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Cinco dimensões de personas online (para pensar a autoapresentação nas mídias sociais)

Um dos meus critérios para avaliar a qualidade/compatibilidade de um artigo acadêmico com os meus interesses de estudo é verificar as referências bibliográficas ao final do trabalho. Além de conseguir me localizar no debate que o texto se propõe a fazer (reconhecer autores e/ou obras citadas me deixa mais tranquilo/satisfeito), descobrir novos estudos que me parecem interessantes é sempre um acréscimo à minha lista de leituras. Foi assim que descobri o ensaio “Five Dimensions of Online Persona”, a partir do artigo ““Sabe o que Rola nessa Internet que Ninguém Fala?”: Rupturas de Performances Idealizadas da Maternidade no Facebook”, de Ana Souza e Beatriz Polivanov, sobre o qual falarei em outro post.

Capa do volume 3, edição nº 1 da revista Persona Studies

O texto faz parte da terceira edição da revista Persona Studies, um caderno acadêmico que “explora a construção do self público” onde “o conceito de persona é explorado em sua produção e performance numa variedade de contextos: cultura online, práticas profissionais, cultura política, cultura de celebridades, cultura de filmes/televisão/música popular, cultura de jogos/lazer e cultura cotidiana”. Seus autores, assim como principais membros do conselho editorial, são: Christopher Moore, da University of Wollongong Australia; Kim Barbour, da University of Adelaide; e Katja Lee, da McMaster University. Completa o time de editores (mas não é um dos autores) o consagrado pesquisador P. David Marshall, da Deakin University.

É importante conhecer os autores (e, neste caso, o conselho editorial) porque, como já mencionei em outras ocasiões, a pesquisa acadêmica – pelo menos na área de Humanas, até onde eu sei – é extremamente plural e, muitas vezes, interdisciplinar. Ou seja, o mesmo tema pode ser (e provavelmente é) estudado a partir de diferentes abordagens, com diferentes referenciais teóricos e levantando diferentes discussões sociais/culturais/éticas. Descobrir, portanto, quem são os pesquisadores por trás do texto, me fez entender quais são seus repertórios e ponto de partida para o projeto: todos têm como área de interesse em comum a “cultura da celebridade” – Marshall, que não é autor mas é bastante citado no texto, possui cinco livros sobre o assunto, com destaque para “Celebrity and power: fame in contemporary culture”.

Isso reflete diretamente na proposta teórico-metodológica que eles propõem para pesquisar e discutir academicamente sobre a construção de personas online – o que não invalida, de forma alguma, a perspectiva que eles trazem, só “justifica” a abordagem mais preocupada em midiatização/exposição e outros elementos que citarei mais adiante. Antes de entrar nesse mérito, entretanto, preciso ratificar que um dos grandes trunfos do texto é a revisão bibliográfica feita para “explorar a subjetividade e a apresentação pública do self através de tecnologias de rede”, apresentando as principais obras e autores que foram ou pioneiros nos estudos sobre identidade/self na internet ou tiveram, com seus trabalhos, maior impacto no universo acadêmico.

Dentre os principais, citam o trabalho de Harrison Rainie e Barry Wellman (2012), que reforça o argumento de que o aparato tecnológico (tecnologias da comunicação, plataformas de mídia e serviços digitais em geral) faz(em) parte também da construção identitária constantemente revisada, atualizada remendada conforme nos conectamos e trocamos informações com outras pessoas e sistemas. Acrescentando a esse argumento, citam o conceito de “networked self” de Zizi Papacharissi (2010), que se refere à “construção de uma performance subjetiva em várias plataformas e fluxo simultâneo de consciência social que expande autonomia, potencialmente reduz agenciamento e que requer constante auto-vigilância e monitoramento” (p. 1).

Outra referência muito interessante trazida pelos autores é o trabalho de Mark Hansen (2015), que argumenta que “em qualquer performance de subjetividade – humana ou não – há uma subjetividade generalizada inerente aos dados quantitativos” (p. 1), marco típico da caracterização elementar da mídia contemporânea. Sua linha argumentativa, a partir da filosofia especulativa de Alfred North Whitehead, “ajuda-nos a apreciar a dimensão sensorial irreduzível da experiência ‘dataficada'”, corroborando com a perspectiva da pesquisadora Helen Kennedy. Em termos simples, há uma concordância de que a subjetividade expansiva, plural e desafiadora dos seres humanos, quando traduzidas midiaticamente, tornam-se pontos de contato entre nós e as máquinas, tornando tudo (qualquer interação) quantificável.

