicam fontes de replicações de mensagens através de retweets – ou seja, em termos simples, são vários usuários dando “RT” em uma mensagem específica. Dos 26.002 tweets coletados, 12.971 são retweets (49%); na rede de maior componente conectado, essa porcentagem aumenta – já que a métrica foca justamente nas conversas com mais interações (menções e retweets): dos 13.317 tweets, 10.128 são retweets (76%).

Quem são, portanto, esses atores responsáveis pela mobilização de milhares de usuários quanto ao assunto “nordestino”? O maior cluster, que agrega usuários em torno do assunto política, é encabeçado por: @conversaafiada, @eduguim e @lulapelobrasil; logo em seguida, o cluster de cultura pop é liderado por @whomath e @bchartsnet; quando o assunto foi futebol, @brunoreis, @resenhabbmp e @ecvitoria comandaram a conversa; e, por fim, @lula_nacadeia e @rj_em_alerta são os principais mobilizadores no cluster razoavelmente heterogêneo (e bem disperso) da política-direita. No grafo abaixo (clique para ampliar) estão apresentados os usuários com maior grau de entrada, ou seja, que receberam mais menções ou retweets sobre o tema em fevereiro.

Um dos benefícios de trabalhar os dados para além da Netlytic está em poder manuseá-los com mais facilidade. Ao extrair a lista de arestas para elaboração da rede no Gephi e o arquivo .CSV com todas as menções coletadas, pude cruzar essas fontes de dados para descobrir quais eram os tweets da base de dados referentes a cada cluster. Ou seja, de maneira mais detalhada: 1) a partir da rede gerada (com o filtro de maior componente conectado), exportei uma planilha com as métricas referentes aos nós; 2) inseri essa base na planilha com os tweets coletados para que tudo se mantivesse num único arquivo; 3) utilizei a fórmula PROCV para, na base de tweets, criar uma coluna que indicasse a qual cluster aquela linha se referia.

Com esse processo, semelhante ao que fiz nessa outra análise também do Twitter, pude separar os tweets para que se tornasse mais fácil identificar o que cada grupo – levando também em consideração o volume considerável de retweets – estava mencionando sobre o tema. Desta forma, elaborei as nuvens de palavras abaixo a partir dos tweets de cada um dos cinco clusters destacados, respectivamente. No entanto, o que se pode perceber é que, como era de se esperar, os termos mais frequentes em cada grupo é referente principalmente às mensagens com maior número de retweets – o que acaba limitando um pouco a exploração dos dados.

A primeira nuvem de palavras, referente ao cluster de polícia voltada à esquerda, apresenta a maioria dos termos relacionados ao tweet de @conversaafiada, @bbcbrasil e @lulapelobrasil; a segunda nuvem, esverdeada, traz basicamente os termos referentes aos tweets populares de @whomath e @bchartsnet; no cluster de futebol, a nuvem de termos em vermelho representa em sua grande maioria os tweets mais populares do jornalista e comentarista esportivo @brunoreis; por fim, no grupo de política à direita, o tweet do usuário @Lula_nacadeia é o que mais reverbera na nuvem de palavras.

Tweets que movimentaram a conversa sobre nordestinos em fevereiro

  1. @whomath: “nayara falando de representatividade nordestina, nem parece que zoou a gleici dias desse pelo fato dela ser do acre kkk hipócrita #bbb18”
  2. @bchartsnet: “Uma rainha negra, gorda, da favela, empoderada. Outra rainha LGBT, nordestina e com visibilidade internacional. Ambas tendo destaque na maior festa popular do mundo juntas 💗! Vem, Beija-Flor! #globeleza”
  3. @conversaafiada: “Diálogo entre garçom nordestino e empresário coxinha em restaurante chic de SP. Empresário tentava provar a amigo rejeição do Lula entre os pobres: Empresário: em quem você vai votar para presidente? Garçom: no Lula Empresário: e se não for candidato? Garçom: em quem ele mandar”
  4. @eduguim: “Grande parte do eleitorado Nordestino, mais afinado com o PT, irá descobrir que não pode votar só quando chegar na urna em outubro, Denuncie armação do TSE para barrar a esquerda em 2018, sob a batuta de Luiz “mato no peito” Fux. Espalhem enquanto é tempo”
  5. @lulapelobrasil: “O povo nordestino deixou de ser tratado apenas pela fome, pela mortalidade infantil e pela evasão escolar e passou a ser considerado parte do Brasil. Eu tenho confiança de que podemos recuperar o Brasil.”
  6. @kaiooliveiras: “Um nordestino q não gosta de farofa tem q ser exilado do país.”
  7. @brunoreis: “Tenho dito, Matheus, atacante do ABC hoje é o melhor jogador do futebol nordestino. Tem 9 gols em 7 jogos no ano. Artilheiro do futebol brasileiro em 2018. Menino de personalidade. Clareou, chutou. Bem no estadual e no nordestão. Ano passado foi bem também. 19 anos apenas.” [tweet apagado]
  8. @priscilaevelynn: “amo comida nordestina aaaaaaaaaaa”
  9. @bbcbrasil: “#MaisVistos Família nordestina guardou séculos de romances medievais de mais de 700 anos na memória http://bbc.in/2GGQZp9”
  10. @lula_nacadeia: “Mas pra muitos ignorantes no nordeste, luladrão é o “pai dos pobres” povo burro! E antes que venham encher o saco, eu sou nordestino. @Isabellniky @BecaBrix @HumbertoReisJr @Henrietterrsa @iaragb @MsCMauro @wwrealist @SPD_33 @FUSSHIGHLANDER”

Embora a análise de redes seja uma metodologia extremamente útil para (literalmente) visualizar como as conversas aconteceram, uma vez que não é o meu objetivo principal focar na estrutura das interações para possivelmente encontrar grupos e/ou atores relevantes nesse cenário, é preciso também voltar o olhar para além da base mais popular/mobilizada. Como mencionei anteriormente, iniciar a análise voltando o olhar de rede para a parte mais conectada pode indicar temas relevantes para análises mais específicas – e assim conseguimos perceber discussões sobre política principalmente centrada no ex-presidente Lula, a “nordestinidade” como categoria compreendida pela cultura pop e o recorte regional nas disputas (simbólicas) esportivas.

Para superar as barreiras dos tweets e clusters mais populares/mobilizados, criei uma nuvem de palavras somente com as menções coletadas que ficaram de fora da rede de maior componente conectado. No resultado, alguns assuntos já identificados continuaram presentes: lula, bb18, nayara, futebol, garçom, restaurante e empresário – todos termos já levantados nas nuvens de palavras dos clusters. No entanto, a palavra com mais destaque, que apareceu também em janeiro, mas ainda não havia aparecido nesta análise, é “sotaque” – que aparece em associação direta a outros termos também em evidência, como “amo”, “paulista”, “carioca”, “gosto” e “ouvir”. Na maioria dos tweets, aparece em tom de exaltação e também em comparativo com outros semelhantes.