Outras pesquisadoras relevantes, como Nancy Baym, examinou como as formas de comunicação interpessoal das mídias aceleram novas constituições de ‘conexão pessoal’ (2010, p.1). O trabalho de Baym quanto à identidade digital expande a noção útil de Donath (2007) sobre signalling, que funciona para localizar a posição social dentro de uma sociedade saturada de informação. Utilizando o Facebook e seus templates como estudo de caso, o trabalho de Laurie McNeill (2012) explorou a colaboração entre componentes humanos e não-humanos na produção de atos autobiográficos online. Anna Poletti e Julie Rak (2014) oferecem uma orientação similar de uma identidade conectada em estudos biográficos e autobiográficos em Identity Technologias: Constructing the Self online, uma coletânea que argumenta que tais tecnologias são parte fundamental do mundo online na contemporaneidade (p. 2).

Todos esses trabalhos citados – e outros que ainda virão – têm contribuído para uma discussão complexa, diversa e responsável da construção de identidades online nas últimas décadas: “eles começaram a examinar como o indivíduo é intimamente conectado à apresentação de seus selves públicos na cultura online, pelas conexões digitais até instituições sociais, e através das organizações conectadas da vida cotidiana que são fundamentalmente diferente do que já foram” (p. 2). A contribuição da revista, portanto, tem sido levantar uma discussão crítica sobre personas para compreender práticas e performances identitárias no contexto online. Nesse ensaio em específico, pretendem apresentar cinco dimensões importantes de uma persona online para compreender a sua configuração na contemporaneidade.

A DIMENSÃO PÚBLICA

A primeira dimensão que os autores apontam é a dimensão pública, que envolve duas questões relevantes: o “fim” do anonimato na internet e a publicização (POLIVANOV, 2012) do self. O primeiro dialoga diretamente com a noção da virada do milênio na qual o ciberespaço seria um não-lugar que ofereceria aos frequentadores possibilidades infinitas de construção de um (novo) ser. Eles citam, dentre os fenômenos que causaram essa mudança de paradigma: a obrigatoriedade dos nomes reais (no Facebook, por exemplo), os termos de compromissos de jogos online, de mídias sociais, e a onipresença de navegadores baseados em cookies, além das próprias medidas governamentais adotadas nos últimos anos para vigilância social.

Embora essa seja uma questão que tem se amplificado e até se consolidado mais recentemente (consigo entender a argumentação do início da década passada na qual havia maior “mobilidade” para a construção de personas “fictícias”), o declínio do anonimato já era um ponto levantado por Lemos (2003) ao falar sobre as novas dinâmicas da cibercultura. Já naquela época, ele declarava: “Obviamente que questões inéditas surgem comprovadas através de certo lastro empírico, mas as diferenças devem ser matizadas já que várias práticas guardam similitudes com as formas sociais e os papéis que desempenhamos no dia a dia fora da rede” (p. 6). Mais interessante, portanto, a meu ver, é a questão da “publicidade” (publicness) do self.

Os autores chamam a atenção para o espectro amplo de “publicidade” (publicness) de uma persona online, ratificando que “a cada ponto de sua travessia existe um potencial real de partir de um público pequeno de amigos próximos e íntimos a uma audiência global e massiva, possibilitada pelo ato de compartilhamento” (p. 3). Em outras palavras, trata-se da ideia de visibilidade que Polivanov (2012) cita a partir de boyd (2011) como elemento-chave dos sites de redes sociais: é o tornar público – não necessariamente o conteúdo em si, mas o ato de “publicizar” algum elemento (imagético, textual, etc.). Quando publicamos algo nas mídias sociais, muitas vezes esquecemos que estamos justamente tornando aquela mensagem pública – podendo ela ser inferida pela nossa rede de contatos ou por milhares de desconhecidos.

Embora considere essa dimensão extremamente relevante, não concordo muito com a fundamentação argumentativa dos autores – aqui, por exemplo, conhecer o repertório de quem escreveu faz toda a diferença. Eles argumentam que há uma trajetória quase que natural desse efeito de publicness, no qual estaríamos todos buscando constantemente uma audiência maior. “Celebridades agem como marcadores pedagógicos ao fornecerem frameworks replicáveis para a conduta da apresentação pública do self” (p. 3), argumentam. Embora concorde que temos historicamente a construção de personalidades midiáticas como referência para várias das ações que (inconscientemente) aplicamos hoje nas mídias sociais, esse argumento de busca irreversível pela popularidade me parece muito moralista.

A DIMENSÃO MIDIATIZADA

A segunda dimensão traz à tona o aspecto mais tecnológico da construção de uma persona online, sendo este o responsável – literalmente, já que é ele quem torna público – pela dimensão anterior. “Bilhões de usuários diários de mídias sociais no Facebook, WeChat, Twitter e Instagram demonstram um incomparável escopo de habilidades e grau de conforto com a midiatização pública e expressam níveis sem precedentes de exposição atual e em potencial” (p. 3), pontuam. Novamente, aqui, há um enfoque muito grande na comparação com a cultura das celebridades, que precisariam de “mídia” (exposição) para construírem suas carreiras – por isso fazem entrevistas, participam de programas de TV, posam para capas de revistas, etc.

Um apontamento interessante nesse contexto é a associação feita com a teoria narratológica de Gerard Genette sobre o conceito de paratextos: “são dispositivos ou convenções liminares (como poses no tapete vermelho, atributos faciais característicos, hábitos do Instagram ou páginas do Facebook) que formam um significado inicial entre texto e audiência” (p. 4). Trata-se, portanto, de práticas e discursos heterogêneos que acumulamos com o tempo em nossas identidades de persona online: “Esses paratextos circulam conforme performer utilizam suas identidades para converter a si mesmos e as produções das quais fazem parte, tornando-se visíveis enquanto figuras midiatizadas, através de canais de distribuição da mídia tradicional e plataformas de mídias sociais mais pessoais” (p. 4). No contexto das mídias sociais, eles citam likes, favoritos, compartilhamentos e retweets como paratextos.

Em resumo, portanto, a dimensão midiatizada aciona o nosso entendimento mais cotidiano de mídia: é o fazer midiático, que envolve diretamente as (novas) tecnologias de comunicação (e agenciamento) da modernidade digital. Aqui, vale novamente repensar a palavra mídia (como fizemos anteriormente com público),  para que possemos lembrar que vivemos a cultura da mídia (como diria Douglas Kellner) e, portanto, as nossas ações são interpeladas pelo fazer midiático e simultaneamente interpretadas a partir das configurações de entendimento do que aprendemos enquanto construção de personas nos meios de comunicação “tradicionais”. O nosso endosso também constrói quem somos (SCHAU e GILLY, 2003).

A DIMENSÃO PERFORMATIVA

A terceira dimensão é provavelmente uma das mais levadas em consideração na pesquisa acadêmica sobre identidade nas mídias sociais (cf. Polivanov, 2012, cap. 2). Amplamente baseada no trabalho de Erving Goffman, diz respeito ao modo ao qual nos apresentamos apropriadamente de acordo com o público que temos à nossa frente: “Goffman convencionou uma compreensão de grau na qual todos nós apresentamos ‘faces’ e agimos de acordo a depender de cada situação e suas expectativas” (p. 4) – dialogando também com a ideia de identidade fragmentada de Hall (2006) e de audiência imaginada de boyd (2011). De maneira simples, significa dizer que nossos atos performáticos condizem com o papel social que tomamos para si em cada situação: a mãe, a blogueira, a professora, a acadêmica, a militante, etc. – tudo isso em uma só persona.

Para apresentarmos uma persona mediada publicamente nós devemos performar nossa identidade, nossa profissão, nosso gênero; e efetuar nossos gostos, interesses, e redes de conexão através de atividades como comentários em posts, curtidas em contribuições de terceiros ou enquadramento de uma selfie. Essa identidade performativa não faz alegações sobre ser ‘verdadeira’, ou um self que é de alguma maneira menos produzido ou implementado ou mais completo de alguma forma subjacente. A performance pública do self não é nem inteiramente ‘real’ nem inteiramente ‘ficcional’. As conquistas da performatividade significa que uma persona conecta e enreda todas as várias características que são encenadas e apresentadas no cotidiano e intencionadas para interação com os outros (p. 4).

Sobre essa dimensão, os autores chamam atenção principalmente para quatro questões: primeiro, para a noção rotineira da performance discutida por Papacharissi (2010) – e que, de certa forma, dialoga bastante com o conceito de habitus de Pierre Bourdieu – na qual “qualquer interação entre um self performado e o self performado de outros pode rapidamente se tornar um padrão de ação que então se torna uma rotina”. O que envolve diretamente a segunda questão, que é a expectativa que criamos na lógica de coerência expressiva (SÁ e POLIVANOV, 2012) sobre como esperamos que as pessoas ajam frente às determinadas situações. Sobre isso, os autores mencionam também o trabalho de boyd (2010) para ratificar os conflitos geracionais quanto ao uso das mídias sociais, que “nos lembra que os métodos para performar o self não são fixos” (p. 5).

Os autores citam também a importância do trabalho de Judith Butler (1999) para o conceito de performatividade, no qual a autora argumenta que “a qualidade de apresentação da identidade (de gênero) não é nem determinada biologicamente nem produzida individualmente, mas possibilitada e coagida pelas instituições, tecnologias, redes e culturas nas quais o self público é montado e performado” (p. 5). Por fim, mas não menos importante, os autores acionam o conceito a interpretação de vivência mundana (lifeworld) de Habermas (1987) para citar como incorporamos diversos elementos de reprodução simbólica da sociedade – que engloba plataformas de mídia, tecnologias móveis, canais de comunicação múltiplos, etc. – “para gerenciar o self em diversas estruturas, instituições, performances técnicas, frames e palcos” (p. 5).