Uma questão muito interessante a discutir sobre esse assunto é como parece haver um imaginário social do que seria o “sotaque nordestino”, como um representante único de nove estados distintos, enquanto outros…: “Qual é o seu sotaque favorito? — Carioca, gaúcho, Paulista, nordestino, ah todo”. Pensando o sotaque como uma representação exclusivamente oral, uma hipótese a ser levantada é que essa convenção do que seria um sotaque nordestino pode ter surgido a partir das representações do que seriam também personagens “nordestinos” na televisão e no cinema. Nesse contexto, a categoria “nordestino” é aplicada a um todo identitário muito maior que deve supostamente dar conta de milhões de pessoas com diferentes valores, tradições e referências – semelhante à discussão que travei também no meu TCC.

No mais, termos como “anos”, “sertão”, “chuva”, “romances” e “família” são referentes a dois tweets com certa repercussão relevante: “A chuva volta ao sertão nordestino após seis anos de seca. Agora o sertanejo espera a volta de Lula” e “Família nordestina guardou séculos de romances medievais de mais de 700 anos na memória https://t.co/JU57dnfUAj”. No entanto, o que mais tem me chamado a atenção, desde a primeira análise, é a presença de outras palavras como “gay”, “negro(a)” e “mulher”. Como aparece no tweet da @bchartsnet, um dos mais populares de fevereiro contendo o termo “nordestina”, esta categoria identitária aparece ao lado de outras muito mais consolidadas (e diria até, respaldadas) numa espécie de osmose interseccional das minorias.

Interseccionalidade é uma sensibilidade analítica, uma maneira de pensar sobre a identidade e sua relação com o poder. Articulada originalmente em favor das mulheres negras, o termo trouxe à luz a invisibilidade de muitos cidadãos dentro de grupos que os reivindicam como membros, mas que muitas vezes não conseguem representá-los. O apagamento interseccional não é exclusivo das mulheres negras. Pessoas negras ou de outras raças/etnias dentro dos movimentos LGBT; meninas negras ou de outras raças/etnias na luta contra o sistema que empurra os jovens da escola para a cadeia; mulheres nos movimentos de imigração; mulheres trans dentro dos movimentos feministas; e as pessoas com deficiência lutando contra o abuso policial — todas essas pessoas sofrem vulnerabilidades que refletem as interseções entre racismo, sexismo, opressão de classe, transfobia, capacitismo e muito mais. A interseccionalidade deu a muitas dessas pessoas uma forma de destacar as suas circunstâncias e lutar por sua visibilidade e inclusão.
Kimberlé Crenshaw

Este é um “fenômeno” que venho trabalhando desde a monografia e que está diretamente relacionado com o sentimento e a sensação de “orgulho” que costura todas as disputas simbólicas em torno do sentir-se (ou autointitular-se) nordestino. É interessante pensar sobre isso porque a interseccionalidade, como foi “criada”, nasceu nos Estados Unidos, portanto, discuti-la no contexto brasileiro deve levar em consideração várias outras instâncias históricas de poder e relações sociais. Além disso, há uma lacuna entre o sentimento de orgulho como resposta a ataques externos (que foi o que discuti no meu TCC) e classificar essa identidade como legítima da interseccionalidade no contexto brasileiro (que pode ser o meu projeto de mestrado, quem sabe?). Com a cabeça borbulhando mas ainda sem uma ideia definida, sigo acompanhando.

O que faz ser nordestino no Facebook?

No dia 19 de dezembro de 2017, depois de quatro longos anos, apresentei no bloco A do campus Gragoatá da Universidade Federal Fluminense o meu trabalho de conclusão de curso na graduação em Estudos de Mídia. Com um misto de imensa gratidão e desconcertante despedida, defendi a minha monografia, “O que fazer ser Nordestino no Facebook: Escolhas da construção identitária nos sites de redes sociais”, frente à melhor banca que poderia ter escolhido para fechar esse ciclo com chave de ouro.

Quem me acompanha no Twitter sabe que não foi uma jornada fácil – e nem rápida, já que comecei a confabular a ideia para esse trabalho ainda no primeiro semestre de 2016. Com alguns tropeços (burocráticos e da vida mesmo) no caminho, a verdade é que eu só sentei para realmente escrever os capítulos no segundo semestre de 2017 – escrevendo o segundo e terceiro capítulo só em novembro, ou seja, em apenas algumas semanas. A minha sorte é que, embora tenha deixado a produção para a última hora, já tinha lido e catalogado a grande maioria das minhas referências meses antes.

Como comentei no Twitter, o sufoco para finalizar esse trabalho não se deu por falta de aptidão pelo tema, mas apenas pela irresponsabilidade cronológica das minhas obrigações. Garanto, no entanto, que foi o meu entusiasmo pelo tema – e pela ideia em geral – que me forneceu o combustível necessário para escrever mais de 60 páginas apenas em duas/três semanas. Poder levantar a discussão sobre identidade, cultura, representação, Nordeste, autoapresentação, performance e sites de redes sociais em um único trabalho fez com que a escrita saísse com suor, mas com um imenso sorriso no rosto.

Embora o tema – ou melhor, os temas – possam parecer óbvios para a minha pessoa, não foi fácil chegar nele(s). No quinto período, quando fiz a disciplina Metodologia de Pesquisa, foi realmente quando tive que colocar no papel as ideias que tive durante os três anos de graduação para elaborar um anteprojeto. Revirei minhas anotações, as disciplinas que fiz, tweets que publiquei… E cheguei à conclusão que queria falar de identidade e sites de redes sociais, só faltava um meio termo. Felizmente no mesmo período tinha feito um trabalho sobre a Brasileiríssimos que me orientou por onde deveria seguir, até que cheguei à Nordestinos.

A ideia inicial (do anteprojeto) era fazer uma análise da representação do Nordeste nessa página, mas descartei eventualmente essa proposta porque queria focar mais em identidade e menos em representação/análise do discurso (embora seja tudo muito imbricado). Isso porque era uma questão que me atravessava diretamente (saí de Aracaju com 17 anos para São Paulo e depois Rio de Janeiro, então a identidade nordestina era “percebida” pelos outros de forma constante na minha vida no Sudeste) e também devido à minha afiliação teórica com a discussão sobre identidade – e não tanto com análise do discurso (muito relevante para avaliar o conteúdo de uma página), por exemplo.