Um exemplo muito interessante que os autores apontam como “hábitos” que acabamos tomando como naturais na construção de identidades online é explorado no trabalho de Ken Hillis (2009) sobre o “pull-down menu”: “[o autor] nos lembra que a performance de gênero, peso, idade, profissão, localização, atitude e relacionamento para outros é puramente ritualizada como resultado da opções limitadas disponíveis para usuários nos sistemas” (p. 5). No entanto, argumentam os autores a partir de Marshall (2010), “é através da performatividade de apresentação midiática que indivíduos são encorajados, convocados e até mesmo ‘seduzidos’ a construções mais elaboradas da apresentação pública”. Essa construção performativa deve sempre estar de acordo com certa coerência narrativa através de um equilíbrio entre pessoal, profissional, sincero e autêntico.

A DIMENSÃO COLETIVA

A quarta dimensão apontada no texto se refere à noção de coletivo à qual fazemos parte numa rede de conexões: “O indivíduo está conectado a múltiplos públicos, tornando a dimensão coletiva de uma persona um complexo meta-coletivo” (p. 6). Aqui os autores acionam termos como “nós” e “redes” para ratificar a ideia de diferentes (e possivelmente sobrepostas) conexões entre os atores que possuem um ponto central: a persona do usuário. Não se trata (apenas) da noção de redes das quais fazemos parte no contexto de mídias sociais, mas também dos processos diversos – e em diferentes plataformas – que utilizamos para construir a nossa identidade online (você é sua conta no Instagram + Facebook + LinkedIn + Twitter, etc.).

Essa construção fragmentada do self implica uma audiência também fragmentada (porém razoavelmente imaginada), que traz à discussão o conceito de micro-publics. A primeira vez que vi esse termo num artigo foi no texto “Is Habermas on Twitter? Social Media and the Public Sphere”, de Axel Bruns e Tim Highfield, na qual os autores apresentam esses micro-públicos como constituintes plurais de uma (nova) esfera pública nas mídias sociais. No ensaio em questão, os autores apresentam o conceito também partindo de uma ideia de pequenos grupos de audiência que denominam certos valores e expectativas em comum frente à construção de uma persona: “A intercomunicação entre atividades de micro-público ocorre como parte da comunicação interpessoal do self, onde automediações estão ligadas diretamente a atividades de autopromoção em diversas plataformas, sites e serviços” (p. 6).

Micro-públicos são micro não em termos de escala, mas em relação à natureza da rede que é regular e privadamente atualizada por uma identidade central. Um micropúblico está anexado à uma persona única que está pessoalmente produzindo, respondendo e transmitindo na tradição das instituições de mídia previamente dominantes, o que torna o micropúblico uma rede quasi-pública. Para lidar completamente com a emergência da persona online, nós observamos atentamente as conexões fortes entre indivíduos e as múltiplas sobreposições de micropúblicos aos quais eles são centrais (p. 6).

Essa dimensão retoma outros dois conceitos já citados neste post: a ideia de coerência expressiva e o conceito de gerenciamento de impressões. O primeiro, cunhado por Sá e Polivanov (2012), parte justamente da ideia de Goffman sobre como temos que criar uma narrativa bem amarrada e alinhada para os diferentes (micro)públicos. No texto, os autores citam duas complicações atuais para essa dimensão: “a relação de tornar-se amigo e tornar-se seguidor que amplica o laço afetivo entre autor e público […] que contribuiu com novas dimensões interpessoais de expressões culturais, governança e consumo”; e “a construção muito complexa de públicos como micropúblicos que intercepta sistemas de comunicação e mídia maiores e consolidados que produzem tropas culturais e contribui para uma nova orientação de valor e agenciamento” (p. 6).

A DIMENSÃO DE VALOR

A última dimensão coloca em pauta outra perspectiva bastante estudada sobre a midiatização do self online (principalmente se tratando de influenciadores/webcelebridades/produtores de conteúdo): agenciamento, reputação e prestígio. “O motivo para criar personas pode variar desde o pessoal e íntimo […] ao profissional […] ou o público […]. Personas não são fixas às suas motivações originais que levaram às suas criações, mas escorregam por registros da performance (Barbour, 2014), um processo que é facilitado pela natureza mediada e coletiva da produção de persona” (p. 7), explicam os autores. De certa forma, essa argumentação se assemelha com a visão weberiana sobre ações sociais, às quais trabalharíamos com a racionalidade, a afetividade e/ou a tradição para auxiliar nossas tomadas de decisões.

Nesse reconhecimento de intenção por trás da produção de persona está incorporado uma compreensão do agenciamento envolvido. Embora trabalhando dentro das possibilidades e restrições da tecnologia, estruturas de poder e normas sócioculturais, aqueles que constroem personas ainda estão tomando decisões ativas e importantes quanto ao modo que performam essa persona para seus micro-públicos. A máscara da persona é adotada durante sua performance e a persona pode então se tornar ‘algo’ pela qual outras ‘coisas’ são alcançadas. A produção de redes acontece pelas ações dos produtores da persona, e membros dessas redes podem igualmente contribuir para essa persona pelas suas escolhas e ações. Ações paratextuais como ‘curtir’ ou compartilhar conteúdos específicos são contribuições ativas para uma identidade pública ou semi-pública, e demonstra a importância das escolhas que fazemos em participação online (p. 7).