Antes de começar a escrever o trabalho, meu orientador – Prof. Dr. Marildo Nercolini – orientou que eu produzisse, sem me preocupar com a burocracia das referências, um texto sobre o que eu tinha em mente. Deveria ter somente duas páginas, mas acabei escrevendo sete. Com o entusiasmo, cheguei a produzir um artigo para o XIII ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, que infelizmente não foi aceito. Fiquei bastante abatido na época, porque era uma das minhas metas de 2017, mas concordei com todos os apontamentos do avaliador. Embora tivesse uma boa base teórica, partiu de um texto na primeira pessoa e faltou uma análise mais densa.

Confesso que me desanimou um pouco, e talvez tenha sido esse o motivo pelo qual demorei tanto para começar a escrever o TCC. Fui negado em maio, escrevi o primeiro capítulo em julho e fui revisar só em setembro. Felizmente meu orientador não me abandou em nenhum momento e me deu todo o apoio necessário para que eu terminasse o trabalho em tempo recorde. E, finalmente, depois de tantos altos e baixos, consegui produzir algo do qual me orgulho muito e fiquei bastante feliz com o resultado. Independente da avaliação da banca, estava satisfeito com o meu trabalho. Sem mais delongas, portanto, compartilho aqui – para quem tiver interesse – a minha monografia:

Talvez eu deva começar explicando pelo título, que não foi bem aceito pela banca. A minha ideia inicial era seguir pelo óbvio “A identidade nordestina no Facebook”, mas não consegui encontrar um subtítulo que não repetisse a mesma ideia do título, complementando-o – como deveria ser. Foi somente nos últimos dias de produção que me veio o título final, no qual a proposta é fazer uma referência direta ao livro “O que fazer ser nordestino: identidades sociais, interesses e o ‘escândalo’ Erundina”, escrito por Maura Penna na década de 90 e uma das principais referências bibliográficas no meu trabalho. Reconheço, entretanto, que pode soar estranho para quem não conhece a obra – a grande maioria das pessoas.

Fora isso, o trabalho foi muito bem aceito pela banca que apontou apenas algumas (várias, na verdade: eu falei por 20 minutos e elas falaram por 2/3 horas) considerações de correção e/ou melhorias. Em suma, a proposta do TCC era responder à pergunta: por que as pessoas optam por acionar a identidade nordestina nos sites de redes sociais? Para isso, estruturei da seguinte forma: no primeiro capítulo, fiz um levantamento histórico-bibliográfico de como “surge” o Nordeste e o nordestino; em seguida, dedico todo o segundo capítulo à discussão sobre identidade, sob diferentes perspectivas: nacionais, regionais, fragmentadas e, finalmente, nos sites de redes sociais; finalizo o trabalho com as respostas ao questionário que apliquei com usuários do Nordeste.

Fiquei muito feliz que, nesta última etapa, encontrei uma solução metodológica utilizando a análise de redes. Explico: a minha pergunta principal parte do pressuposto de que há pessoas que acionam essa identidade nos sites de redes sociais, então, como posso encontrá-las? Poderia optar por simplesmente selecionar alguns amigos meus e pedir que respondessem ao questionário, mas achei que a análise de redes me ofereceria um critério “científico” muito mais válido. Aquele trabalho que publiquei aqui no post alguns meses atrás, do mapeamento do Nordeste no Facebook, portanto, serviu como base para que eu encontrasse as páginas mais “influentes” no contexto da minha pesquisa – a identidade nordestina. Com essa lista em mãos, utilizei como requisito básico para encontrar usuários aptos a responder o questionário.

Enfim, consegui colocar identidade, cultura, representação, Nordeste, sites de redes sociais, autoapresentação e análise de redes (que por tanto tempo fugi) num mesmo trabalho – e, portanto, repito: não poderia estar mais feliz com o resultado. A versão que trago acima já é corrigida após os apontamentos da banca, na medida do possível. Algumas considerações mais complexas (e foram muitas, o que me deixou muito animado) eu anotei como ideia para levar ao mestrado, a nova meta de 2018. Acho importante reconhecer, inclusive, uma limitação do projeto: o questionário em vez da entrevista, o que “limitou” as respostas dos informantes para averiguar com mais afinco a especificidade dessa construção identitária nos sites de redes sociais, como apontou Prof. Dra. Beatriz Polivanov.

Para finalizar, reconheço que não apenas a questão sob a viés dos sites de redes sociais pode ser um campo muito interessante a ser explorado num programa de pós-graduação em comunicação, mas diversas outras questões como estigma, preconceito, estereótipo, disputa, orgulho e diáspora. Dentre as falas da banca, uma das que mais me marcou foi da Prof. Dra. Ana Lúcia Enne: é difícil deslocar a identidade quando se ancora na natureza (como álibi climático comumente associado ao Norte), pois o significante é muito poderoso, o que dificulta destruir o estereótipo. Mais difícil do que mexer no significado, portanto, é disputar o significante. Sobre isso, compartilho o que escrevi nas considerações finais após essa consideração na defesa:

Nascido em Salvador, parti para Aracaju com apenas 5 anos e deixei a capital somente aos 17, quando fui para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro fazer faculdade. Como qualquer pessoa que sai do Nordeste em diração ao Sul, tive que lidar em algum (ou alguns momentos) com a diferenciação do “outro”, geralmente facilitada pelo conflito de sotaques. Desde então, a classificação “nordestino” atribuída a mim – e a outros milhões – sempre foi uma questão que me intrigava. Com as leituras que fiz no curso, a reflexão de anos ficou ainda mais complexa e, de certa forma, até mais complicada.

Essa dificuldade de lidar com a questão da autoatribuição nordestina pairou toda a escrita deste trabalho, uma vez que as reflexões sobre o “ser nordestino” após a minha migração já trazia uma leitura da identidade nordestina como representada nas obras de arte, como uma condição de sofrimento e adversidades. Se o texto parece impessoal, é somente devido a essa angústia que ainda me agonia. Ao tentar fugir do estereótipo, acabo negando-o e, ao mesmo tempo, legitimando-o. Afinal, “sou” nordestino, mas nunca passei por dificuldades (estruturais) na vida. Será que, então, poderia me identificar enquanto nordestino? Depois de tudo isso, acredito que sim.