Quanto à reputação, os autores chamam a atenção dos trabalhos que têm investigado como a construção de personas online têm traduzido – até coercivamente – em mudanças de posturas da vida offline: “pesquisas sobre a natureza aspiracional das performances de identidade online […] parecem sustentar a ideia de que características aspiracionais são constantemente eventualmente incluídas e incorporadas numa persona offline” (p. 7). Em paralelo, a ideia de prestígio é relativizada: “O prestígio associado às personas – compreendido por aqueles que as criaram – é outorgado pelo micropúblico daquela persona”. Em outras palavras, é o intuito inicial da construção da persona que pode julgar e avaliar o sucesso do seu prestígio.

TRABALHOS NA EDIÇÃO

Como mencionei desde o início, o texto não se trata de um artigo, mas de um ensaio que introduz os trabalhos disponíveis no volume 3 no. 1 do Persona Studies. Os autores chamam atenção para o interesse desses artigos no papel de públicos conectados na construção de uma persona; a dinâmica interação entre públicos e atores para sua constituição; a relevância dos públicos nessa dinâmica constituinte; a sobreposição de públicos e trajetória transversal, dinâmica, móvel e flexível para a construção de personas em diferentes situações; e a responsabilidade da coerência expressiva (ou accountability) entre suas performances.

Quando levamos em consideração esses coletivos e redes e a interação que acontece entre e através deles; quando ficamos atento à performance, às mediações e aos mecanismos de adquirir e distribuir valor através de personas, como os artigos nessa edição consideram, é inevitável que consideremos também os componentes estruturais e estruturantes que condicionam e limitam a produção e performance de uma pessoa […]. As estruturas que condicionam personas são considerações cruciais, mas elas podem, se não formos cuidadosos, rapidamente esmagar coagir como fazemos sentidos de personas. Nós agora estamos, talvez, habituados às discussões sobre limitações e possibilidades das plataformas de tecnologia e mídias sociais na produção de identidades públicas digitais (p. 9).

Como mencionei no início do post, um dos grandes méritos do ensaio é construir uma tentativa de “estado da arte” do que tem sido referência e impactado diretamente no campo de pesquisa sobre identidades online no mundo todo. É evidente que a visão anglo-eurocêntrica impede que os autores australianos deem atenção à produção na América Latina, por isso fiz questão de citar alguns trabalhos também relevantes no contexto brasileiro – e que poderiam agregar ainda mais à discussão mundial, tivéssemos a mesma visibilidade dos norte-americanos. De qualquer modo, o a proposta das cinco dimensões para pensar personas online é muito bem construída, desenvolvida e argumentada – ainda que os próprios autores ratifiquem que não se trata de um framework totalitário, mas “úteis para considerar as relações entre tecnologia e identidades públicas digitais”.

Nessa edição da revista, estão presentes os artigos: “Get Off My Internets”: How Anti-Fans Deconstruct Lifestyle Bloggers’ Authenticity Work, de Sarah McRae; The persona in autobiographical game-making as a playful performance of the self, de Stefan Werning; Constructing the Antichrist as Superstar: Marilyn Manson and the Mechanics of Eschatological Narrative, de Patrick William Osborne; e The Hyphenated Persona: Aidan Quinn’s Irish-American Performances, de Loretta Goff. Vale também conferir, entretanto, a segunda edição de 2017, que traz mais textos sobre personas no contexto digital como Online Persona Research: An Instagram Case StudyTeenagers, Fandom and Identity, além do ótimo criativo User Personas and Social Media Profiles.

Referências bibliográficas

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Barbour, K 2014, Finding the Edge: Online persona creation by fringe artists, Doctoral Thesis, Deakin University, Australia.

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McNeill, L 2012, ‘There is no “I” in network: social networking sites and posthuman auto/biography’, Biography, vol. 35, no. 1, pp. 65-82, doi: https://doi.org/10.1353/bio.2012.0009.

Papacharissi, Z 2010, A networked self: identity, community and culture on social network sites, Routledge, New York.

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Polivanov, B 2012, Dinâmicas de autoapresentação em sites de redes sociais: performance, autorreflexividade e sociabilidade em cenas de música eletrônica. Tese. (Doutorado em Comunicação). Universidade Federal Fluminense: Rio de Janeiro.

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Be Right Back: a narrativa do “eu” e a coerência expressiva no episódio de Black Mirror

Este é um post que estava engavetado há meses. Prova disso é que tenho, no meu quarto, um quadro branco onde mantenho minhas tarefas, aspirações e inspirações; hoje, quando tentei apagar “post Black Mirror e coerência expressiva”, uma mancha deixou uma marca como se me dissesse para não adiar tanto assim as minhas ideias que precisam ser desenvolvidas na prática. Portanto, antes tarde do que nunca, compartilho aqui no blog várias das inquietações que me fisgaram quando assisti à série Black Mirror – mais especificamente, ao episódio “Be Right Back”, da segunda temporada – e por que ele me remeteu tanto à ideia de coerência expressiva, desenvolvidos por Polivanov e Sá (2012). Antes de entrar nos detalhes da história e como relacionei com esse conceito, precisamos falar de Black Mirror.