Be Right Back: a narrativa do “eu” e a coerência expressiva no episódio de Black Mirror

Este é um post que estava engavetado há meses. Prova disso é que tenho, no meu quarto, um quadro branco onde mantenho minhas tarefas, aspirações e inspirações; hoje, quando tentei apagar “post Black Mirror e coerência expressiva”, uma mancha deixou uma marca como se me dissesse para não adiar tanto assim as minhas ideias que precisam ser desenvolvidas na prática. Portanto, antes tarde do que nunca, compartilho aqui no blog várias das inquietações que me fisgaram quando assisti à série Black Mirror – mais especificamente, ao episódio “Be Right Back”, da segunda temporada – e por que ele me remeteu tanto à ideia de coerência expressiva, desenvolvidos por Polivanov e Sá (2012). Antes de entrar nos detalhes da história e como relacionei com esse conceito, precisamos falar de Black Mirror.

Nas palavras da Wikipédia: “Black Mirror é uma série de televisão britânica antológica criada por Charlie Brooker, que apresenta ficção especulativa com temas sombrios e às vezes satíricos que examinam a sociedade moderna, especialmente no que diz respeito às consequências imprevistas das novas tecnologias”. Nas minhas palavras, é uma série enxuta – são apenas duas temporadas com três episódios cada, e um especial de Natal – que traz uma história diferente (com elenco, cenografia, tudo diferente) em cada episódio. Os temas perpassam discussões acerca de política, moral, sociedade do espetáculo, memória, morte, tecnologia e a nossa relação com as mídias em geral. Mesmo que não a conheça, talvez tenha ouvido falar que a terceira temporada estreia no dia 21 de outubro deste ano na Netflix – provavelmente um dos principais motivos que me coagiu a tirar esse post da gaveta. Não serei aquela pessoa que insistirá que você assista à série, mas recomendo muito, principalmente para profissionais, pesquisadores e pensadores das áreas de comunicação, tecnologia, política e mídias.

Imagem: Netflix
Imagem: Netflix

Como já mencionei, embora todos os episódios tenham mexido muito com a minha cabeça (esse é o objetivo), o episódio que quero abordar aqui é o primeiro da segunda temporada, intitulado “Be Right Back” (Volto Já, em tradução livre). A história é a seguinte (com ajuda do imdb): Martha e Ash são um casal de apaixonados que decidem morar juntos numa casa do interior. Um dia depois da mudança, ao devolver a van alugada para tal, Ash se envolve num acidente de carro fatal. No funeral, uma amiga de Martha recomenda um serviço novo que ajuda pessoas em luto a lidar melhor com a situação, criando um Ash “virtual” que se comunica com ela através de informações (dados) obtidos de mídias sociais e da internet como um todo. Ela não aceita bem a indicação da amiga, mas esta acaba a inscrevendo no serviço mesmo assim – o que só descobre quando recebe um e-mail do “novo” Ash. A partir daí, ela começa a ter vários embates pessoais e morais sobre (não manter) essa relação com esse personagem, e a trama se desenvolve justamente nesses conflitos internos. Podemos seguir daqui.

Dada essa introdução, pretendo apresentar quase que cronologicamente – porém de forma bem aleatória, arbitrária – – algumas questões que o episódio levanta. A primeira “problemática” sobre a qual precisamos nos debruçar é a questão da hiper-visibilidade e superexposição. Aqui, entretanto, não enxergo essa questão de modo conservador como vários estudos sobre privacidade, vigilância e narcisismo tem tratado este assunto – embora tenha esta linha de pensamento como importante para reflexão, acredito humildemente que parte de um juízo de valor um pouco ultrapassado que precisa, para avanço do debate, ser superado; recomendo, neste sentido, o subitem“Os discursos sobre a superexposição do eu e a era da vigilância”, do primeiro capítulo do livro Dinâmicas identitárias em sites de redes sociais, da Prof. Dra. Beatriz Polivanov, no qual ela revisa essas discussões e propõe uma brecha na para seguirmos em frente. Ainda assim, mesmo que o debate fosse trazido para discussão, eu argumentaria que, pros fins da história, essa superexposição acabou sendo bom para o personagem.

Explico: o “novo” Ash, sintético, passa por um processo de machine learning. Para que ele se torne o Ash que Martha, sua esposa, consiga identificá-lo como seu antigo marido, o serviço no qual sua amiga a inscreve consome todo tipo de conteúdo que o “verdadeiro” Ash já publicou online – não apenas em mídias sociais, mas também em e-mail, mensagens instantâneas, etc. Cada rastro social digital que ele tenha deixado enquanto vivo se transforma em fonte de alimento para que o robô (se é que posso utilizar esse termo tecnicamente estigmatizado) simule – e aqui reitero a noção de reproduzir – quem ele era antes. Isso expõe a importância de que ele tenha, ainda vivo, criado uma identidade (performance, ou narrativa, como prefiro) de quem ele era no ciberespaço. E, por mais importante que essa construção do eu enquanto conflito interno seja importante psicologicamente falando, argumento que ainda mais importante é o fato de, para além de se construir, narrar a sua construção. A identidade que ele criou para si quando era vivo, para que se tornasse “completa”, necessitava da interação com o outro – ou seja, precisava ser narrada.

Acho importante tocar nessa questão porque é algo que me parece essencial à discussão da construção de si, como vão argumentar diversos autores como Hall, Pollak e Bourdieu – a identidade é construída no discurso, na linguagem. Na minha humilde opinião, os trabalhos apresentados sobre a construção do eu no ciberespaço parecem ter superado muito fácil essa ideia e se ancoram demais (justificadamente) nos conceitos apresentados por Goffman. A meu ver, o sistema de interpretação e comunicação é um só, o que muda nesse (novo) contexto é apenas as plataformas e dispositivos de narração. No entanto, vou segurar esse argumento aqui para que o post não se torne muito grande e complexo (e porque é debate pra cacife grande), quando a proposta que pretendo trazer para discussão aqui é outra: a ideia de coerência expressiva. Isso quer dizer que, para além de atuar nesses instrumentos e dispositivos de narração para compor a sua identidade, o sujeito depende do outro para se constituir. Eu crio minha narrativa através das construções sociais e culturais que me atravessam mas projeto sempre minha história no outro.

É este processo que chamamos de coerência expressiva dos atores nas redes sociais. E com esta expressão, interessa-nos demarcar este processo, intensamente complexo, precário, inacabado, de ajuste da “imagem” própria aos significados que se quer expressar para o outro, e que é muito fortemente ancorado na utilização de bens culturais-midiáticos, tais como letras de músicas, filmes, clipes, etc., utilizados a partir da avaliação pelos atores de sua adequação ao que querem expressar, traduzir, apresentar e comunicar nos sites. Processo que se dá em tensão, sujeito a ruídos, uma vez que sempre atravessado pela relação com os outros atores da rede sócio-técnica na qual o usuário se insere. O que nos permite sugerir, talvez, uma ilusão da coerência expressiva, à maneira como Bourdieu fala da ilusão biográfica, a fim de desconstruir qualquer suposição de estabilidade, controle ou de concretude do sujeito como resultado do processo. (Sá e Polivanov, 2012)

Da primeira vez que assisti ao episódio, este foi o aspecto que mais me chamou a atenção. Um dos maiores embates e conflitos internos pelo qual a personagem principal, Martha, passa, é nessa questão de ter, naquele robô, uma narrativa reflexivamente construída que emula quem seu marido um dia foi. Desde o primeiro contato entre os dois, quando ela recebe o e-mail desse ser virtual e se dispõe a respondê-lo, o elo que eles criam se dá pelo fato que a máquina tenha processado as informações e aprendido a simular o que Ash falaria. E isso, esse conforto que ela constrói conforme eles vão se comunicando, é possibilitado apenas pelo modo como ele se apresentava online. Para além disso, reforço o fato de que essa narrativa que ele construiu enquanto vivo no ciberespaço era construída num sentido de auto-reflexividade que também supera, em certos pontos, o argumento da exposição descontrolada ou desenfreada no ambiente das mídias (e sites de redes) sociais. Quando ela se depara com a versão material do “computador”, o elogio que ela faz à sua aparência e a resposta que ele dá (“as fotos costumam ser boas”) ratifica o processo meticuloso pelo qual a narrativa mediada por computadores tem nos submetido durante os anos.

Imagem: Netflix
Imagem: Netflix

Ainda nesse contexto, mas reforçando mais a ideia de que só nos construímos no outro, há uma cena (duas, na verdade) que parecem ter sido escritas propositalmente para que fosse levantada essa questão na discussão: ainda vivo, Ash decide publicar em algum site de rede social uma foto dele ainda criança. Ele justifica essa ação explicando à esposa que acredita que as pessoas irão achar aquela foto engraçada. No entanto, na mesma cena, ele revela que aquela foto não tinha nada de engraçada – remontava, em sua memória, pelo contrário, um fato bem triste. Ou seja, ele resignificou aquela imagem para conscientemente criar uma nova narrativa simbólica do que aquele evento o remetia. No final do episódio, esse arco narrativo é retomado (talvez em tom de crítica) quando o robô Ash vê aquela foto na sala e comenta: “Ha, engraçado” – provavelmente porque o desenrolar da ação primária do Ash “verdadeiro”, quando publicou a foto no SRS, tenha se dado nesse contexto cômico da situação, através de comentários de amigos e do próprio em resposta àquele estímulo comunicacional. Isso, no entanto, coloca-nos outro fato muito importante – que, novamente, rebate a superexposição desenfreada: a narrativa que construímos de nós mesmos no ciberespaço é insuficiente.

Esse embate que limita a simulação de Ash entra em pauta principalmente no final do episódio, quando pequenas situações de desconforto são criadas entre Martha e o “novo” Ash. Num primeiro momento, a história toca nesse aspecto quando, numa cena de sexo, o personagem explica que não há “registros” desse contexto processadas pela sua tecnologia de deep learning – o que é rapidamente superado pela proposta de aprendizado em outras fontes, no caso, sites de vídeos pornô. Esse embate pode ser reforçado pelo argumento de Silva (2015, online) que explica que “produtos que atendem necessidades fisiológicas são alvo de conversações nas mídias sociais quando atendem também necessidades simbólicas”, contextualizando – e abrangendo – essa argumentação a um universo maior de conversação, que não envolve apenas produtos, mas a sociabilidade digital como um todo. No final da história, essas incongruências começam a se tornar ainda mais conflitantes para a personagem principal, num contexto no qual acho coerente apresentar um conceito de Giddens abordado no artigo em questão:

Em seu argumento, o autor lista seis características principais das relações puras, quais sejam:

1) “em contraste com laços pessoais próximos em contextos tradicionais, a relação pura não está ancorada em condições exteriores da vida social e econômica – é como se flutuasse livremente” (2002, p. 87);

2) “a pura relação é buscada apenas pelo que a relação pode trazer para os parceiros envolvidos (…) é precisamente neste sentido que a relação é ‘pura’” (p. 88);

3) “a relação pura é reflexivamente organizada, de modo aberto e em base continua”. (p.89);

4) “o ‘compromisso’ tem um papel central nas relações puras” (p. 89);

5) “a relação pura enfoca a intimidade, que é uma condição principal de qualquer estabilidade de longo prazo que os parceiros logrem atingir” (p. 91) e;

6) “a relação pura depende da confiança mútua entre os parceiros, que por sua vez se liga de perto à realização da intimidade. (…) a confiança não é e não pode ser tida como “dada”: como outros aspectos da relação, deve ser trabalhada – a confiança do outro precisa ser ganha” (p. 92).

Sob essa perspectiva de Giddens, é essa questão da relação pura que escancara as rachaduras do novo “relacionamento” do casal. Estendendo-se nessa ideia, Sá e Polivanov (2012) explicam o conceito de self-disclosure de Baym no qual “a necessidade de ‘abertura’ para com a figura do outro de forma a mostrar-se como sujeito ‘crível’, ‘verídico’ e passível de se tornar confiável” é traço fundamental para a relação pura. No entanto, esse argumento poderia ser rebatido com o fato de que, nos sites de redes sociais, temas como sexo não são realmente expostos, mas em outros canais como e-mail, mensagens instantâneas, etc., poderiam ser. É aí que entra uma questão mais subjetiva, na qual a quebra de expectativa que prejudica o relacionamento e auxilia na quebra de sentido que a narrativa de machine learning construíra para Ash acontece porque o “eu” construído não é total, ou seja, não corresponde à compreensão de Martha do que seu marido, enquanto sujeito plural, apresentava ser. Uma das últimas cenas, bastante emblemática, quando, depois de passar por todos esses conflitos, ela desabafa e pede que ele se destrua – jogando-se de um penhasco – exemplifica sua “limitação” identitária.

Imagem: Netflix
Imagem: Netflix

No entanto, retomando minha argumentação no sexto parágrafo sobre narrativas e plataformas, confesso que sou um pouco cético sobre essa limitação ser um aspecto exclusivo de plataformas e dispositivos de comunicação mediada por computador. Como também mencionei anteriormente, a construção da identidade é feita no discurso, na narrativa, é uma construção linguística. Entretanto, a meu ver, a própria língua enquanto instrumento comunicacional é limitante ao tentar fixar (e representar) a identidade. Ou seja, a identidade, nesta minha linha de raciocínio, é múltipla, flexível, contínua, inconstante, etc. demais para que alguma ferramenta comunicacional seja capaz de narrá-la em sua plenitude. Por isso tenho a interpretação de “presentation” em Goffman (graças a minha querida prof. Ana Lúcia Enne), como aquilo que se presentifica, que pode vir a ser (um devir) como mais apropriada para pensar a construção identitária narrada pelos sujeitos.