Nas palavras da Wikipédia: “Black Mirror é uma série de televisão britânica antológica criada por Charlie Brooker, que apresenta ficção especulativa com temas sombrios e às vezes satíricos que examinam a sociedade moderna, especialmente no que diz respeito às consequências imprevistas das novas tecnologias”. Nas minhas palavras, é uma série enxuta – são apenas duas temporadas com três episódios cada, e um especial de Natal – que traz uma história diferente (com elenco, cenografia, tudo diferente) em cada episódio. Os temas perpassam discussões acerca de política, moral, sociedade do espetáculo, memória, morte, tecnologia e a nossa relação com as mídias em geral. Mesmo que não a conheça, talvez tenha ouvido falar que a terceira temporada estreia no dia 21 de outubro deste ano na Netflix – provavelmente um dos principais motivos que me coagiu a tirar esse post da gaveta. Não serei aquela pessoa que insistirá que você assista à série, mas recomendo muito, principalmente para profissionais, pesquisadores e pensadores das áreas de comunicação, tecnologia, política e mídias.

Imagem: Netflix
Imagem: Netflix

Como já mencionei, embora todos os episódios tenham mexido muito com a minha cabeça (esse é o objetivo), o episódio que quero abordar aqui é o primeiro da segunda temporada, intitulado “Be Right Back” (Volto Já, em tradução livre). A história é a seguinte (com ajuda do imdb): Martha e Ash são um casal de apaixonados que decidem morar juntos numa casa do interior. Um dia depois da mudança, ao devolver a van alugada para tal, Ash se envolve num acidente de carro fatal. No funeral, uma amiga de Martha recomenda um serviço novo que ajuda pessoas em luto a lidar melhor com a situação, criando um Ash “virtual” que se comunica com ela através de informações (dados) obtidos de mídias sociais e da internet como um todo. Ela não aceita bem a indicação da amiga, mas esta acaba a inscrevendo no serviço mesmo assim – o que só descobre quando recebe um e-mail do “novo” Ash. A partir daí, ela começa a ter vários embates pessoais e morais sobre (não manter) essa relação com esse personagem, e a trama se desenvolve justamente nesses conflitos internos. Podemos seguir daqui.

Dada essa introdução, pretendo apresentar quase que cronologicamente – porém de forma bem aleatória, arbitrária – – algumas questões que o episódio levanta. A primeira “problemática” sobre a qual precisamos nos debruçar é a questão da hiper-visibilidade e superexposição. Aqui, entretanto, não enxergo essa questão de modo conservador como vários estudos sobre privacidade, vigilância e narcisismo tem tratado este assunto – embora tenha esta linha de pensamento como importante para reflexão, acredito humildemente que parte de um juízo de valor um pouco ultrapassado que precisa, para avanço do debate, ser superado; recomendo, neste sentido, o subitem“Os discursos sobre a superexposição do eu e a era da vigilância”, do primeiro capítulo do livro Dinâmicas identitárias em sites de redes sociais, da Prof. Dra. Beatriz Polivanov, no qual ela revisa essas discussões e propõe uma brecha na para seguirmos em frente. Ainda assim, mesmo que o debate fosse trazido para discussão, eu argumentaria que, pros fins da história, essa superexposição acabou sendo bom para o personagem.

Explico: o “novo” Ash, sintético, passa por um processo de machine learning. Para que ele se torne o Ash que Martha, sua esposa, consiga identificá-lo como seu antigo marido, o serviço no qual sua amiga a inscreve consome todo tipo de conteúdo que o “verdadeiro” Ash já publicou online – não apenas em mídias sociais, mas também em e-mail, mensagens instantâneas, etc. Cada rastro social digital que ele tenha deixado enquanto vivo se transforma em fonte de alimento para que o robô (se é que posso utilizar esse termo tecnicamente estigmatizado) simule – e aqui reitero a noção de reproduzir – quem ele era antes. Isso expõe a importância de que ele tenha, ainda vivo, criado uma identidade (performance, ou narrativa, como prefiro) de quem ele era no ciberespaço. E, por mais importante que essa construção do eu enquanto conflito interno seja importante psicologicamente falando, argumento que ainda mais importante é o fato de, para além de se construir, narrar a sua construção. A identidade que ele criou para si quando era vivo, para que se tornasse “completa”, necessitava da interação com o outro – ou seja, precisava ser narrada.