Para finalizar, gostaria de pedir paciência (e compreensão) caso qualquer uma das minhas ideias apresentadas aqui tenham parecido pretensiosas ou prepotentes. Estou atualizando meu repertório sobre identidade no ciberespaço através de um projeto que tenho desenvolvido no estágio, que tem me proporcionado conhecer vários autores estrangeiros que já trouxeram à discussão esse caráter da sociedade atual. A minha ideia aqui era expor pensamentos, indagações, reflexões e inquietudes sobre o que pude absorver do episódio da série referida, para então trazer para debate e estar sujeito a quaisquer críticas que possam ser pautadas sobre minha argumentação. Espero que tenha sido prazeroso ao leitor e prometo (talvez) retomar as ideias deste post em outros momentos, talvez pelo terceiro episódio da nova temporada da série, que também vai abordar satiricamente a identidade na era das mídias sociais.

Referências bibliográficas

PEREIRA DE SÁ, Simone; POLIVANOV, Beatriz. Auto- reflexividade, coerência expressiva e performance como categorias para análise dos sites de redes sociais. Contemporânea, v. 10, n. 3, set-dez 2012, pp. 574-596.

SILVA, Tarcízio. Necessidades humanas, camadas simbólicas e o monitoramento de mídias sociais. Tarcízio Silva, online, 2015. Disponível em: http://tarciziosilva.com.br/blog/necessidades-humanas-camadas-simbolicas-e-o-monitoramento-de-midias-sociais/.

Política e identidade em rede: reflexões sobre práticas sociais contemporâneas

Começo este post avisando que daqui deve sair um misto de diário pessoal (devaneios), artigo acadêmico e publicação para a web. Se tudo encaminhar conforme minimamente organizado na minha mente, esse é o formato já instaurado e que continuar a seguir.

Diante do caos social e político que se estabeleceu no Brasil nesta semana, um dia após o processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, tomei a humilde decisão de associar uma espécie de “adesivo virtual” à minha foto de perfil do Facebook – com o simples fundamento, na minha cabeça, de que “não dava mais para não se posicionar”. Esse pensamento “fácil” se alinha ao fato de que: 1) demonstrei meu apoio a um candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, sendo que não resido atualmente na cidade; 2) mesmo que tivesse demonstrado o apoio a um candidato que simpatizo na minha cidade atual, seria um apoio simbólico, pois meu título eleitoral ainda pertence à cidade onde cresci, no Nordeste. Ou seja, naquele momento, o motivo por trás da minha ação não tinha nenhum valor “efetivo”, apenas simbólico – deixar claro a todos (amigos e desconhecidos) qual é o meu posicionamento político e quais valores estão associados a ele. E aí passei o dia refletindo sobre o assunto.

Trago aqui, portanto, alguns pensamentos, reflexões e devaneios pelos quais passeei durante os últimos dias. Antes de abrir essa porta, no entanto, acho importante dizer que fui atrás de bibliografia que me ajudasse a entender sobre o tema. Quem me conhece, conhece o blog ou já leu a página sobre mim daqui sabe o quanto eu valorizo a compreensão social (da sociedade) estruturada nas metodologias acadêmicas. Aprendi com uma queridíssima professora e não cansarei de propagar que as leituras da universidade (de “humanas”, pelo menos) nos ajudam a entender melhor o mundo em que vivemos. Busquei, portanto, em fontes confiáveis cujo trabalho já tive contato superficial em outros momentos: Raquel Recuero e Fábio Malini. Esses pesquisadores, no entanto, apesar de trabalharem bastante com a questão de política em rede, não abordam o tema pensando a construção de identidade, mas propondo (geralmente) análises de discurso pautado em dados de SRSs. Embora seja um bom ponto de partida para entender o contexto, não atendem à minha demanda.

Também procurei no Google Acadêmico, no Google normal e no Sci-Hub: não encontrei nada que se encaixasse minimamente na minha linha de raciocínio reflexivo. Confesso que a busca não foi tão apurada assim – tivesse menos ansioso para escrever sobre o assunto, talvez teria encontrado alguns materiais que dialogassem comigo de alguma forma. Portanto, peço humildemente ao caro leitor que: 1) caso conheça algum artigo, dissertação, tese ou qualquer produção acadêmica que corresponda aos pensamentos que vou expor aqui, ofereça tais sugestões na seção de comentários – agradeço desde já; 2) perdoa-me pela irresponsabilidade científica – mas lembra que isso é um blog e o formato desse texto já não corresponde às severas diretrizes da academia. Antes de abordar algumas questões relacionadas à construção de identidade em sites de redes sociais (contextualização importante para estruturar as ideias que compartilharei em seguida), trago aqui um trecho do livro “How the World Change Social Media”, que mapeia minimamente a bibliografia – internacional – sobre política e internet:

The immense literature available on the internet and politics, and more specifically on politics and social media, has changed over time. It began with a focus upon the role of the internet in new social movements in the 1990s, and was followed by the problem of digital divides and e-governance, the role of Web 2.0 platforms and user-generated content. Most recent studies have considered the consequences of the affordances of WiFi and mobile media such as smartphones, particularly regarding their role in organising collective political activity. Chadwick and Howard present an excellent volume on the critical debates about the relationship between the internet, state politics and citizenship, while Postill concisely summarises key research in digital politics and the ways in which ethnographic inquiry contributes to understanding the ecologies of protest movements. In the early 2000s there was a distinct sense of optimism around e-governance and e-government, and the potential they offered for bridging the digital divide. The internet and social networking sites were seen to be transforming ‘the public sphere’, a concept associated with social theorist Jurgen Habermas. More recently attention has been turned to the role of social media in organising political action, particularly in the various regional experiences of the Arab Spring. This was in a sense the turning point in such studies, prompted by Morozov’s work on the use of digital technologies for political repression during these events. Since then there has been a growing body of research critical of assumptions that the main role of digital technologies is to increase meaningful democratic participation. However, there is also considerable interest in the use of new media as the basis for alternative forms of collective action, for example research by the anthropologist Coleman on Anonymous and other online political activists.