Acho importante tocar nessa questão porque é algo que me parece essencial à discussão da construção de si, como vão argumentar diversos autores como Hall, Pollak e Bourdieu – a identidade é construída no discurso, na linguagem. Na minha humilde opinião, os trabalhos apresentados sobre a construção do eu no ciberespaço parecem ter superado muito fácil essa ideia e se ancoram demais (justificadamente) nos conceitos apresentados por Goffman. A meu ver, o sistema de interpretação e comunicação é um só, o que muda nesse (novo) contexto é apenas as plataformas e dispositivos de narração. No entanto, vou segurar esse argumento aqui para que o post não se torne muito grande e complexo (e porque é debate pra cacife grande), quando a proposta que pretendo trazer para discussão aqui é outra: a ideia de coerência expressiva. Isso quer dizer que, para além de atuar nesses instrumentos e dispositivos de narração para compor a sua identidade, o sujeito depende do outro para se constituir. Eu crio minha narrativa através das construções sociais e culturais que me atravessam mas projeto sempre minha história no outro.

É este processo que chamamos de coerência expressiva dos atores nas redes sociais. E com esta expressão, interessa-nos demarcar este processo, intensamente complexo, precário, inacabado, de ajuste da “imagem” própria aos significados que se quer expressar para o outro, e que é muito fortemente ancorado na utilização de bens culturais-midiáticos, tais como letras de músicas, filmes, clipes, etc., utilizados a partir da avaliação pelos atores de sua adequação ao que querem expressar, traduzir, apresentar e comunicar nos sites. Processo que se dá em tensão, sujeito a ruídos, uma vez que sempre atravessado pela relação com os outros atores da rede sócio-técnica na qual o usuário se insere. O que nos permite sugerir, talvez, uma ilusão da coerência expressiva, à maneira como Bourdieu fala da ilusão biográfica, a fim de desconstruir qualquer suposição de estabilidade, controle ou de concretude do sujeito como resultado do processo. (Sá e Polivanov, 2012)

Da primeira vez que assisti ao episódio, este foi o aspecto que mais me chamou a atenção. Um dos maiores embates e conflitos internos pelo qual a personagem principal, Martha, passa, é nessa questão de ter, naquele robô, uma narrativa reflexivamente construída que emula quem seu marido um dia foi. Desde o primeiro contato entre os dois, quando ela recebe o e-mail desse ser virtual e se dispõe a respondê-lo, o elo que eles criam se dá pelo fato que a máquina tenha processado as informações e aprendido a simular o que Ash falaria. E isso, esse conforto que ela constrói conforme eles vão se comunicando, é possibilitado apenas pelo modo como ele se apresentava online. Para além disso, reforço o fato de que essa narrativa que ele construiu enquanto vivo no ciberespaço era construída num sentido de auto-reflexividade que também supera, em certos pontos, o argumento da exposição descontrolada ou desenfreada no ambiente das mídias (e sites de redes) sociais. Quando ela se depara com a versão material do “computador”, o elogio que ela faz à sua aparência e a resposta que ele dá (“as fotos costumam ser boas”) ratifica o processo meticuloso pelo qual a narrativa mediada por computadores tem nos submetido durante os anos.

Imagem: Netflix
Imagem: Netflix

Ainda nesse contexto, mas reforçando mais a ideia de que só nos construímos no outro, há uma cena (duas, na verdade) que parecem ter sido escritas propositalmente para que fosse levantada essa questão na discussão: ainda vivo, Ash decide publicar em algum site de rede social uma foto dele ainda criança. Ele justifica essa ação explicando à esposa que acredita que as pessoas irão achar aquela foto engraçada. No entanto, na mesma cena, ele revela que aquela foto não tinha nada de engraçada – remontava, em sua memória, pelo contrário, um fato bem triste. Ou seja, ele resignificou aquela imagem para conscientemente criar uma nova narrativa simbólica do que aquele evento o remetia. No final do episódio, esse arco narrativo é retomado (talvez em tom de crítica) quando o robô Ash vê aquela foto na sala e comenta: “Ha, engraçado” – provavelmente porque o desenrolar da ação primária do Ash “verdadeiro”, quando publicou a foto no SRS, tenha se dado nesse contexto cômico da situação, através de comentários de amigos e do próprio em resposta àquele estímulo comunicacional. Isso, no entanto, coloca-nos outro fato muito importante – que, novamente, rebate a superexposição desenfreada: a narrativa que construímos de nós mesmos no ciberespaço é insuficiente.

Esse embate que limita a simulação de Ash entra em pauta principalmente no final do episódio, quando pequenas situações de desconforto são criadas entre Martha e o “novo” Ash. Num primeiro momento, a história toca nesse aspecto quando, numa cena de sexo, o personagem explica que não há “registros” desse contexto processadas pela sua tecnologia de deep learning – o que é rapidamente superado pela proposta de aprendizado em outras fontes, no caso, sites de vídeos pornô. Esse embate pode ser reforçado pelo argumento de Silva (2015, online) que explica que “produtos que atendem necessidades fisiológicas são alvo de conversações nas mídias sociais quando atendem também necessidades simbólicas”, contextualizando – e abrangendo – essa argumentação a um universo maior de conversação, que não envolve apenas produtos, mas a sociabilidade digital como um todo. No final da história, essas incongruências começam a se tornar ainda mais conflitantes para a personagem principal, num contexto no qual acho coerente apresentar um conceito de Giddens abordado no artigo em questão:

Em seu argumento, o autor lista seis características principais das relações puras, quais sejam:

1) “em contraste com laços pessoais próximos em contextos tradicionais, a relação pura não está ancorada em condições exteriores da vida social e econômica – é como se flutuasse livremente” (2002, p. 87);

2) “a pura relação é buscada apenas pelo que a relação pode trazer para os parceiros envolvidos (…) é precisamente neste sentido que a relação é ‘pura’” (p. 88);

3) “a relação pura é reflexivamente organizada, de modo aberto e em base continua”. (p.89);

4) “o ‘compromisso’ tem um papel central nas relações puras” (p. 89);

5) “a relação pura enfoca a intimidade, que é uma condição principal de qualquer estabilidade de longo prazo que os parceiros logrem atingir” (p. 91) e;

6) “a relação pura depende da confiança mútua entre os parceiros, que por sua vez se liga de perto à realização da intimidade. (…) a confiança não é e não pode ser tida como “dada”: como outros aspectos da relação, deve ser trabalhada – a confiança do outro precisa ser ganha” (p. 92).

Sob essa perspectiva de Giddens, é essa questão da relação pura que escancara as rachaduras do novo “relacionamento” do casal. Estendendo-se nessa ideia, Sá e Polivanov (2012) explicam o conceito de self-disclosure de Baym no qual “a necessidade de ‘abertura’ para com a figura do outro de forma a mostrar-se como sujeito ‘crível’, ‘verídico’ e passível de se tornar confiável” é traço fundamental para a relação pura. No entanto, esse argumento poderia ser rebatido com o fato de que, nos sites de redes sociais, temas como sexo não são realmente expostos, mas em outros canais como e-mail, mensagens instantâneas, etc., poderiam ser. É aí que entra uma questão mais subjetiva, na qual a quebra de expectativa que prejudica o relacionamento e auxilia na quebra de sentido que a narrativa de machine learning construíra para Ash acontece porque o “eu” construído não é total, ou seja, não corresponde à compreensão de Martha do que seu marido, enquanto sujeito plural, apresentava ser. Uma das últimas cenas, bastante emblemática, quando, depois de passar por todos esses conflitos, ela desabafa e pede que ele se destrua – jogando-se de um penhasco – exemplifica sua “limitação” identitária.

Imagem: Netflix
Imagem: Netflix

No entanto, retomando minha argumentação no sexto parágrafo sobre narrativas e plataformas, confesso que sou um pouco cético sobre essa limitação ser um aspecto exclusivo de plataformas e dispositivos de comunicação mediada por computador. Como também mencionei anteriormente, a construção da identidade é feita no discurso, na narrativa, é uma construção linguística. Entretanto, a meu ver, a própria língua enquanto instrumento comunicacional é limitante ao tentar fixar (e representar) a identidade. Ou seja, a identidade, nesta minha linha de raciocínio, é múltipla, flexível, contínua, inconstante, etc. demais para que alguma ferramenta comunicacional seja capaz de narrá-la em sua plenitude. Por isso tenho a interpretação de “presentation” em Goffman (graças a minha querida prof. Ana Lúcia Enne), como aquilo que se presentifica, que pode vir a ser (um devir) como mais apropriada para pensar a construção identitária narrada pelos sujeitos.

Para finalizar, gostaria de pedir paciência (e compreensão) caso qualquer uma das minhas ideias apresentadas aqui tenham parecido pretensiosas ou prepotentes. Estou atualizando meu repertório sobre identidade no ciberespaço através de um projeto que tenho desenvolvido no estágio, que tem me proporcionado conhecer vários autores estrangeiros que já trouxeram à discussão esse caráter da sociedade atual. A minha ideia aqui era expor pensamentos, indagações, reflexões e inquietudes sobre o que pude absorver do episódio da série referida, para então trazer para debate e estar sujeito a quaisquer críticas que possam ser pautadas sobre minha argumentação. Espero que tenha sido prazeroso ao leitor e prometo (talvez) retomar as ideias deste post em outros momentos, talvez pelo terceiro episódio da nova temporada da série, que também vai abordar satiricamente a identidade na era das mídias sociais.

Referências bibliográficas

PEREIRA DE SÁ, Simone; POLIVANOV, Beatriz. Auto- reflexividade, coerência expressiva e performance como categorias para análise dos sites de redes sociais. Contemporânea, v. 10, n. 3, set-dez 2012, pp. 574-596.

SILVA, Tarcízio. Necessidades humanas, camadas simbólicas e o monitoramento de mídias sociais. Tarcízio Silva, online, 2015. Disponível em: http://tarciziosilva.com.br/blog/necessidades-humanas-camadas-simbolicas-e-o-monitoramento-de-midias-sociais/.