A publicação faz parte da série Why We Post, um projeto de pesquisa comandado por Daniel Miller da University College London. Assinam, além do próprio, Elisabetta Costa, Nell Haynes, Tom McDonald, Razvan Nicolescu, Jolynna Sinanan, Juliano Spyer, Shriram Venkatraman e Xinyuan Wang, com uma visão antropológica sobre o uso das mídias sociais no Brasil, Chile, China, Inglaterra, Índia, Itália, Trindade e Turquia. Vale lembrar que, além das 11 publicações que serão publicadas até o final do projeto (três já estão disponíveis para download no site oficial), a terceira turma do curso correspondente ao projeto que começará em 31 de outubro na FutureLearn está com as inscrições abertas! Caso você tenha interesse no assunto (não só na temática política, mas pensar as mídias sociais de maneira antropológica como um todo), recomendo veemente tentar fazer o curso – será a minha também terceira tentativa de participar e eu garanto que dessa vez não passa. Mas voltemos ao que interessa…

Como muito bem detalhadamente explica a citação, os estudos sobre política e internet durante as últimas décadas têm observado a temática majoritariamente sobre o viés “tecnológico”, debatendo a funcionalidade das novas mídias digitais enquanto influência política na sociedade. A minha proposta para o post é pensar – e reitero: pensar, refletir, filosofar, sem nenhum compromisso de “responsabilidade” – o assunto política no que tange à construção do sujeito online. Para não dizer que não encontrei nada sobre a temática conforme minha linha de pensamento, compartilho aqui a conclusão do capítulo específico sobre política do livro supracitado do Miller, após uma análise que identifica três problemáticas relativas às normas de relacionamento nos sites de redes sociais, à imposição de monitoramento estatal sobre questões de política nacional em diferentes países e como essas duas coisas causam diferentes abordagens do tópico nas conversações:

In general we have found that, if one turns to ordinary field sites, politics on social media has a much lower profile than we might otherwise have expected. In some cases this may be because it is suppressed, leading to a highly conservative representation of people’s lives and opinions online. In other cases, however, it is because social media is more associated with entertainment and social bonding than with serious issues such as politics.

O problema é que essa conclusão não me atende. Desde 2013 a temática política não tem saído das pautas de conversa dos sites de redes sociais no Brasil, como corroboram vários – centenas? – de artigos acadêmicos que fizeram questão de abordar o assunto nos últimos anos. Só coloquei esse trecho para reforçar que eu procurei, sim, bibliografia sobre a dinâmica da qual o post trata. Na verdade, a citação me permite puxar um gancho que já tinha passado pela minha cabeça e trago aqui para começar a teorizar (irresponsavelmente) sobre alguns desdobramentos da temática; eu compartilho com o pensamento do campo dos Estudos Culturais que reconhecem a cultura como arena de disputas onde se travam as principais lutas políticas e sociais. Muitos autores também abordam esse tópico falando não (apenas) de cultura, mas também de discurso: Bahktin, Certeau, Bhabha, Hall e o próprio Foucault para falar de relações de saber e relações de poder. O que quero dizer é: quando falamos de política, falamos de cultura; quando falamos de cultura, falamos sobre disputa e relações de poder (política).

E aí precisamos resgatar Hall em “A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo” para entender como o debate entrou em pauta. No texto, ele explica que a cultura, desde o seu sentido mais amplo (produção de hábitos, valores, tradições, etc. que todo grupo social tem), é fundamental. No entanto, é a partir do século XX que a ela se torna uma problemática para o homem ocidental – quando, por volta da década de 50 e 60, torna-se central e substancial, numa espécie de revolução cultural que materializa a cultura, onde não há como escapar da discussão a que a cerca. Nesse contexto, quatro eixos da vida contemporânea podem ser compreendidos como condicionadores de sua substancialização: a expansão dos meios tecnológicos (cultura das mídias); a cultura e a globalização (multiculturalismo); cultura e cotidiano (o materialismo da sociedade de consumo de bens culturais); e cultura e identidade (subjetividades), o sujeito social e o sujeito eu.

Esse quarto eixo é o que mais me interessa no momento e que, de certa forma, abarca o contexto social que vivemos hoje – a ascensão individualista do sujeito e sua construção simbólica (identidade). Não é por acaso que essa “virada cultural” acontece também numa época onde há um levante forte de movimentos sociais (negros, mulheres, LGBTs) que atuam nesse dualismo entre sujeito e coletivo – é preciso se reconhecer individualmente enquanto homossexual, por exemplo, enquanto também faz-se mais que necessário compreender o grupo no qual minhas vivências e experiências de vida são contempladas. Sobre isso, trago mais uma explicação acerca do pensamento de Hall que ajuda a desbravar as ideias:

Hall partilha da idéia de que a identidade não pode ser tomada de forma cristalizada, mas sim como um processo. E propõe duas maneiras de se pensar a “identidade cultural”, que aqui tomo como referência para a identidade social. A primeira posição, diz ele, define identidade cultural nos termos de uma cultura partilhada, criando um tipo de pertencimento verdadeiro e coletivo. Seria, portanto, uma construção de identidades por um partilhamento de interesses e visões. No entanto, existiria uma segunda via, que trabalhará a partir das diferenças, do reconhecimento de um com outro, com quem se estabelecerão relações conflituosas e por vezes complementares. Portanto, para o autor, é impossível pensar a construção das identidades como resultante somente de partilhamentos de pontos comuns, ou do estabelecimento de contrastes e oposições. A produção da identidade, enquanto processo, deve conter os dois eixos ou vetores, como ele mesmo chama. (ENNE e LACERDA, 2011)

Em “A identidade cultural na pós-modernidade”, dialogando com Giddens e Bauman, Hall também vai ratificar o caráter multifacetado e fragmentado das construções identitárias na contemporaneidade. Esse discurso é complementado por Goffman que afirma “que todos performatizamos aspectos das nossas identidades, atuando de modos diversos em diferentes meios sociais e para diferentes públicos”. Ou seja, é tudo encenação – e aqui é mais do que necessário remover qualquer valor de julgamento que englobe a palavra maneira pejorativa; mas se nos construímos na interação com o outro, é no mínimo compreensível que vivemos de performance(s). No ciberespaço, de maneira bem mais controlada (em todos os sentidos), “os atores sociais optam por tornar visíveis e ocultar determinados conteúdos nos sites de redes sociais, em um processo marcado pela escolha em grande medida consciente e refletida sobre os materiais apropriados em seus perfis” (POLIVANOV, 2014).

Trata-se, portanto, de uma construção discursiva performatizada, dirigida para uma audiência (imaginada) (BOYD, 2011), que permite sua autoapresentação e interação com outros nesse lugar, sempre atravessada pelos discursos de outros atores com os quais interage (BERTO E GONÇALVES, 2011). […] Os perfis dos atores no Facebook são personas […] no sentido de serem construções ou versões de si que os atores sociais – com mais ou menos cuidado e nível de autorreflexão – elaboram (e reelaboram constantemente) performaticamente, selecionando comportamentos e materiais de acordo com a impressão que querem causar à sua audiência em determinado momento.

As pesquisas de Miller (2011) e Polivanov (2012), embora tenham uma consideração semelhante de que há, nesses ambientes, uma busca por sociabilidade e expressão de si, não chegam a discutir/abordar conteúdos de teor político como estratégia também na construção da identidade online – talvez pelo “distanciamento” dos objetivos de pesquisa desse tema. A lacuna, portanto, fica aberto para que pensemos juntos como esse conteúdo é ativo pelos atores sociais e por quais motivos são acionados de tal maneira. Sabendo que a visão política é um marcador tradicional de identidade (PEMPEK, YERMOLAYEVA e CALVERT, 2009 apud POLIVANOV, 2012) que, assim, como religião, idade, renda, orientação sexual, etc., eram informações consideradas para as gerações anteriores extremamente pessoais e particulares (LIVINGSTONE, 2012 apud POLIVANOV, 2012), o que significa para os indivíduos – enquanto sujeitos que criam suas identidades pluralmente – entrar nesse novo campo de esfera pública e travar as disputas que alavancam?

Para responder a essa pergunta (talvez o principal motivo de ter feito esse post), vou recorrer a uma teoria minha que explicarei brevemente e num outro momento pretendo escrever sobre aqui no blog. Antes, novamente, peço licença aos mais academicistas para deixar de lado as citações (nem tanto), o aporte teórico e, como já citado anteriormente, a responsabilidade científica dessa(s) teoria(s). Estou falando enquanto personagem desse contexto através da minha compreensão de mundo, sem me preocupar com qualquer discussão coletiva acerca dessas problemáticas – poderia, por exemplo, conduzir entrevistas com algumas pessoas para obter um respaldo metodológico que me permitisse basear com mais critérios os argumentos que apresento. No entanto, ratifico porque sinto que preciso ter (pelo menos) essa responsabilidade: é um devaneio pessoal e particular, a partir de preposições sociais e culturais que me atravessam, é claro, mas não mais que isso.

Logo, voltemos ao momento quando decidi apoiar simbolicamente um candidato à prefeitura do Rio de Janeiro. Como já mencionei anteriormente, a minha decisão para o ato foi completamente pautada no outro: queria mostrar às pessoas quais valores eu compreendo enquanto cidadão para uma política pública responsável. No entanto, como os próprios autores que mencionei aqui no post, esse jogo identitário se dá tanto no campo coletivo quanto no campo pessoal. No primeiro, recorro a recursos imagéticos de significação que precisam ser compreendidos pelos demais para que seja feita a associação desejada entre os valores e a pessoa. No segundo, a minha própria decisão de fazer isso deve corresponder aos meus processos de experiência de vida que me atravessaram durante todos esses anos, correspondendo à minha compreensão de mundo e como ela fez morada em mim para que eu pudesse então compartilhar com os outros o que isso significa para mim.

Mas, afinal, por que recorrer a essas estratégias de construção de identidade (que, como mencionado, antes não eram colocadas em discussão) quando podemos buscar ferramentas midiáticas mais fáceis para assim a fazermos? A resposta é bastante diplomática: uma não exclui nem abdica da outra. E aí retomo novamente Hall para ratificar o perfil multifacetado das identidades na contemporaneidade, além da “virada cultural” que pôs no centro das discussões tudo que engloba cultura enquanto a compreendemos. Por mais que os editoriais de revistas e outros produtos midiáticos insistam em dissociar política e cultura (isso por apreender cultura numa fusão iluminista e romântica, na qual o passado é venerado para a iluminação espiritual do indivíduo), enxergo que as duas forças nem deveriam ser chamados de campos distintos, uma vez que estão completamente entrelaçados.

É de se esperar, então, que, quando surge um “novo” espaço cibernético de sociabilidade, todos os trâmites culturais ocupem esse novo ambiente. As arenas de disputa de significado e significação, portanto, também estão projetadas nesses espaços online – por isso as “brincadeiras” (sic) de denúncia social são tão importantes quanto às mobilizações off-line, porque os sites de redes sociais tornaram-se locais de luta de significado que interferem diretamente na cultura de um grupo enquanto nação. Esse embate reflete também a construção de personas dos indivíduos online, que cada vez mais são estimulados a entrarem nesse campo de debate e tomarem uma posição (arriscada ou não) política de assuntos sociais. É o que fazemos quando compartilhamos textos, imagens, vídeos de veículos com editoriais detalhadamente localizados politicamente, grupos/coletivos de movimentos sociais ou pessoas que compartilham dos nossos valores. A luta também acontece no campo discursivo.

Para fechar, lembro a todos que a minha adesão foi feita (embora o conteúdo que eu compartilho já revelasse meu posicionamento) através da foto de perfil, o que implica em mais algumas discussões sobre o assunto, conforme a própria Polivanov (2014) destaca no seu estudo. No mais, agradeço a todos que chegaram até aqui e peço desculpas por qualquer inconveniência de irresponsabilidade científica no texto – sim, toco nesse ponto novamente porque sei como as pessoas da internet são estimuladas a expor o erro do outro. No mais, espero que a reflexão tenha feito sentido e que agregue ao pensamento de quem chegou até aqui – estou mais que disposto a trocar ideias sobre o assunto seja nos Comentários ou em outro local mais privado.

Referências bibliográficas

COSTA, Elisabetta; HAYNES, Nell; MCDONALD, Tom; MILLER, Daniel; NICOLESCU, Razvan; SINANAN, Jolynna;  SPYER, Juliano; VENKATRAMAN, Shriram; WANG, Xinyuan. How the World Changed Social Media. UCL, 2016.

ENNE, Ana; LACERDA, Andressa. Gírias, hibridizações, negociações, negações: o discurso como objeto e lugar de disputas na arena da cultura. ENECULT – Salvador, BA, 2011.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Porto Alegre: Educação & Realidade, 1997.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005.

MILLER, Daniel. Tales from Facebook. Cambridge / Malden: Polity Press, 2011.

POLIVANOV, Beatriz. Dinâmica identitárias no Facebook: estratégias de publicização e ocultamento de conteúdos. XII Congreso ALAIC, 2014.

POLIVANOV, Beatriz. Dinâmicas de autoapresentação em sites de redes sociais: performance, autorreflexividade e sociabilidade em cenas de música eletrônica. Niterói, RJ, 2012.